domingo, 24 de março de 2013

RESENHA CRÍTICA: NAS ASAS DA FÉ: OS CAMINHOS DE UM TRANSPLANTE RENAL

                                                                      
TAVARES, Evanilda Alves Rocha. Nas asas da fé: os caminhos de um transplante renal. Fortaleza: Premius, 2011.

Este livro apresenta uma comovente história de superação e fé vivida pela educadora Evanilda Alves Rocha Tavares que, em decorrência de sérios problemas renais, deparou-se com a necessidade de passar por um transplante renal. 
          Essa obra está dividida em duas partes. Na primeira, com o título "Refazendo os caminhos", a autora discorre, com linguagem prosaica e envolvente, sobre seus traços biográficos: infância, adolescência, casamento, construção da família e da carreira profissional, e a explanação dolorosa da insuficiência renal que aos poucos a fez, tendo sempre ao lado uma família unida e solidária, sofrer e sentir-se, por vezes, física e psicologicamente fragilizada. Na segunda parte, com o título "Vida Nova!" discorre sobre o "confinamento" necessário para a recuperação após a realização do transplante renal. 
          Ao remeter-se à infância, na primeira parte do livro, a autora constrói uma espécie de crônica de memórias através da qual, com intenso lirismo, parece conversar com um amigo a quem contasse, emocionada, sua história em uma das suas reuniões familiares denominada como "café da tarde". Do nascimento em Caririmirim (Caririzinho) à sua chegada ao Crato, a autora rememora as personagens de sua vida infantil. Surge, em sua narrativa, a simplicidade dos pais que se esforçavam para dar vida digna e estudo aos nove filhos, a singeleza do cotidiano de uma típica família sertaneja baseada em valores cristãos, a canção que Alzenir cantava ao pentear-lhe os cabelos e a contribuição da professora D. Maria de Brito que, numa humilde escola, foi responsável por alfabetizá-la. Além disso, a autora conta-nos sobre sua chegada ao Crato, sua juventude repleta de boas amizades e momentos líricos em que, das visitas à avó em Caririmirim (Caririzinho), em época de férias, à criação da "Quadrilha do Pimenta", momento belo em que a união de jovens fazia acontecer uma bem-sucedida festa junina, podemos nos sensibilizar em decorrência da triste constatação de que os tempos bons nem sempre voltam mais.
       Em seguida, nos deparamos com o casamento, com o nascimento dos três filhos, com as conquistas advindas de uma dedicada vida de estudos que a tornou realizada profissionalmente: seja como bancária, seja como educadora. Como educadora, construiu uma carreira que a fez contribuir em várias áreas: atuou como professora da Educação Básica e Superior e como coordenadora pedagógica. 
      Os acontecimentos dramáticos de sua história são evidenciados quando é mencionado o diagnóstico trágico: era portadora de insuficiência renal crônica - antes mesmo de casar-se e constituir família havia retirado um dos rins. A partir desse momento o leitor tende a acompanhar a tensão vivida pela autora que, numa corrida contra o tempo, busca soluções na Medicina e, sobretudo, na crença de que Deus não a abandonaria. 
        É-nos apresentado, ainda, uma forte tensão quando a autora se depara com: a possibilidade de realizar hemodiálise, os primeiros pensamentos vinculados à realização de um transplante, a carga dramática que caiu sobre si mesma e sobre a família quando o transplante tornou-se um caminho de efetivo restabelecimento da vida, as incertezas iniciais e, em seguida, o nascimento de uma fé inabalável que a preencheu de esperança ao perceber-se ao lado de pessoas que a amparavam em sua luta. 
         Depois de muitos exames, de incompatibilidades que impediram-na de receber um dos rins de seus familiares próximos tão solícitos, finalmente uma das suas filhas, Déborah, a primogênita, ao fazer exames pôde dar à mãe uma nova chance de viver. Houve, portanto, o tão esperado transplante. Um dos momentos mais tocantes de toda a obra, sem dúvidas, ocorre quando é dada a notícia de que Déborah poderia ser a doadora. Assim que recebe a notícia, a autora repassa para a filha a notícia de que esta poderia restituir-lhe a vida e ambas se envolvem numa cena comovente em que o afeto, a solidariedade e, principalmente, o amor são expressos de modo intenso e comovente.
          A última parte, não menos comovente, é uma transcrição de páginas emocionadas de um diário produzido pela autora após o transplante. A gratidão a Deus e à família surgem recorrentemente. A alusão ao bem que Déborah - a filha-amorosa-guerreira-doadora - proporcionou por meio do seu gesto altruísta, a espera delicada pela reconstituição da saúde, o silêncio intercalado pela saudade de casa, a contemplação lírica da vida ante a expectativa de recuperar o convívio familiar tão desejado surgem aos arroubos. Mas o tema maior dessa obra é, como podemos constatar, a fé, a esperança, a certeza de que Deus, personificado também na presença inestimável da família, pode tudo e muda tudo e cura tudo. 
         Ao concluir a leitura dessa obra, o leitor desejará viver, desejará ter a mesma intimidade que a autora teve com Deus, desejará o mesmo alicerce familiar que a fez lutar mais obstinadamente pela vida, desejará, também, agradecer à Déborah e fazer orações por esta menina-mulher que salvou sua mãe e, sobretudo, desejará encontrar-se com Evanilda, um dos seres humanos mais HUMANOS que alguém poderia conhecer, e abraçá-la, com toda força, para demonstrar o quanto sua experiência de dor pôde ensinar aos que, às vezes, acreditam que viver não vale mais a pena.
       
TEXTO: ÉMERSON CARDOSO


 OBSERVAÇÃO:

Eu fui aluno dessa autora-educadora e posso dar meu testemunho pessoal: como eu queria trazer em mim o mínimo que fosse do caráter, da grandeza de espírito, da força motivadora de que Dona Evanilda é dotada! Antes de ler sua grande experiência de vida eu a admirava em muitos aspectos, agora a admiro muito, muito, muito mais! Nessas caminhadas educacionais a gente sofre muito e se desmotiva, mas peço a Deus que eu tenha em mim ao menos um pouco do amor à Educação que Dona Evanilda evidencia. E mais: o Espírito Santo a inspirou verdadeiramente para a realização desse livro, porque senti que suas palavras tocaram profundamente minha alma. Ela disse que aprendeu muito quando teve contato com outros pacientes que também sofriam de problemas renais. Creio, no entanto, que seus momentos com esses pacientes devem ter sido de intensa generosidade da sua parte para com eles: quem se aproxima dessa educadora não tem como não se sentir reconfortado. E por falar nisso, em uma das visitas que ela realizou à clínica de hemodiálise, ela diz que encontrou uma senhora que muito a impressionou: "Era uma senhora de setenta e oito anos, de corpo franzino, cabelos branquinhos e um par de olhos azuis que deixavam transparecer um temperamento ativo e alegre. Seu bom humor e sua conversa espirituosa animava a sala e contagiava as outras pessoas. Ninguém passava por ela sem ouvir ou dizer um gracejo, e as risadas faziam-se amiúde, naquele ambiente aparentemente triste." (p. 66) Que imagem forte! Somente uma pessoa sensível à causa do outro teria se aproximado tão física e espiritualmente de alguém a ponto de escrever algo como o que foi dito na sequência narrativa: "Como me senti pequena perto dela!" (p. 67) E eu reproduzo seu comentário: como eu me sinto pequeno perto de Dona Evanilda!


Texto produzido em: 24/03/13




            



          
 









quarta-feira, 13 de março de 2013

APÓLOGO - SERES INANIMADOS

Narrativa curta que apresenta seres inanimados (objetos, plantas...) como personagens centrais da narrativa. Em geral, busca ilustrar lições de sabedoria através da personificação desses seres. Segundo D'Onofrio¹ (2000, p.125), o apólogo é: "Historinha que se passa entre objetos inanimados, contendo uma moral implícita ou explícita". Quando se fala em apólogo, no Brasil, o texto que primeiro vem à tona é o "Um apólogo", de Machado de Assis. Lindo texto, mas que está mais que conhecido e reconhecido. Por isso decidi escrever o meu próprio apólogo. Aí está! Espero que leiam e gostem! 


¹ D'ONOFRIO, Salvatore. Teoria do texto 1: prolegômenos e teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 2000.




APÓLOGO DA MESA 
 (ÉMERSON CARDOSO)

Era um dia de festa. As pessoas corriam de um lado para o outro arrumando os últimos detalhes da grandiosa recepção. Em todos os cômodos da mansão havia móveis que, sob vigilância da anfitriã, eram limpos cuidadosamente. Cada móvel tinha sua importância. Todos foram polidos, enfeitados, mudados de lugar.
Mas houve um problema impossível de passar sem dar nas vistas. Enquanto todos os móveis riam no auge da felicidade pela nova roupagem que apresentavam, a mesa, mais reflexiva que o natural, no centro da sala, com olhares de estranhamento e aspecto descontente, permanecia intocada.
Todos os móveis receberam nova coloração, espargiam perfume, alguns receberam toalhas e enfeites novos. Apenas ela, a mesa, permanecia com seu aspecto de sempre: a mesma cor desbotada, desperfumada, sem conserto. O riso e a felicidade dos outros passaram, aos poucos, a incomodá-la. Desse modo, no auge da sensação de inferioridade, no auge da solidão, sentindo-se uma “qualquer”, começou a reclamar-se da vida triste e lamentável a que aqueles seres a submetiam. 
Quem aqueles móveis felizes pensavam que eram? E onde estava a dona da casa que não valorizava a sua presença inestimável? Como poderia ficar calada diante de situação tão adversa a seu ego? Ela tinha direito de reclamar... Ela há anos servia à família que ali residia... Era esse o pagamento recebido por tanto anos de benevolência? Imundos todos! Mereciam alimentar-se no chão como animais, e não em sua reconfortante planície. Queria que todos morressem, que um incêndio destruísse a felicidade daqueles móveis insensatos, que uma enchente destruísse os risos daqueles seres frívolos! O ódio invadiu-a e, se ela pudesse, faria de tudo para desfazer aquela alegria insuportável e sem graça.   
Foi neste instante que gritou contra todos os móveis, e seus enfeites, as mais absurdas injúrias. Expôs o defeitos, as fragilidades, os insucessos dos companheiros com a intenção de fazê-los se sentirem por baixo, assim como ela se sentia. “Se eu não mereço ser bem tratada, ninguém mais merece!”, pensou. Disse tudo o que pensava e, sem se importar com a tristeza que poderia causar aos seus, rebaixou-os com os piores xingamentos. 
Não se deu por vencida e passou a lamentar-se das vezes em que foi bondosa. Atirou sobre os que estavam ao seu derredor o quanto lhes tinham ajudado. Queria fazê-los perceber, com palavras contundentes, o quanto era vítima de injustiça naquele momento. Ódio! Raiva! Rancor! Quanto teria de esperar para morrer e não ver mais tanta maldade e ingratidão?
Depois que cansou de, desequilibrada, criticar a todos, atirando sua raiva contra os mais próximos, aconteceu algo que fez com que ela se calasse. De repente, com muita delicadeza, alguém a limpou, a lustrou e colocou sobre ela uma toalha de rendas. Prepararam-lhe o melhor enfeite. Fizeram dela o centro da festa e todos os convidados, ao longo da recepção, transformaram-na num ponto de referência atrativíssimo – afinal de contas sobre ela estavam as mais perfeitas guloseimas. A mesa, que antes falava com leviandade, ódio, amargor, que havia magoado todos os demais companheiros com seu azedume e despeito, agora estava calada, parecia constrangida pelo mal-estar que havia proporcionado. 
A festa, no entanto, havia acabado para os demais móveis e enfeites da casa. E ela finalmente se deu conta de que fora uma estúpida, invejosa, grosseira e, pedindo desculpas, baixou a vista. Era tarde. Nunca mais conseguiu reconstruir as amizades que, com palavras ferinas e desnecessárias, destruiu.
Um velho relógio, muito sóbrio, a olhou pacientemente e disse: “A paciência é uma grande virtude, porém é um dom tão raro! Estar com raiva é possível, mas ninguém tem o direito de atirar sobre os outros as suas próprias frustrações.”
                                                                                                                                                                                                   Texto escrito em: 06/01/10
PUBLICADO EM: 
CARDOSO, Cícero Émerson do Nascimento. Apólogo da mesa. Revista de Literatura e Artes Boca Escancarada, n. 5, p. 21 - 22, mai. / ago. de 2014. 



terça-feira, 12 de março de 2013

FÁBULA - ANIMAIS ANTROPOMORFIZADOS

Do Latim "fabula" (narrativa, jogo, história e, literalmente, "o que é dito") a "Fábula" corresponde a composições literárias que apresentam, como personagens, animais antropomorfizados, personificados (ou seja: possuem características humanas). Uma das principais características da "Fábula" é o sentido pedagógico que se manifesta através de um ensinamento moral, instrutivo e que leva o leitor à reflexão. Sobre a origem da "Fábula", leiamos: 

"A fábula é um gênero que surgiu no Oriente, mas foi particularmente desenvolvido por Esopo, autor que viveu no século VI a. C., na Grécia Antiga. A Esopo foi atribuído um conjunto de pequenas histórias, de caráter moral e alegórico, cujos papéis principais eram desenvolvidos por animais. Por meio dos diálogos entre os bichos e das situações que os envolviam, ele procurava transmitir sabedoria de caráter moral ao homem. Assim, os animais, nas fábulas, tornam-se exemplos para os seres humanos. Cada animal simboliza algum aspecto ou qualidade do homem como, por exemplo, o leão representa a força; a raposa, a astúcia; a formiga, o trabalho etc. É uma narrativa inverossímil, com fundo didático. Quando os personagens são seres inanimados, objetos, a fábula recebe o nome de apólogo. A temática é variada e contempla tópicos como a vitória da fraqueza sobre a força, da bondade sobre a astúcia e a derrota de preguiçosos. La Fontaine foi outro grande cultor do gênero, imprimindo à fábula grande refinamento. George Orwell, com sua "Revolução dos Bichos" (Animal Farm), compôs uma fábula (embora em um sentido mais amplo e de sátira política)."


Essa informação saiu daqui: http://pt.wikipedia.org/wiki/fabula


EXEMPLO:

O ESCORPIÃO E A RÃ
(Rubem Alves)

          Um dia a floresta pegou fogo. E incêndio não tem medo de rabo de escorpião. Só havia um jeito de fugir da morte: era atravessando o rio, para o outro lado. Os bichos que sabiam nadar pulavam na água, levando seus amigos nas costas. Mas o escorpião nem tinha amigos nem sabia nadar. E não havia ninguém que se arriscasse a oferecer-lhe carona.
       O escorpião então, valentia e coragem sumidas ante o fogo que se aproximava, foi forçado a se humilhar. Dirigiu-se com voz mansa à rã, que se preparava para a travessia.
          - Por favor, me leve nas suas costas - ele disse.
          - Eu não sou louca. Sei muito bem o que você faz a todos que se aproximam de você - replicou a rã.
        - Mas veja - argumentou o escorpião -, eu não posso picá-la com o meu ferrão. Se o fizesse você morreria, afundaria, e eu junto, pois não sei nadar.
        A rã ponderou que o raciocínio estava certo. Podia ser que o escorpião fosse muito feroz, mas não podia ser burro. Todo mundo ama a vida. O escorpião não podia ser diferente. Ele não iria matar, sabendo que assim se mataria... E como tinha bom coração resolveu fazer esta boa ação. 
          - Muito bem - disse a rã ao escorpião. - Suba nas minhas costas. Vou salvar sua vida...
         O escorpião se encheu de alegria, subiu nas costas lisas da rã, e começaram a travessia.
         Que coisa - ele pensou -, é a primeira vez que me encosto em alguém de corpo inteiro. Antes era só o ferrão... E até que não é ruim. O corpo da rã é bem maciinho...
         Enquanto isso, a rã ia dando suas braçadas tranquilas, nado de peito, deslizando sobre a superfície. 
         - E como é gostoso navegar - continuou o escorpião nos seus pensamentos. - Estes borrifos de água, como são gostosos. É bom ter a rã como amiga...
         Estavam bem no meio do rio. O escorpião olhou para trás e viu a floresta em chamas. 
         - Se não fosse a rã, eu estaria morto neste momento. 
        E um estranho sentimento, desconhecido, encheu seu coração: gratidão. Nem sempre veneno e ferrão são a melhor solução. A vida estava com a rã, macia e inofensiva, que não inspirava medo a ninguém...      
     Sentiu seu corpo descontrair-se. Achou que a vida era boa... Era bom poder baixar a guarda e descansar.
        Voltou-se de novo para trás para olhar a floresta incendiada. Mas, ao fazer isto, viu-se refletido, corpo inteiro, na água do rio que brilhava à luz do fogo. E o que viu o horrorizou: seu rabo, dantes ereto, agora dobrado, desarmado. Escorpião de rabo mole... Todos ririam dele. E sentiu um ódio profundo da rã.
        - Espelho, espelho meu, existe bicho mais terrível que eu? 
        A resposta estava naquele rabo mole, refletido no espelho da água. E a única culpada era a rã...
        Sem um outro pensamento enrijeceu o rabo e o enfiou nas costas da rã.
        A rã morreu. E com ela o escorpião.
        A estupidez do poder é maior que o amor à vida.

ALVES, Rubem. O escorpião e a rã. São Paulo: Loyola, 1989. p. 10.