sábado, 26 de dezembro de 2015

CRÔNICA: "NATAL, SOLITÁRIO NATAL".


As pessoas temem a solidão. E até é compreensível. Eu decidi fazer, este ano, um exercício: decidi ficar sozinho neste natal de 2015. Moro num bairro de estudantes na cidade de João Pessoa – PB, no entanto meus familiares, e maior parte dos amigos, estão no Ceará. Permaneci sozinho com a intenção de ler, escrever, pensar. Também realizei algumas tarefas. Recorri com certa reserva aos recursos eletrônicos que me possibilitaram alguma comunicação. Acrescentei a isto o ato de acordar, alimentar-me, andar um pouco, ouvir canções que ampliassem a alma...

Esta decisão, obviamente, é cômoda, porque bastaria uma passagem comprada e eu teria gente com quem passar o feriado natalino! Mas e se não houvesse condição para comprar a passagem, se não houvesse familiar ou amigo a quem encontrar? Estar sozinho, neste caso, seria uma tragédia existencial dolorosa demais!

Quando saí de casa, na noite de natal, para descansar a mente, vi pouquíssimas pessoas pelas ruas. Bairro de estudante fica vazio em período de recesso da universidade, sobretudo em dia de feriado tão bem reputado nacionalmente. Além disto, a maior parte deles deve ter viajado porque tinha esta opção – assim espero!

Como disse, foi possível ver pessoas pelas ruas. Numa parada do ônibus, por exemplo, uma idosa entrava em si mesma com seu fixo olhar à espera de um transporte público que a conduziria para um destino, tomara Deus, menos obscuro que aquele ponto solitário em que ela estava a ruminar a solidão. Numa esquina, mais à frente, um rapaz tentava vender frutas aos poucos carros que atravessavam a avenida principal do bairro – com que disposição ele se erguia da calçada quando o sinal fechava para ouvir nãos que se repetiam por meio de gestos ou sons de vozes distanciadas. Recostada a um poste, no meio de um dos quarteirões, uma moça passeava uma das mãos pelos cabelos. Ela me olhou temerosa, afinal eu era um dos poucos viventes a andar naquela hora – e era cedo da noite  em sua direção, depois baixou a vista para nunca mais erguê-la sob meu olhar que a devassou discretamente até que por ela passei. Um idoso sujo, desgrenhado, barbudo, espargia impropérios contra outro idoso que ria de alguma coisa – ambos pareciam alcoolizados – de frente a uma agência bancária. E só.

Choveu na noite anterior, o dia nublou sem águas, a noite de natal foi um tanto fria. Os estabelecimentos comerciais estavam livres da opressão cotidiana a que seus funcionários são submetidos. Meu passeio desolador findou quando cheguei à iluminada Praça da Paz. Realmente, a paz reinava ali – ao menos aparentemente. Havia pouca gente espalhada em seus espaços. Chamou minha atenção uma moça e um rapaz que tão próximos estavam um do corpo do outro, num abraço, que fiquei perplexo: ainda há singeleza no mundo! Depois, duas crianças corriam sob vigilância do pai abobalhado e da mãe ensimesmada que os vislumbrava afastada. O pai, meu Deus, como era cúmplice na simplicidade excedente de seus filhos risonhos! E este pai, que desprezava meu olhar discreto, porém perscrutador, abraçou o filho com amor sincero e o beijou na testa. A filha, enciumada, certamente, exigiu dele o mesmo gesto e ele, obediente como um adulto frágil, abraçou a ciumenta dando-lhe mil beijos que fizeram rir a criança e a mãe que distante os observava.

Não suportei flagrar tanto amor. Fugi depressa, antes que a luz me ofuscasse e meu silêncio se transformasse em súplica. Vinha um ônibus, entrei... Um homem me desejou boa noite com bondade no tom de voz. O motorista tinha os olhos cansados. Um rapaz escutava, de olhos fechados e assanhados cabelos, indiferente ao movimento do coletivo, alguma canção que eu desconhecerei por toda uma eternidade. Desci do transporte, andei um pouco, sob efeito de escuro e silêncio, e agradeci a Deus por ter chegado intacto em casa. Tenho dúvida: cheguei intacto?

Depois, comi restos do almoço, escrevi um pouco, tomei um banho triste e tentei dormir. As pessoas temem a solidão – palavra mais linda da língua portuguesa, para mim –, porque a solidão tem peso de chumbo. Estar só pode ser entrar demais em si mesmo e, sinceramente, neste mundo superficial, e de felizes natais desejados de modo tão automatizado, olhar para si mesmo, e descobrir-se a olhar para os outros, pode assustar. Eis uma experiência que me enriqueceu, certamente. Mas não quero me acostumar demais com esse exercício, pois devemos aproveitar as pessoas que temos, e amamos, enquanto elas podem ser amadas. E foi assim.


Émerson Cardoso
26/12/15  

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

"MONÓLOGO DE NATAL", DE ALDEMAR PAIVA

           
                                                                   

Eu não gosto de você, Papai Noel!
Também não gosto desse seu papel
de vender ilusões à burguesia.
Se os garotos humildes da cidade
soubessem do seu ódio à humildade, 

jogavam pedra nessa fantasia. 

Você talvez nem se recorde mais.
Cresci depressa, me tornei rapaz, 

sem esquecer, no entanto, o que passou.
Fiz-lhe um bilhete, pedindo um presente 

e a noite inteira eu esperei, contente.
Chegou o sol e você não chegou. 


Dias depois, meu pobre pai, cansado, 
trouxe um trenzinho feio, empoeirado, 
que me entregou com certa excitação.
Fechou os olhos e balbuciou: 

“É pra você, Papai Noel mandou”.
E se esquivou, contendo a emoção. 


Alegre e inocente nesse caso, 
eu pensei que meu bilhete com atraso, 
chegara às suas mãos, no fim do mês.
Limpei o trem, dei corda, 

ele partiu dando muitas voltas,
meu pai me sorriu e me abraçou pela última vez. 


O resto eu só pude compreender quando cresci
e comecei a ver todas as coisas com realidade.
Meu pai chegou um dia e disse, a seco: 

“Onde é que está aquele seu brinquedo?
Eu vou trocar por outro, na cidade”. 


Dei-lhe o trenzinho, quase a soluçar
como quem não quer abandonar 
um mimo que nos deu, quem nos quer bem, 
disse medroso: “O senhor vai trocar ele?
Eu não quero outro brinquedo, eu quero aquele.
E por favor, não vá levar meu trem”. 


Meu pai calou-se e pelo rosto veio
descendo um pranto que, eu ainda creio,
tanto e tão santo, só Jesus chorou!
Bateu a porta com muito ruído,
mamãe gritou 
ele não deu ouvidos,
s
aiu correndo e nunca mais voltou. 

Você, Papai Noel, me transformou num homem
que a infância arruinou, s
em pai e sem brinquedos.
Afinal, dos seus presentes, não há um que sobre
para a riqueza do menino pobre
que sonha o ano inteiro com o Natal.

Meu pobre pai doente, mal vestido, 

para não me ver assim desiludido, 
comprou por qualquer preço uma ilusão,
num gesto nobre, humano e decisivo, 
foi longe pra trazer-me um lenitivo, 
roubando o trem do filho do patrão. 

Pensei que viajara,
no entanto 
depois de grande,
minha mãe, em prantos,
contou-me que fora preso
e como réu, ninguém a absolvê-lo se atrevia.
Foi definhando, até que Deus, um dia, 

entrou na cela e o libertou pro céu.




FONTE:  http://www.recantodasletras.com.br/poesias-de-natal/4053635

domingo, 13 de dezembro de 2015

MAIS UM DEZEMBRO PARA LUIZ GONZAGA



A CONFLUÊNCIA DOS AFETOS: UMA LEITURA DE LETRAS DE CANÇÕES INTERPRETADAS POR LUIZ GONZAGA

CÍCERO ÉMERSON DO NASCIMENTO CARDOSO

Ao colocar em pauta a emblemática figura de Luiz Gonzaga, na tentativa de discutir suas obras e sua representatividade de propagador dos valores culturais do Nordeste brasileiro, alguém poderia nos advertir de que corremos o risco de realizar discursos que podem girar em torno de obviedades encomiásticas que o mitificam, não sem merecimento, sobretudo neste ano em que se comemora, do seu nascimento, o centenário.
Como incorrer em obviedades, no entanto, em se tratando desse significativo músico nordestino? Para o cenário artístico brasileiro ele foi, sem dúvidas, um dos mais completos artistas. Sua arte foi absorvida pelo país e rendeu-lhe reconhecimento tanto no Brasil quanto no exterior. De guardião da “memória” do Nordeste brasileiro a pernambucano do século, reconhecido como o “rei do baião” e mitificado como um dos maiores representantes da expansão da cultura nordestina, Luiz Gonzaga deixou a cidade de Exu, interior do Pernambuco, na década de 20, e firmou-se, com parcerias bem-sucedidas, no cenário da música popular brasileira com um novo estilo musical.
Faremos, a partir daqui, uma breve discussão sobre valores de caráter afetivo recorrentes nas canções interpretadas por Luiz Gonzaga. Consideraremos, neste caso, não o termo “afeto” numa acepção mais ampla – que suscitaria uma abordagem teórica subsidiada pelas nuances da Psicologia – mas, para nossa discussão, consideraremos o termo “afeto” apresentando-o, de modo simplório, a partir dos seguintes termos correlativos: “amor”, “amizade” e “solidariedade”.
Ao analisar a discografia de Luiz Gonzaga constatamos que ele privilegiou temas recorrentes nas canções que interpretou ao longo de sua carreira artística. O sertão nordestino, com sua paisagística ora enaltecida, ora apresentada como espaço infértil em decorrência dos longos períodos de estiagem, surge pincelado, sobretudo, pelas manifestações da cultura popular com suas riquezas indevassáveis. As letras dessas canções interpretadas por Luiz Gonzaga apresentam, ainda, a reprodução da linguagem do povo, bem como suas crenças religiosas, tradições e ideologias.   
Podemos supor que essa perspectiva presente na obra de Luiz Gonzaga de, por meio da música, trazer à tona a realidade social, política e cultural do Nordeste ocorreu numa linearidade que, poucas vezes, podemos encontrar na realidade artística brasileira. Essa persistência em tratar temas pertinentes ao Nordeste o tornou, definitivamente, a eminente voz que cantou, para o mundo, a realidade de um povo cuja história, tradição e arte se articulavam em meio a austeridade climática e a ausência, por vezes, de políticas públicas que atendessem às necessidades de maior parte da população.
Podemos, portanto, a partir daqui realizar leituras de algumas canções cujos temas foram importantes para a produção artística delineada por Luiz Gonzaga durante os anos em que cantou e propalou sua terra e a vida de sua gente.
O “amor”, que pode conduzir o indivíduo amante a diversos conflitos e tumultos íntimos, ou a excedentes de felicidade quando é correspondido, surge em inúmeras canções imortalizadas pela voz do “rei do baião”. Esse “amor”, mesmo submetido à visão patriarcalista em que se fundou a estrutura familiar nordestina, parece contrariar, em alguns casos, essa tradição que destaca a condição máscula e viril do homem e torná-lo vulnerável e capaz de sofrer profundamente pela mulher a quem devota seu amor. O amor vivido pelo homem nessas canções nos faz recordar as canções trovadorescas conhecidas como “Cantigas de Amor”, ou seja, nestas canções o homem assume uma posição de vassalo diante da mulher que nele desperta o amor quase sempre impossível de se realizar.
Como podemos constatar, em várias interpretações Luiz Gonzaga considerava como alvo do devotado “amor” do homem a mulher sertaneja, simples, uma “Karolina com K” (Luiz Gonzaga) que não traz em si princípios moralistas estipulados pela tradição. Mas podem ser, também, moças simples, mas que, por algum motivo, seja a necessidade de retirada do amante em decorrência da seca, seja o preterimento por parte destas, ou impedimentos por estas serem resguardadas pelo nome da família, são capazes de causar transtornos a quem por elas se apaixona. Como exemplo, temos: “Kalu” (Humberto Teixeira), “A letra I” (Zé Dantas), “Cajueiro velho” (Cecéu), “Amor da minha vida” (Raul Sampaio e Benil Santos) e “Linda brejeira” (Rui Moraes e Silva e Joaquim Lima).
Em “Karolina com K”, por exemplo, a voz que apresenta Karolina na letra da canção a adjetiva, no início, como “Mulher bagunceira da muléstia! / Mulher cangaceira” (BARBOSA, 2007, p. 246).[1] Essa adjetivação está longe de ser pejorativa, mas jamais seria atribuída a uma mulher cujo comportamento se submetesse às regras sociais. O amante tem, neste caso, a reciprocidade do amor e termina por viver uma aventura ao lado da mulher sensual, trigueira, debochada que se deixa conduzir pelo homem que a corteja.
Em “Kalu”, o amante implora à moça dos verdes olhos que não o machuque mais. Uma vez que se sugere que o relacionamento vivido entre eles se acabou, ele pede que esta não o torture mais com seus olhos de escarnecimento: “Tire o verde desses óio de riba d’eu” (p. 245). O homem se fragiliza ante a figura eminente da mulher que o pretere. Como solução, a ele, que se apresenta como vítima, cabe a necessidade de implorar à amada que esta não o maltrate mais do que já o maltratou.
Por sua vez, com uma construção metafórica que a torna uma das canções mais líricas que Luiz Gonzaga cantou, “A letra I” apresenta um indivíduo que, ao escrever uma carta, a envia para sua amada demonstrando toda a angústia e desolação por estar distante dela. A carta enviada é uma tentativa de expressar, enfaticamente, o quanto a saudade o tortura. A metáfora presente no trecho “Meus óio chorou tanta mágoa / Que hoje sem água / Nem responde à dor” (p. 161) é um exemplo do intenso lirismo contido nessa canção. Além desse trecho, o lirismo é reforçado pelas símiles: “[...] o amor / Fumega no meu coração / Tá e quá fogueira / Das noites de São João” e “Tando longe dela / Só sei reclamar / Pois vivo como um passarinho / Que longe do ninho / Só pensa em voltar” (p.161).
 Além dessas canções, podemos encontrar o valor afetivo do primeiro amor que surge na canção “Cajueiro velho”. A ingenuidade do amor representado por meio de um coração desenhado com as iniciais dos nomes da amada e do amante e que, submetido ao tempo e sua efemeridade, pode se desfazer como planta que, se não é regada, perecerá. Essa metáfora do amor que, se não alimentado, pode fenecer, podemos encontrar no seguinte trecho: “A planta que não é regada / Fica adoentada / Morre no canteiro / Assim é minha vida agora / Morro toda hora / Lá no cajueiro.” (p. 195)
Na canção “Amor da minha vida”, podemos encontrar mais um exemplar de amor devotado a uma mulher cuja ausência tortura veementemente o amante que se lamuria invocando a amada por meio de imagens metafóricas e hipérboles que expressam profundamente sua angústia: “Ó luz dos olhos meus, / Metade do meu ser / Que amarga diferença / Sem tua presença / Nesse meu viver / Amor da minha vida, / Estou na solidão / Trocastes por saudade / A felicidade do meu coração.” (p. 177)
Além desse tema que é mais que explorado pelo “rei do baião”, podemos encontrar também a ideia de “amizade” como um dos valores que ele costuma, em suas canções, enaltecer. A “amizade”, nessas canções, se estende a uma consciência de “solidariedade” imensa. Para discutir essas duas temáticas tão correlacionadas, recorreremos às letras seguintes: “Amigo velho” (Rosil Cavalcante), “Apologia ao jumento” (Luiz Gonzaga e José Clementino), “Canto do povo” (Jurandyr da Feira), “Assum preto” (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira), “A morte do vaqueiro” (Luiz Gonzaga e Nelson Barbalho) e “Prece por Exu novo” (Gonzaguinha), que são canções que ora tratam diretamente do tema “amizade”, ora demonstram excessiva solidariedade à figura do sertanejo nordestino.
A canção “Amigo velho” discorre sobre um suposto encontro entre dois amigos que, ao se encontrarem, se felicitam em “matar” a saudade que sentem reciprocamente. Um pergunta ao outro sobre sua família, alude ao seu aspecto físico de modo elogioso, expressa o quanto o prezava dizendo que desejava encontrá-lo assim que chegou ao local em que ocorre o encontro. A amizade, na letra dessa canção, se apresenta como um valor que ambos vivenciam de longa data e que se manifesta calorosamente numa ocasião de reencontro. Nela, a alegria, a satisfação, a manifestação de afeto é expressa à luz do modo sertanejo de demonstrar a afetividade.
A amizade surge, também, como uma demonstração de solidariedade ante a figura de um amigo injustiçado pela vida. É o que ocorre em “A morte do vaqueiro”. Nessa canção, talvez uma das mais tristes de que se tem conhecimento no país – uma espécie de elegia sertaneja – surge a imagem de um vaqueiro que foi assassinado em decorrência de questões políticas e que, em seu anonimato, só é lembrado pela canção que o rememora, pelo gado e pelo cachorro. Em solidariedade ao primo e amigo – o vaqueiro Raimundo Jacó – assassinado, Luiz Gonzaga, com Nelson Barbalho, compõe essa canção evocadora de elementos que conferem um forte teor lírico e muita pungência à melodia e à letra.  
Na primeira estrofe, encontramos uma vigorosa imagem poética arquitetada por meio do uso de uma prosopopeia: também solidário à morte do vaqueiro, “Numa tarde bem tristonha, / Gado muge sem parar / Lamentando seu vaqueiro, / Que não vem mais aboiar, / Tão dolente a cantar.” (p. 163) Outra imagem que enfatiza a poeticidade da canção surge na terceira e última estrofe com a aparição do cachorro do vaqueiro – ressalte-se o fato de que o cachorro está sempre associado à lealdade, à fidelidade – “Que inda chora a sua dor / É demais tanta dor / A chorar com amor.” (p. 168)
Nesta perspectiva da demonstração de solidariedade, podemos colocar em pauta, também, as canções “Canto do povo” e “Prece por um Exu novo”.
Na primeira, em tom metalinguístico, a canção é apresentada como a efetivação da alegria. A voz que afirma que deseja espargir alegria por meio da música, para o seu povo, também enfatiza: “Quero ver tudo verdinho / Toda esperança brotar / Cheiro de terra molhada / um riso em cada olhar.” (p. 198) Através dessa música, a voz lírica reúne-se ao povo que tem a esperança de que a chuva desfaça a tristeza que vem sempre em períodos de estiagens inclementes. Assim, percebemos sua demonstração de extrema solidariedade à realidade do povo quando afirma que quer “Encher de vida essa gente / Que espera sem reclamar.” (p. 198)
Na segunda canção, “Prece por um novo Exu”, encontramos um teor reivindicativo que coloca em destaque uma tradicional disputa entre famílias ocorrida em Exu – PE. Ante as mortes sucedidas na cidade em decorrência dessa rixa familiar, Luiz Gonzaga entoou seu canto de repúdio pela “guerra” e solidariedade pelos mortos através dessa canção composta por seu filho Gonzaguinha. Nos refrões, a voz lírica recorre à religiosidade para sensibilizar os envolvidos na querela familiar e chamar atenção, por meio do apelo aos santos, das autoridades judiciais que pareciam ignorar o problema.
Na quarta estrofe dessa canção, podemos encontrar a perspectiva solidária da voz lírica aos pobres: “Que os poderosos se matem / Problema é do poder / Mas sempre sobra pros pobres / Isso eu não posso entender” e demonstra sua esperança de que, em dias vindouros, a juventude reavalie a visão acrítica dos seus descendentes e transforme a realidade da cidade: “Confio que a juventude / Com sua revolução / Nos traga o amor e acabe / O Horror desta tradição” (p. 300).
 Mas a amizade e a solidariedade não se restringem, no cancioneiro de Luiz Gonzaga, apenas à sua gente sofrida. Em diversas canções ele devotou sua atenção a animais típicos da paisagística nordestina com a intenção de, no caso da canção falada “Apologia ao jumento” (Luiz Gonzaga e José Clementino), realizar uma homenagem àquele que muito “amigavelmente” contribuiu com a manutenção da vida cotidiana do sertanejo e com os grandes empreendimentos desenvolvimentistas da região. A voz lírica enfatiza a homenagem à figura eminente do jumento no trecho: “Jumento meu irmão. / O maior amigo do sertão!” (p. 179) Desse modo, para retribuir a amizade do jumento ao povo sertanejo, a canção é uma apologia que discorre sobre os valores desse animal que, considerado sagrado, merece ser chamado de irmão e ser homenageado tendo em vista suas inúmeras contribuições.
Na canção “Assum preto”, por sua vez, a solidariedade ao sofrimento, por que passa o pássaro “assum preto”, desperta na voz lírica uma forte empatia com a ave e, em seguida, essa voz se compara à ave identificando-se com ela por sentir que, assim como a ave teve os olhos furados para cantar melhor, também sofreu o cerceamento da vida por ter ficado sem a luz dos seus olhos – metáfora construída para referir-se ao ser a quem devota seu amor.
As canções que utilizamos, para essa breve explanação, correspondem a alguns dos muitos exemplares do cancioneiro gonzaguiano que discorrem sobre os afetos enfatizados na expressão do “amor”, da “amizade” e da “solidariedade”. Sabemos que, para discutir sobre a temática dos afetos, precisaríamos de maior aprofundamento através de consultas amplas a teorias que discorressem sobre o assunto. Além disso, sabemos que o cancioneiro de Luiz Gonzaga nos possibilitaria muitas outras abordagens e análises, o que não seria possível em nosso trabalho que se pretende breve.  
Enfim, conscientes de que poderíamos ampliar sobremaneira as investigações a que nos propusemos, afirmamos o que já constatáramos no início deste texto: não é possível incorrer em obviedades em se tratando desse significativo músico nordestino, porque sua obra, fruto de uma vida dedicada intensamente à arte musical, representa amplas possibilidades de estudos em áreas diversas.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, José Marcelo Leal. Luiz Gonzaga: suas canções e seguidores. Teresina: Halley, 2007.

SANTOS, José Farias dos. Luiz Gonzaga: música como expressão do Nordeste. São Paulo: IBRASA, 2004.

SILVA, Uéliton Mendes da. Luiz Gonzaga: discografia do rei do baião. Salvador: Memorial das Letras, 1997.

NOTAS:

Este texto é um fragmento do artigo publicado nos Anais do I Congresso Internacional de Semiótica e Cultura, realizado, em 2014, na Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Está disponível no endereço:

CARDOSO, Cícero Émerson do Nascimento. A confluência dos afetos: uma leitura de letras de canções interpretadas por Luiz Gonzaga. In: Anais do I Congresso Internacional de Semiótica e Cultura. Disponível em: http://www.cchla.ufpb.br/semicult/arquivos/ANAIS%20VER_PAGINADA_08_04_2015.pdf. João Pessoa: Mídia Gráfica e Editora, 2014. p. 728 – 737.





[1] BARBOSA, José Marcelo Leal. Luiz Gonzaga: suas canções e seguidores. Teresina: Halley, 2007. A partir daqui indicaremos apenas o número da página do livro que consultamos para citação das canções. 

domingo, 6 de dezembro de 2015

RESENHA: "CONVERSAS COM UM JOVEM PROFESSOR", DE LEANDRO KARNAL


KARNAL, Leandro. Conversas com um jovem professor. São Paulo: Contexto, 2014.

Leandro Karnal tem aparecido enfaticamente na mídia. Suas ideias são explanadas de modo simples sem, contudo, perder em densidade do ponto de vista teórico. Além de suas atividades com o magistério, ele ministra palestras e escreve livros.
            O primeiro livro de Leandro Karnal que eu li foi Conversas com um jovem professor. Eu buscava neste livro a mesma eloquência com que ele fala – suponho tê-la encontrado. O livro, segundo ele, não se pretende um tratado teórico, não se preocupa em apresentar citações grandiosas. Sua proposta se centra na ideia de desenvolver um relato de experiência sobre sua prática profissional na área de educação.
            Como fico impaciente ao ler textos sobre educação, por sentir que nada de novo é dito ou especulado, li com reservas o Conversas com um jovem professor. Percebo, no entanto, que apesar de em alguns trechos ter a sensação de que há uma tendência do autor de aconselhar demais (já ouvi alguém dizer, inclusive, que é um livro de “autoajuda” para professores, do que eu discordo!), eu o considero uma proposta pertinente e interessante para quem é da área.
A quem assumiu esta carreira que, para alguns, é pouco promissora, esse livro pode ser válido porque instiga à reflexão. Mas deve ser mais valioso para o profissional evocado no título: o jovem professor. Isto porque Karnal apresenta, sem subterfúgios reducionistas, os problemas cotidianos do professor no exercício de sua profissão, já que na academia a gente tende a desenvolver uma visão idealista demais.
No final de cada capítulo, Karnal sugere um filme vinculado à educação. Eu, hoje, não suporto assistir a maior parte deles, mas quando eu pretendia ser professor assisti a estes e outros mais – e os considero valorativos para minha formação.
O capítulo que mais me chamou atenção foi Pais, colegas e diretores. Quem me conhece, e já me ouviu discorrer sobre o que penso a respeito da educação, sabe que eu digo que o problema da educação não se centra na relação direta com os alunos (se o professor tem problema com um aluno e conta com o auxílio de um coordenador ou diretor competentes o aluno não é mais problema), mas na relação direta e indireta com colegas de profissão, coordenadores e diretores. As minhas experiências no magistério me possibilitam afirmar isto, sem dúvidas.
Neste capítulo, Karnal endossa o que sempre considerei como o desagradável da profissão. Isto me deixou amparado por uma visão que, de certo modo, me permite sentir que eu não sou o único a sofrer com tal percepção. Considero corajoso, e hilário, o que ele (2014, p. 69) afirma sobre o colega de profissão: “Deus inventou a educação e o diabo, invejoso, o colega”. Nada poderia ser mais coerente!
Há, ainda, dicas de leituras que podem auxiliar o professor a pensar um pouco a educação. Parece-me, porém, que o melhor do livro é fazer o professor repensar sua condição, como na seção em que ele, atento ao possível narcisismo que paira sobre o professor, se questiona: “Somos todos chorões profissionais?” E, em conclusão, ao perguntar sobre o porquê de permanecer na área, sendo consciente das inúmeras problemáticas que recaem sobre quem abraça essa profissão desafiadora, ele (2014, p. 133) cai numa perspectiva, do meu ponto de vista, idealista, mas não de todo descartável, quando afirma e questiona:

Por que eu continuo professor? Porque eu faço muita diferença na vida de muita gente. Por mais babaca que pareça para muitos, esse é meu tijolo na parede da cidadania que estamos construindo no Brasil. Essas coisas me fazem feliz. Sou professor porque sou feliz. Para mim, tem bastado ao longo dessas décadas. Basta para você?


            Leandro Karnal é graduado em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, doutor pela USP e é professor da UNICAMP. Escreveu, dentre outros livros: História dos Estados Unidos e História na sala de aula. O Conversas com um jovem professor deve ser lido e relido, uma vez que apresenta, de modo instigante, ideias inteligentes sobre a profissão. 

sábado, 5 de dezembro de 2015

EnTrEvIsTaNdO PAULO HENRIQUE


ENTREVISTA
Meu sobrinho Paulo Henrique, estudante de 11 anos, concedeu-me uma entrevista neste início de dezembro de 2015. Conversamos sobre animais de estimação, filmes e, principalmente, sobre a vida.

1 – O que é que você gosta de fazer?
Brincar, assistir DVD... Videogame eu já abusei... Eu mexo muito na internet... Só isso...
2 – Você gosta de brincar de quê?
De assistir DVD.
3 – Brincar de assistir DVD? Mas não são coisas diferentes?
É...
4 – Você tem brinquedos?
Tenho.
5 – E cadê seus brinquedos?
Guardados numa caixa...
6 – Você nunca mais brincou com eles?
Brinco...
7 – Já assistiu Toy Story?
Sim. Já assisti os três.
8 – Você não tem medo de que eles fiquem como os brinquedos de Toy Story?
Não, eu brinco com eles...
9 – Qual seu filme preferido de animação?
Lorax. Pode dizer também um filme sem ser de animação? Eu gosto de Todo mundo em pânico III.
10 – Você gosta de brincar, assistir DVD, videogame, internet?
Não, videogame não, abusei... Internet mais ou menos.
11 – O que você vai ser quando crescer?
Eu tava pensando em criar uma máquina do tempo. Por causa que eu queria criar uma máquina pra voltar no tempo e salvar Birote.
12 – Quem é Birote?
Meu gato... Que morreu atropelado... [Falou com ar triste]
13 – O que você sentiu quando ele morreu?
Tristeza.
14 – E o que mais?
Dor.
15 – E o que mais?
[Ele ficou parado pensando e não deu resposta...]
16 – Se você encontrasse uma lâmpada mágica e tivesse direito a três pedidos, o que você pediria?
Aí eu ia pedir que eu tivesse uma mansão, com piscina e tudo, e que todos os animaizinhos de estimação que eu tinha tivessem lá...
17 – Quem são os seus animais de estimação?
Marri [uma gata], Milu [um cachorro] e Birote [um gato]... Marcelo [uma galinha] também...
18 – E o segundo pedido?
Que eu tivesse superpoderes.
19 – Quais seriam os superpoderes?
Ficar invisível, visão de raio-x, ter o poder dos quatro elementos e ser imortal...
20 – E o terceiro?
Era ter mais dez desejos.
21 – Mas você teria direito somente a três desejos...
Então, aí eu pediria mais dez...
22 – E o que você faria com dez desejos?
Eu ia querendo aí... Eu ia cansar de ter desejos... Aí eu ia libertar ele.
23 – Qual é o seu maior medo?
Meu medo? O maior de todos? O que eu tenho mais medo? [Silêncio reflexivo] Descer do tobogã do Caldas. Agora, eu desço normal...
24 – Você prefere filme de terror ou comédia?
Comédia!
25 – Qual seu filme de comédia preferido?
Todo mundo em pânico III.
26 – Qual a pessoa que você mais ama na vida?
Minha mãe, minha vó...
27 – O que você quer ser quando você crescer?
Um cientista pra criar uma máquina do tempo e salvar Birote... 
28 – E além disso?
Só isso... Eu queria que tivesse educação física todo dia.
29 – Qual seu esporte preferido?
Vôlei.
30 – Você joga vôlei na escola?
Não.
31 – O que você joga na escola?
Futebol, carimba  – queimada eu não jogo...
32 – E por que você prefere vôlei?
Porque é bom.
33 – E com quem você joga?
Com as pessoas. Eu e Levi...
34 – Você tem amigos?
Tenho.
35 – Quais são os seus melhores amigos?
Levi, Yáshila, Igor, Juninho...
36 – Quem é seu melhor amigo?
Levi.
37 – E sua melhor amiga?
Yáshila.
38 – Qual a palavra que você mais gosta?
Palavra? Uva.
39 – E a palavra que você menos gosta?
Palavrão.
40 – Ainda bem! Mas se você pudesse, onde você estaria agora?
Comendo hambúrguer com refrigerante de uva e lasanha.
41 – O que você menos gosta de comer?
Verdura.
42 – E o que você menos gosta de beber?
Maçã verde...
43 – Qual sua fruta preferida?
Uva.
44 – E a que você menos gosta?
Acerola...
45 – Qual foi o melhor livro que você já leu?
Monstros S/A.
46 – Coloque na ordem de sua preferência os seguintes pontos: 1) desenhar, 2) cantar, 3) dançar ou 4) tocar violão?
1) dançar, 2) desenhar, 3) tocar violão e 4) cantar.
47 – Que instrumento você gostaria de tocar?
Bateria, guitarra e violão... Só isso.
48 – Soube que você já fez curso de inglês.
Eu gostava do curso de inglês.
49 – Aprendeu a falar inglês?
Mais ou menos.
50 – Que palavras você aprendeu?
Black, dog, cat, Santa Claus, ball... Eu queria ir pros Estados Unidos, porque tem neve.
51 – O que deixa você mais feliz?
Desenho, brincar no pula-pula, brincar em festa de aniversário, brincar na boate...
52 – Boate?
É... Foi numa festa de casamento que eu fui entregar a aliança... Lá tinha boate pro povo dançar.
53 – Quando você crescer você pensa em casar?
Não. Quando eu crescer não vou pensar em casamento não.
54 – O que deixa você com raiva?
Quando escondem o carregador do notebook.
55 – O que deixa você triste?
Meu animal de estimação preferido morrer.
56 – Você chora muito?
Quando eu não queria dar o gato...
57 – Qual foi o dia mais feliz da sua vida?
Um dia que eu fui pro shopping... Quando eu fui no cinema com minha mãe... Assistir Rio II.
58 – Você é feliz?
Sou.
59 – Por quê?
Porque eu gosto das coisas... Dos animais de estimação...
60 – Já fizeram festa de aniversário para você?
Já. Eu me lembro mais da de dez anos.
70 – E seu pai?
Um homem bom.
71 – Você gosta muito dele?
Gosto, por que quem não ia gostar do pai? [A voz dele saiu introspectiva e cheia de ternura]
72 – Você gosta de ler?
Mais ou menos, porque quando eu termino de ler a prova eu começo a pensar em outras coisas...
73 – Mas nós já lemos juntos mais de dez livros. Qual destes livros você gosta?
Nós já lemos Lino, Os três porquinhos, João e Maria, O patinho feio, Chapeuzinho amarelo...
74 – Você lê revistinhas da Turma da Mônica?
Gosto. Quando me dão eu leio.
75 – Você se lembra de quando aprendeu a ler?
Não.
76 – Você se lembra do nome de sua primeira professora?
Lembro... Marluce.
77 – Você queria ser pintor?
Acho que sim.
78 – Você queria ser desenhista?
Sim, pra desenhar as coisas.
79 – Você queria ser policial?
Não, porque podia morrer.
80 – Você queria ser bombeiro?
Não, porque podia morrer queimado.
81 – Você queria ser cientista?
Sim, pra criar uma máquina do tempo e salvar Birote. Aí depois ia ficar viajando no tempo com Birote.
82 – E você acha que cientista só faz máquina do tempo?
Não, também faz experiências...
83 – Com a máquina você poderia salvar os outros também, não é?
Mas eles não morreram, foram dados! [Ênfase triste na frase “foram dados”]
84 – Eles são felizes?
A mulher tá adorando Milu...
85 – Você sente saudade dele?
De todos! [Uma alegria triste]
86 – O que você gostaria de ler?
Um livro dos Power Ranger.
87 – O que você acha do Natal?
É o dia de comemorar o nascimento de Jesus e dar presente uns aos outros.
88 – O que você mais gostaria de ganhar?
Um brinquedo.
89 – Qual?
O que minha mãe tivesse dinheiro pra comprar.
90 – O que é a vida?
A vida é sobrevivência... É a morte... E a paz e a harmonia...
91 – Quem você é dos Cavaleiros do Zodíaco?
Fênix, porque se você matar ele, ele vai reviver de novo... É o mais forte!
92 – Uma pergunta que você queria que eu tivesse feito?
Você gosta de assistir Power Ranger?  
93 – Dê uma nota de 01 a 10 para:
1) As aventuras de Tintim (09)
2) Cavaleiros do Zodíaco (10)
3) Power Ranger (20) [Riu com o gato novo nas mãos, dizendo afetuosamente que ele era malcriado...]
4) Caverna do Dragão (08)
5) Bob Esponja (09)
6) Chaves (07)
7) Chapolin (08)
94 – Qual foi o último filme de animação que você assistiu?
O Pequeno Príncipe.
95 – O que você achou?
Ótimo!
96 – Por quê?
Porque é sobre o pequeno príncipe e uma amizade... Amizade entre uma menina e um velhinho...
97 – Mais alguma coisa a dizer?
Não!
98 – Obrigado pela entrevista!
[Riu envergonhado]

04/12/15