sábado, 30 de maio de 2015

O QUE OCORRE COMIGO?


Foge de mim a realidade quando pelas ruas ando – nem sempre ocorre, é certo. Quando ocorre, porém: meu olho fixa algo que está além do que me possibilita a visão. Não diferencio o mundo interior do mundo exterior: torno-me vazio e preenchido como se personificasse o claro do dia nas sombras da noite.

Meus olhos entram em espaço contíguo que sequer caberia a mim, quando pelas ruas ando. Alguma voz ou face humana, algum barulho ou invenção moderna, tiram-me, de quando em vez, do mundo em que mergulho. Estar fora do concreto das coisas é uma ação que não posso evitar – caio no fora e percebo-me no dentro. Dentro de quê? De quem? Câmera de um filme que vislumbra detalhes invisíveis: meus olhos padecem por saberem perscrutar o invisível. Cânticos gregorianos tumultuam meus ouvidos – e as pessoas que me veem não sabem que são figurantes de um filme de morbidez sem fim.

Quando ando sozinho pelas ruas, minha voz resguarda canções inexpressivas, línguas incompreensíveis, poemas indecifráveis. Monge solitário que precisa conviver, por algum motivo, com o mundo prático eu sou. Meu corpo é um mosteiro de paredes espessas, e a alma cheia de medos e necessidades grita aprisionada. Viver é uma escadaria a ser percorrida com sofreguidão, mas no topo há um templo aberto para que eu cante paz de espírito e silêncio...

Ninguém sabe, não sei me expressar bem... Quando sozinho estou torno-me um monge perdido e simples que espera olhares de benevolência – minhas mãos vazias pedem envergonhadas um bocado de Deus que me valha e cure. Não sei ser com o corpo em fráguas, com a dor em mim, com o olhar do outro... Não sei ser com o meu olhar covarde e frígido e desumano quase sempre. Meu olhar, quando caminho solitário, percebe do pecado minha dor ingente. Sou gente, mas não me vejo assim quando em mim crescem sentimentos involuntários. 

Cada passo queria que fosse um encontro a mais com o perdão e suas falanges místicas: como posso amar o que é humano se o que há de humano em mim dói por ser humano? Nem eu mesmo entenderia. Mesquinharias humanas percorrem meu corpo – sou o que poderia ter paz mas não se deu ao luxo. Se eu pudesse entrar, de vez, nesse mundo que meu olhar vislumbra, a vida seria plena. Palavra alguma explicaria o que desejo... Enquanto isso, meu corpo marcha perdido comigo dentro: e a vida prática deseja me devassar. Fecho por alguns segundos os olhos: nada me vem como consequência disto. Caindo, o corpo me abraça de vez a alma. E a realidade brinca em meu olhar como se quisesse apresentar pontos positivos e negativos: não sou real, não sei ser o que se convencionou ser humano, não sei conjugar o verbo que me daria a mim mesmo mais que eu pudesse entender. E ando sozinho sempre, mesmo quando em companhias estou por algum motivo.

Émerson Cardoso

30/05/15

quinta-feira, 28 de maio de 2015

LEITURA: "BALADA DA CHICA DA SILVA", DE STELLA LEONARDOS


“Jambá tuca rirá ô quê!”...[1]
Vissungo coligido por Aires da Mata Machado Filho

BALADA DA CHICA DA SILVA
(Stella Leonardos)

Solo
“Jambá tuca rirá ô quê!

Coro
 Jambá catussira rossequê

Solo
Rio, Rio”.

– Meu pai, me conta da Chica
– a das estrelas dos antes
Das catas de Serro Frio,
Sinhá de José Fernandes
o branco do desvario.

– De quem aquele navio
a um lago absurdo indagando?
Da nêga Chica da Silva
Sinhá de José Fernandes.
Não há mar em Serro Frio
mas há, de sobra, diamante.
A nêga sentiu capricho
  navegante.

Jambá jambi jombô
   Chica da Silva
        sonhou.

De quem esses atavios
de estrelas não vistas dantes?
Da nêga Chica da Silva
Sinhá de José Fernandes.
Não há corte em Serro Frio
mas há, de sobra, diamante.

A nêga veste capricho
         cintilante.

Jambá jombô jambi.
   Chica da Silva
         sorri.

De quem o olhar de cobiça
e essas garras se ocultando,
ô nêga Chica da Silva
sinhá de José Fernandes?
Do hóspede de Serro Frio
onde há, de sobra, diamante.
Do Conde vilão, capricho
        vigilante.

Jambi jombô jambá.
   Chica da Silva
        sinhá.

De quem esses olhos-rios
de saudade rebrilhando?
Da nêga Chica da Silva.
Levaram José Fernandes.
(Adeus Chica, e Serro Frio,
e contrato de diamante!)
Ai Chica chorando dia
     de amante!

Jambá jambi jombô
   Chica da Silva
        chorou.

– E depois: que houve com Chica,
sinhá de José Fernandes,
a nêga de Serro Frio?
Será que o que andou chorando
é hoje estrela de rio?



LEONARDOS, Stella. Romanceiro da Abolição. São Paulo: Melhoramentos, 1986. 






[1] “Jambá tuca rirá”... – Se bem que orongoia seja diamante, Aires da Mata Machado Filho nos dá o “fundamento” do vissungo assim: “O menino grita para o pai que encontrou um diamante; este responde que o esconda no cascalho e – Silêncio!” (O Negro e o Garimpo em Minas Gerais). Jambá, jambi, jombô – Significam: ouro, capim e lama preta. Dialeto crioulo de São João da Chapada, Minas Gerais. Estrela – Diamante de qualidade. Conde – de Valladares (José Luís Menezes de Castelo Branco e Abranches). 

LEITURA: "ROMANCE XIV OU DA CHICA DA SILVA", DE CECÍLIA MEIRELES


(Cecília Meireles)

(Isso foi lá para os lados
do Tejuco, onde os diamantes
transbordavam do cascalho.)

Que andor se atavia
naquela varanda?
É a Chica da Silva:
A Chica-que-manda!

Cara cor da noite,
olhos de cor de estrela.
Vem gente de longe
para conhecê-la.

(Por baixo da cabeleira,
tinha a cabeça raspada
e até dizem que era feia.)

Vestida de tisso,
de raso e de holanda,
– é a Chica da Silva:
A Chica-que-manda!

Escravas, mordomos,
seguem, como rio,
a dona do dono
do Serro do Frio.

(Doze negras em redor
– como as horas, nos relógios.
Ela, no meio, era o sol!)

Um rio que, altiva,
dirige e comanda
a Chica da Silva:
a Chica-que-manda.

Esplendem as pedras
por todos os lados:
são flechas em selvas
de leões marchetados.

(Diamantes eram, sem jaça,
por mais que muitos quisessem
dizer que eram pedras falsas.)

Mil luzeiros chispam,
à flexão mais branda
da Chica da Silva
da Chica-que-manda!

E curvam-se, humildes,
fidalgos farfantes,
à luz dessa incrível
festa de diamantes.

(Olhava para os reinóis
e chamava-os “marotinhos”!
Quem viu desprezo maior?)

Gira a noite, gira,
dourada ciranda
da Chica da Silva,
da Chica-que-manda.

E em tanque de assombro
veleja o navio
da dona do dono
do Serro do Frio.

(Dez homens o tripulavam,
para que a negra entendesse
como andam barcos nas águas.)

Aonde o leva a brisa
sobre a vela panda?
– À Chica da Silva:
à Chica-que-manda.

À vênus que afaga,
soberba e risonha,
as luzentes vagas
de Jequitinhonha.

(À Rainha de Sabá,
num vinhedo de diamantes
poder-se-ia comparar.)

Nem Santa Ifigênia,
toda em festa acesa,
brilha mais que a negra
na sua riqueza.

Contemplai, branquinhas,
na sua varanda,
a Chica da Silva,
a Chica-que-manda!

(Coisa igual nunca se viu.
Dom João Quinto, rei famoso,
não teve mulher assim!)


MEIRELES, Cecília. Romanceiro da Inconfidência. Porto Alegre: LP&M, 2013.

segunda-feira, 25 de maio de 2015

ROMANCE DA CATEQUISTA

          
Para D. Maria Gonçalves (a aniversariante mais ilustre deste mês)

ROMANCE DA CATEQUISTA
(ou da moradora da Rua Marechal Dutra)

Dona Maria, Mariinha,
Ensinava esta canção:

Meu coração é só de Jesus
E a minha alegria é a santa cruz!
Nada mais desejo, não quero, senão,
Que viva Jesus no meu coração!

Maio brilhou em seus olhos,
Maio sorriu em seus lábios.
Se Deus me convida: vou!
Eu vou, pois Deus me convida!

Seus cabelos ondulados
São sementes de algodão
Que Deus semeou na terra
E cresceram fertilmente!

Maio dançou em seus passos,
Maio brincou em seu rosto.
Se Deus me convida: vou!
Eu vou, pois Deus me convida!

Dona Maria, Mariinha,
Um diminutivo-grande
Que de ternura irrompia
Em vozes que a veneravam.

Teria querido ser freira?
Seria freira singelíssima!
Ela casou muito cedo?
Uma mãe amabilíssima!

Mas a igreja a convidava,
Pois Deus a queria por perto.
  Se Deus me convida: vou!
Eu vou, pois Deus me convida!

Ela jamais hesitou:
Eu vou! A igreja precisa!
Para sempre catequista.
Deus tocou seu coração.

Sois cristãos? E quem é Deus?
E os mandamentos: são quais?
Com mão direita se benza!
Obedeça a Deus e aos pais!

Quantos olhos vislumbraram
Os olhos de estrela d’água
Desta catequista afável
De inúmeras gerações?

 Seus cabelos ondulados
São capuchos de algodão
Que Deus semeou na terra
Para uma vocação!

Dona Maria, Mariinha,
Canta eternamente assim
Na memória das crianças:

Meu coração é só de Jesus
E a minha alegria é a santa cruz!
Nada mais desejo, não quero, senão,
Que viva Jesus no meu coração!



Émerson Cardoso

25/05/15

segunda-feira, 18 de maio de 2015

LEITURA: "ANIVERSÁRIO", DE FERNANDO PESSOA (ÁLVARO DE CAMPOS)


No TEMPO em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa como uma religião qualquer.

No TEMPO em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas
lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

sábado, 9 de maio de 2015

"ANGELUS" PARA UM NASCIMENTO CARDOSO



“O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos, pela primeira vez, um olhar inteligente sobre nós mesmos”.
     (Marguerite Yourcenar)

Não sei se meus conterrâneos atentaram para isto, mas boa parte dos nascidos em Juazeiro do Norte (os da minha faixa etária, pelo menos) nasceu na Rua São Benedito – a rua, para mim, mais importante da cidade.

Nesta rua, localiza-se o Hospital Maternidade São Lucas – que, segundo comentário dos veteranos da cidade, era o antigo cemitério dos bexiguentos. Este hospital tem aos fundos a Rua Santa Teresa (rua em que morava minha Tia Etelvina, com quem morei por muito tempo, sobretudo na adolescência); à direita tem muro colado à Igreja de São Miguel (onde: minha mãe casou, minhas irmãs e eu fomos batizados e onde eu fui crismado), que se localiza à Rua São Francisco; à esquerda há a Rua da Conceição – alguns pensam que é alusão à Nossa Senhora da Conceição, mas poucas pessoas contavam com a astúcia do sagrado/profano em vigência na cidade: Conceição é, em verdade, o nome de uma mulher, pouco dada a moralismos aprisionadores do corpo feminino, que morou nesta rua e cujo nome foi preservado. 

Há nome de santo para todos os lados: resquícios da influência do pensamento religioso ainda forte nessa cidade que cresceu sob a égide do Padre Cícero Romão Batista – santo para uns, grande político de batina para outros.

Minha mãe me disse que, no domingo de um ano bissexto, quando na Igreja de São Miguel os sinos tocavam convidando os fiéis para a missa das 19h, eu nasci. De fato, em minha certidão de nascimento consta que nasci às 18h – hora em que o sol despedia-se da terra privando-a de seus raios luminosos, e hora em que o angelus é ecoado nas igrejas. Luiz Gonzaga cantava a Ave Maria Sertaneja em algum lugar do Nordeste quando eu nascia – é o que gosto de imaginar.     

Nasci em 20 de maio do penúltimo ano da ditadura militar (que muito fustigou o povo brasileiro com seu regime autoritário). Quando nasci, com certeza, na cidade era perceptível ver pessoas vestidas de luto, porque desde o dia 20 de julho de 1934, dia em que o Padre Cícero morreu, as pessoas mais fiéis da cidade vestem-se, em memória à funesta data, roupa preta durante todo o dia.

Minha mãe, mais dramática que eu, disse que sentira muitas dores por ocasião do parto e, pensando que ia morrer, fez promessa ao homenageado do dia. A promessa consistia no seguinte: se tudo ocorresse bem no parto, ela colocaria o nome de Cícero na criança pouco afeita a nascer. Eu nasci, ninguém morreu e a promessa foi cumprida - por isto, meu primeiro nome é Cícero.

A propósito do meu segundo nome, há um fato interessante. Eu seria Beethoven (nome de um dos meus compositores preferidos), pelo gosto do meu pai. Mas minha mãe preferiu colocar, cedendo a sugestões da minha avó paterna, o nome do médico que fizera o parto – segundo ela, dar nome de pessoas bem-sucedidas traz sorte à criança. Parece-me que foi necessário ampliar o argumento para convencerem meu pai a mudar meu nome: remeteram-se, desta feita, a Emerson Fittipaldi, que foi o primeiro campeão mundial brasileiro de Fórmula 1 (ele foi bicampeão em 1972 e 1974) e Campeão de Fórmula Indy (1989). Meu nome deixou de ser Beethoven e passou a ser Émerson (com acento gráfico, porque devem ter notado que era uma palavra proparoxítona e resolveram acentuar). 

Depois, acrescentaram o sobrenome materno (Nascimento), precedido da preposição “do”, e o sobrenome paterno (Cardoso) – o resultado foi um nome enorme: Cícero Émerson do Nascimento Cardoso.

Uma amiga, que desconhecia a minha história familiar, disse-me que meus dois nomes são peculiares, porque fazem alusão a Cícero – jurista, orador, escritor, filósofo, político romano – e Emerson – filósofo e poeta norte-americano. Outra pessoa perguntou, certa vez, se meu segundo nome aludia ao grupo Emerson, Lake & Palmer, banda britânica de rock progressivo formada na década de 1970. 

A expressão “do Nascimento Cardoso” figurou como um complemento nominal interessante. Considerando-se que o termo “cardoso” é um adjetivo proveniente da palavra “cardo” – arbusto espinhento –, este parece aludir diretamente ao fato de que meu nascimento não foi, senão, pungente, doloroso, sôfrego.

Alguém me perguntou se “cardoso” não estaria relacionado, também, ao termo “coração”, uma vez que muitas palavras relacionadas ao músculo cardíaco trazem no radical uma aparente aproximação na sonoridade e grafia: cardiologia, cardiopatia, cardiovascular... Eu disse que, nestes casos, há o acréscimo da vogal temática / i /, o que impediria essa associação com o radical que forma um dos meus nomes, o que sinceramente é uma pena.

Sem muitas opções, tive que nascer. Era um menino de pele excessivamente clara, muito choro e aspecto inconformado – pois é: parece que não mudei muito com o passar dos anos.                                                                                   

          27/04/2014