domingo, 12 de outubro de 2014

"HERMAFRODITO" - SEGUNDO O DICIONÁRIO DE PIERRE GRIMAL

"Sálmacis abraçou Hermafrodito",
de Francesco Alberoni, 1633
Dá-se geralmente o nome de Hermafrodito a todos os seres cuja natureza é dupla, simultaneamente masculina e feminina. Mais particularmente, os mitógrafos referem, com este nome, um filho de Afrodite e Hermes de quem eles contam a seguinte lenda: Hermafrodito, cujo nome evocava simultaneamente os nomes de sua mãe e de seu pai, fora educado pelas Ninfas nas florestas do Ida, na Frígia. Era dotado de grande beleza e, quando fez quinze anos, começou a correr o mundo. Viajava pela Ásia Menor. Um dia, encontrando-se na Cária, chegou às margens dum lago maravilhosamente belo. A ninfa do lago, chamada Sálmacis alcançou-o e abraçou-se-lhe. Hermafrodito tentou, em vão, afastá-la de si. Ela entretanto elevou uma prece aos deuses, pedindo-lhes que fizessem com que os dois corpos jamais se separassem. Os deuses escutaram-na e uniram-nos num novo ser, de natureza dupla. Mas, por seu lado, Hermafrodito obteve do céu que todo aquele que se banhasse nas águas do lago Sálmacis perderia a sua virilidade. No tempo de Estrabão, ainda se atribuía ao lago este efeito.

Muito frequentemente, pelo menos nos monumentos figurados, Hermafrodito é representado entre os companheiros de Dioniso.

GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. Tradução de Victor Jabouille. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. p. 223.

NOTA DE REPÚDIO SOBRE O USO DO TERMO "HOLOCAUSTO" EM TEMPOS DE ELEIÇÃO

Por ocasião desta preocupante eleição de 2014, tive acesso a uma postagem que trazia o seguinte título: Comunidade médica prega holocausto no Nordeste em campanha contra Dilma na web. Esta comunidade tem por título Dignidade Médica e é administrada, dentre outras pessoas, pela médica Patricia Sicchar, que atua na Secretaria de Saúde de Manaus.
           Após reportagem do iG, realizada por Carolina Garcia, que denunciava o teor obscuro das postagens na referida comunidade, houve alteração da foto do perfil desta e foi escrita, de forma anônima, uma nota de repúdio em que um suposto membro do grupo afirmava serem inverídicas as acusações feitas pela jornalista que realizara a matéria. Com isto, uma espécie de “disse-não-disse” parece surgir sem que, contudo, o termo “holocausto” seja vislumbrado com o grau de complexidade que ele suscita.
           "Holocausto", conforme sugere o dicionário*, corresponde à “imolação de vítima através do fogo”; significa, também, “sacrifício, expiação”. É claro que, se relacionarmos este termo ao que ocorreu por ocasião do governo totalitário perpetrado pelo Nazismo, esta palavra torna-se mais densa, complexa e, mais que isto, indigesta, absurda e deplorável.
Claro que não é inteligente, da minha parte, cair de todo numa visão niilista diante da vida, mas lidar com a ideia de que alguém pode citar o termo "holocausto", em pleno século XXI, sob o calor da emoção de uma MERA DISPUTA POLÍTICA, não me possibilita crer que haja possibilidades de redenção para esta humanidade tristonha, frágil e mórbida que eu integro.
No ímpeto emotivo que alguns vivenciam, em decorrência de suas posições políticas, surgem muitas mensagens cujo teor pode ser agressivo, mas nenhuma mensagem, a meu ver, me causou tamanho mal-estar e indignação. Eu jamais poderia pensar que essa vergonhosa palavra poderia ressurgir, desta feita direcionada como o correto a ser feito com pessoas do Nordeste – região a que eu pertenço – apenas porque alguns desta região exerceram o direito que lhes foi conferido, pela tão ansiada democracia, de votar em quem lhes aprouvesse.
A propósito, não estou a escrever este texto para fazer apologia a partido A ou B, também não quero tecer críticas a ninguém por ocasião do partido que defende – filiar-se a um partido e argumentar em prol deste é um direito que assiste ao cidadão depois de muitas lutas. Em verdade, escrevi esse texto porque estou estarrecido com o fato de que há quem seja capaz de revitalizar, inadvertidamente, a palavra mais trágica da história da humanidade, a meu ver.
O iG, com teor sensacionalista ou não, apontou como advindo de um ou outro profissional da saúde – sei que muitos profissionais da saúde exercem com dignidade ímpar seu trabalho tão indispensável à vida humana, portanto não me refiro à classe médica, mas a indivíduos específicos – o uso nefasto dessa palavra maligna e, com isto, logo me vem à mente o conceito de Hannah Arendt acerca da banalização do mal. Tão propensos alguns estão a agir de forma desumana que, sem ser capaz de avaliar seus pensamentos, palavras, atos e (não) omissões, tocam em um termo como esse sem sequer problematizá-lo.  
Não me interessa saber se quem postou ou deixou de postar tal mensagem foi a administradora da comunidade, ou se foi um dos membros, o fato é que alguém a citou e isto, no mínimo, é degradante. A sensação de medo e desconforto, também de desencanto e descrença, que essa postagem me causou não tem precedentes.
No iG foi dito que a médica defendeu-se das acusações com a seguinte frase: "Holocausto é uma revolução do agir. Nada do que vocês [jornalistas] entendem". Como disse, não quero atirar pedras em ninguém, no entanto não posso compactuar com essas ideias que, desde que eu li, têm me causado angústia e têm tirado minha paz. “Holocausto”, ó céus, ser considerado uma “revolução”? E uma “revolução do agir”? O que ela teria querido dizer? Como assim “revolução do agir”?
Para não expurgar mais do que me parece necessário, finalizarei meu texto. Sugiro, portanto, que, antes de qualquer divergência política, o interessante a fazer é realizar uma “revolução do agir”, ou seja, passar a agir com coerência, solidariedade, bom senso e, sobretudo, respeito. Faz-se necessário refletir sobre o que tem sido falado, escrito, debatido, porque nós poderemos incorrer em discriminação, preconceito e racismo a qualquer momento - e isto não pode ser tolerado. Penso que o ódio não pode suprimir a necessidade de sermos fraternos, nem considero correto sofrermos todos com as afrontas e agressões que têm sido propagadas pela mídia em decorrência dessa eleição. Que vença um ou outro – este me parece um problema que tem sua importância em outro aspecto –, mas que nós não percamos a capacidade de pensar, ação tão necessária para que de fato a política se efetive.
Espero que a palavra "holocausto" seja, daqui para frente, analisada com o peso semântico que ela de fato comporta. Espero, também, que as pessoas que insinuaram tal absurdo não se deixem levar por “verdades” obsoletas que, há poucos anos, dizimaram seis milhões de seres humanos em decorrência, dentre outros fatores, de uma notória ausência de bom senso e sensibilidade.
Enfrentar tantos dissabores como os que nós, nordestinos, enfrentamos e, ainda assim, construirmos, com altivez, a história cultural, política e socioeconômica deste país, como nós temos feito, não é para qualquer um. Para instigar algumas pessoas a pensar sobre o assunto, vou retomar uma frase de Marguerite Yourcenar que tenho repetido com veemência: “O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos, pela primeira vez, um olhar inteligente sobre nós mesmos”. Façamos isto, portanto.
Texto de: Émerson Cardoso


* LUFT, Celso Pedro. Minidicionário Luft. São Paulo: Ática, 2000.  

"ANDRÔMEDA" - SEGUNDO O DICIONÁRIO DE MITOLOGIA DE PIERRE GRIMAL

"Andrômeda acorrentada ao rochedo",
de Paul Gustave Doré, 1869

 Andrômeda é a filha de Cefeu, o rei da Etiópia, e de Casiopeia. A sua mãe pretendia ser mais bela do que todas as Nereidas. Ciumentas, estas pediram a Posídon que as vingasse de tal afronta. Para lhes agradar, Posídon fez aparecer um monstro que assolava o país de Cefeu. Interrogado pelo rei, o oráculo de Ámon predisse que a Etiópia ver-se-ia livre deste flagelo se a filha de Cassiopeia fosse exposta como vítima expiatória. Os Etíopes forçaram Cefeu a consentir no sacrifício e prenderam, então, a jovem a um rochedo. Perseu, no regresso da sua expedição contra Gorgo, viu-a, apaixonou-se por ela e prometeu a Cefeu que lhe libertaria a filha se ele consentisse em dar-lha como esposa. Cefeu aceitou. Perseu matou o monstro e desposou Andrômeda. Entretanto Fineu, um irmão de Cefeu, que já estivera noivo da jovem, sua sobrinha, conspirou contra Perseu. Mas este descobriu a conspiração e voltou contra os seus inimigos a cabeça de Gorgo, que os transformou em pedra. Quando deixou a Etiópia, Perseu levou consigo Andrômeda para Argos, e depois para Tirinte. Aqui, Andrômeda deu-lhe vários filhos e uma filha. 

Constelação de Andrômeda
Existe uma interpretação racionalista da lenda, referida por Cônon. Segundo esta versão, Cefeu reinava sobre o país que mais tarde se chamou Fenícia, mas que nesta altura se chamava Íope, do nome da cidade costeira homônima. O seu reino estendia-se desde o Mediterrâneo até à região dos Árabes e ao mar Vermelho. Cefeu tinha uma filha muito bela, Andrômeda, cortejada por Fênix, o epônimo da Fenícia, e pelo seu tio Fineu, o irmão de Cefeu. Após muita hesitação, Cefeu decidiu dar a filha a Fênix, mas não quis dar a entender que a recusava a seu irmão, e então simulou um rapto. Levariam Andrômeda para uma ilha onde ela habitualmente fazia sacrifícios a Afrodite. Fênix desempenhou-se disto, fazendo-a embarcar num barco a que dera o nome de A Baleia. Quanto a Andrômeda, como ignorava tratar-se apenas duma encenação para enganar o seu tio, gritava, pedindo socorro. Ora, por acaso, Perseu, o filho de Dânae, passava nessa altura. Viu a jovem a ser raptada e, ao primeiro olhar, apaixonou-se. Lança-se sobre a embarcação, volta-a, deixa os marinheiros paralisados com o susto e leva consigo Andrômeda, com quem casa. Depois disto, reina tranquilamente em Argos. 

GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. Tradução de Victor Jabouille. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. p. 26

SOBRE A PINTURA "O TEMPO, AS VELHAS", DE GOYA

"O tempo, as Velhas" (1808 - 1812), 
Francisco de Goya y Lucientes, 
Óleo sobre tela, 181 x 125 cm, 
Lille, Museu de Belas Artes

Almeida (2004), em estudo sobre personagens idosas de Clarice Lispector, recorre à pintura O tempo, as Velhas, de Francisco de Goya y Lucientes, pintor espanhol, como ilustração para suas considerações sobre a representação do grotesco que, em Clarice Lispector, se daria a partir da caracterização da personagem idosa do conto A partida do trem

"Trata-se do retrato de duas velhas encarquilhadas que, duvidosas, refletem-se no espelho. A pintura remonta a dicotomia da beleza perdida na velhice, ainda que haja uma tentativa vã de recuperá-la através do excesso de joias, adereços e roupas em ambas as figuras, a possível patroa e sua empregada. O efeito aterrador é provocado por essa excessividade grotesca da aparência externa que não se coaduna com o corpo, não se verifica uma incorporação equilibrada de vestes e adereços aos corpos das velhas. Para a construção dessa cena sombria, utilizam-se técnicas "monocromáticas" (Baticle, 1989, p. 103) com o uso dos negros brilhantes e profundos, opostos a ocres cálidos, azuis crus, verdes apagados e salpicados e o roxo. Por apresentar no cabelo a famosa flecha de diamantes usada pela rainha María Luisa, a velha dama proeminente à direita pode ter sido o alvo da sátira do pintor, que já nessa época não temia represálias, uma vez que a nobre decaía no gosto popular por também ser responsabilizada pelos desastres da invasão napoleônica na Espanha, tão magnificamente representada em outros quadros do próprio Goya. Outra versão (Gudiol, 1986, p. 25) que explica essa corajosa visão ácida do pintor é de que esse trabalho tenha sido realizado após a forçosa abdicação do Rei Carlos IV e sua rainha em 1807". 

ALMEIDA, Joel Rosa de. Retratos de personagens velhas. In: A experimentação do grotesco em Clarice Lispector: ensaios sobre literatura e pintura. São Paulo: Nankin Editorial / EDUSP, 2004. 

LEITURA: "A ESCOLA DA MESTRA SILVINA", DE CORA CORALINA


A ESCOLA DA MESTRA SILVINA

Minha escola primária...
Escola antiga de antiga mestra.
Repartida em dois períodos
para a mesma meninada,
das 8 às 11, da 1 às 4.
Nem recreio, nem exames.
Nem notas, nem férias.
Sem cânticos, sem merenda...
Digo mal - sempre havia
distribuídos
alguns bolos de palmatória...
A granel?
Não, que a Mestra
era boa, velha, cansada, aposentada.
Tinha já ensinado a uma geração
antes da minha.
A gente chegava “- Bença, Mestra.”
Sentava em bancos compridos,
escorridos, sem encosto.
Lia alto lições de rotina:
o velho abecedário,
lição salteada.
Aprendia a soletrar.
Vinham depois:
Primeiro, segundo,
terceiro e quarto livros
do erudito pedagogo
Abílio César Borges -
Barão de Macaúbas.
E as máximas sapientes
do Marquês de Maricá.

Não se usava quadro-negro.
As contas se faziam
em pequenas lousas
individuais.

Não havia chamada
e sim o ritual
de entradas, compassadas.
“- Bença, Mestra...”

Banco dos meninos.
Banco das meninas.
Tudo muito sério.
Não se brincava.
Muito respeito.
Leitura alta.
Soletrava-se.
Cobria-se o debuxo.
Dava-se a lição.

Tinha dia certo de argumento
com a palmatória pedagógica
em cena.
Cantava-se em coro a velha tabuada.
Velhos colegas daquele tempo...
Onde andam vocês?

A casa da escola inda é a mesma.
- Quanta saudade quando passo ali!
Rua Direita, nº 13.
Porta de rua pesada,
escorada com a mesma pedra
da nossa infância.

Porta do meio, sempre fechada.
Corredor de lajes
e um cheirinho de rabugem
dos cachorros de Samélia.
À direita - sala de aulas.
Janelas de rótulas.
Mesorra escura
toda manchada de tinta
das escritas.
Altos na parede, dois retratos:
Deodoro, Floriano.

Num prego de forja, saliente na parede,
estirava-se a palmatória.
Porta de dentro abrindo
numa alcova escura.
Um velhíssimo armário.
Canastras tacheadas.
Um pote d’água.
Um prato de ferro.
Uma velha caneca, coletiva,
enferrujada.
Minha escola da Mestra Silvina...
Silvina Ermelinda Xavier de Brito.
Era todo o nome dela.

Velhos colegas daquele tempo,
onde andam vocês?

Sempre que passo pela casa
me parece ver a Mestra,
nas rótulas.
Mentalmente beijo-lhe a mão.
“- Bença, Mestra.”
E faço a chamada de saudade
dos colegas:
Juca Albernaz, Antônio,
João de Araújo, Rufo.
Apulcro de Alencastro,
Vítor de Carvalho Ramos.
Hugo das Tropas e Boiadas.
Benjamim Vieira.
Antônio Rizzo.
Leão Caiado, Orestes de Carvalho.
Natanael Lafaiete Póvoa.
Marica. Albertina Camargo.
Breno - “Escuto e tua voz vai
se apagando com um dolente ciciar
de prece”.
Alberico, Plínio e Dante Camargo.
Guigui e Minguito
de Totó dos Anjos.
Zoilo Remígio.
Zelma Abrantes.
Joana e Mariquinha Milamexa.
Marica Albertina Camargo.
Zu, Maria Djanira, Adília.
Genoveva, Amintas e Teomília.
Alcides e Magnólia Craveiro.
Pequetita e Argentina Remígio.
Olímpia e Clotilde de Bastos.
Luisita e Fani.
Nicoleta e Olga Bonsolhos.
Laura Nunes.
Adélia Azeredo.
Minha irmã Helena.
(Eu era Aninha.)
Velhos colegas daquele tempo.
Quantos de vocês respondem
esta chamada de saudades
e se lembram da velha escola?

E a Mestra?...
Está no Céu.
Tem nas mãos um grande livro de ouro
e ensina a soletrar
aos anjos.

©CORA CORALINA
In Poema dos Becos de Goiás e Estórias Mais, 1965 

RESENHA CRÍTICA: "HANNAH ARENDT: IDEIAS QUE CHOCARAM O MUNDO"



HANNAH ARENDT: IDEIAS QUE CHOCARAM O MUNDO. Direção de Margarethe von Trotta. Produção: Heimatfim Gmbh. Elenco: Barbara Sukowa, Axel Milberg, Janet McTeer.  Alemanha / França: 2012. Filme (109 min). Drama.

No filme O Leitor (2009), de Stephen Daldry – que rendeu a Kate Winslet, vivendo a personagem Hanna Schmitz, os mais importantes prêmios cinematográficos de 2009 –, uma personagem feminina é julgada e condenada por seus crimes contra a comunidade judaica. O enredo conduz o expectador a acompanhar o drama dessa personagem e compreender que, de certa forma, ela estava condicionada a cumprir ordens sem, necessariamente, pensar sobre seus atos, muito menos questioná-los. Este filme é baseado na obra de mesmo título do escritor alemão Bernhard Schlink, publicada em 1995.
Em Hannah Arendt: ideias que chocaram o mundo (2013), de Margarethe von Trotta,  vem à tona, desta feita baseada na história de Hannah Arendt (1906 – 1974), vivida pela atriz Barbara Sukowa, as ideias instigantes dessa pensadora que, com a finalidade de escrever uma reportagem para o The New Yorker sobre o julgamento de Adolf Eichmann, em Israel, produziu uma das obras mais polêmicas do século XX: Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal (1963).
Para o mundo (e o filme de Trotta retrata isto enfaticamente), foi considerado paradoxal o fato de que uma judia, que sofreu de perto a experiência proporcionada pelos ideais nazistas, tenha considerado, em detrimento da opinião pública, que Adolf Eichmann não era tão monstro como todos o consideravam, por ocasião de seu julgamento.
Ao considerar que nem todos os que praticaram os crimes de guerra eram monstros, e que alguns judeus participaram da matança dos seus iguais, Hannah Arendt foi “bombardeada” por críticas até de pessoas mais próximas. Alguns a consideraram fria, inflexível e arrogante.
Em carta endereçada a Gershom Scholem, Hannah Arendt afirma (TEIXEIRA, 2013, p. 102)[1]: “O pensamento tenta atingir a profundidade, tocar nas raízes, e, no momento em que se ocupa do mal, se frustra porque não encontra nada”.
Uma das principais discussões de Hannah Arendt, que surge de modo recorrente ao longo de sua obra, diz respeito à sua concepção sobre “o mal” – desta feita, o mal que vai ao seu extremo por meio do totalitarismo que teria nos campos de concentração nazista, disseminados por Adolf Hitler, sua manifestação por excelência. O mal, conforme nos apresenta Hannah Arendt, já perpassara o absurdo em decorrência dos conflitos envolvendo, por exemplo, a Alemanha e seus ideais nazistas. Pensar os atos dos envolvidos nos campos de concentração numa perspectiva do mal, portanto, suscitaria repensar a própria ideia de mal. Desse modo, ao assumir, submetidos a imposições burocráticas, a condição de executores de judeus nos campos de extermínio, estes estariam cumprindo ordens que estariam além de suas capacidades de pensar sobre a ação que executavam.
Com isso, Hannah Arendt concebe a ideia de “banalização do mal” que consistiria na ideia de que o indivíduo não concebe mais pensamentos por si mesmo, antes este estaria vinculado a uma lógica que o forçaria a submeter-se e o tornaria incapaz de conceber um pensamento que problematizasse aquilo a que, burocraticamente, estaria forçado a fazer.   
          Em Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, Hannah Arendt discorre com mais precisão sobre o que ela denomina “banalização do mal”. Sua tese é a de que Eichmann, frente ao absurdo proveniente do nazismo, seria “a personificação” dessa banalidade. Ele, nesta perspectiva, não passaria de um funcionário público impelido a cumprir, inopinadamente, seu dever.
Em suma, a racionalidade e o cientificismo, para Hannah Arendt, se constituem como condição sine qua non para que cerca de seis milhões de judeus fossem mortos. A tecnologia empregada para fins de extermínio mostrou-se uma ação tão cínica quanto eficiente, tão malevolente quanto burocratizada e, em decorrência disso, vários funcionários públicos, obrigados a cumprir o que era determinado pelo cargo que exerciam, tornaram-se produto do nazismo. A estes era dada uma ordem e eles eram, segundo Hannah Arendt, obrigados a cumpri-la por serem impossibilitados de pensar sobre seus atos.
Além das atuações vigorosas, essa obra cinematográfica acerta quanto à discussão de temas complexos que dá à obra a tensão necessária para que o expectador se aproxime das ideias dessa personalidade feminina complexa. O filme retoma fatos importantes da vida de Hannah Arendt por meio de flashbacks, apresenta diálogos criativos e bem delineados. São merecedores de elogio, também, a direção e a edição do filme. Trata-se de um filme que merece ser visto e que, além de instigar o expectador a conhecer as ideias dessa filósofa-professora-repórter, também suscita uma reflexão sobre a capacidade que o indivíduo deveria trazer em si de pensar.
Hannah Arendt nasceu em 14 de outubro de 1906, na Alemanha, e faleceu em 04 de dezembro de 1974, nos Estados Unidos. Dentre suas principais obras podemos destacar: As origens do totalitarismo (1951), A condição humana (1958), Sobre a revolução (1963) e Eichmann em Jerusalém (1963). E a diretora alemã Margarethe von Trotta, além de dirigir Hannah Arendt: ideias que chocaram o mundo, dirigiu também: Os anos de chumbo (1981), Rosa de Luxemburgo (1986), Felix (1987) e A promessa (1995).                                                      

Cícero Émerson do Nascimento Cardoso




[1] TEIXEIRA, Jerônimo. A radicalidade da inteligência. In: Revista Veja,  São Paulo, jul. de 2013, p. 100 – 102.