segunda-feira, 14 de março de 2016

RESENHA CRÍTICA: NOTAS SOBRE O AMOR EM "A CÉU ABERTO", DE PAULO SOARES


A propósito do novo livro de Paulo Soares, A céu aberto (2015), devo dizer, para fins de apresentação, que o poeta se manteve na linha da denúncia social presente em seu primeiro livro: Um tiro no coração da poesia.
 Percebemos isto em poemas, por exemplo, como Onu, que é inteligente e faz isto por meio de trocadilhos agressivos que são pertinentes, críticos e corajosos.
Onu

Anos
e
Anos
de ONU.

Anos
e
Anos
de ÔNUS.

Ônus
e
ONUs

No Ânus.

   Repleto de metalinguagem, esse livro dispõe de poemas, em sua maioria, curtos, carregados de trocadilhos, anáforas, aliterações e metáforas. Embora o teor político seja sua temática por excelência, outros temas surgem e dão a tônica versátil da obra. O amor, numa perspectiva do erotismo, por exemplo, aparece com recorrência. Observamos, desse modo, de modo panorâmico, os poemas em que Paulo Soares discorre sobre o amor.
   Assim, apesar de sentir que, em se tratando da temática amorosa, o autor poderia, em alguns textos, ser mais original na criação de algumas imagens, podemos encontrar poemas como Nós, em que o trocadilho entre o pronome pessoal reto, na terceira pessoa do plural (NÓS), confunde-se com o substantivo pluralizado (NÓS), e evidencia criatividade em seu conteúdo e sua forma.  
Nós

Não
nos desatAMOs.

O AMOr
dá corda.

E
nós somos
nós.

Nos apertAMOs.

    O eu lírico do poema afirma que está, conotativamente falando, atado ao ser a quem devota seu amor. Na primeira estrofe ele afirma: “Não / nos desatAMOs”. O amor é metaforizado como algo que, de certo modo, aprisiona, no entanto o eu lírico, pelo que apreendemos do verbo amar, que aparece no presente do indicativo, e é transcrito em maiúscula dentro de outro verbo, confessa que ama sem demonstrações de angústia ou sofrimento. O amor aprisiona ou, como ele afirma, “dá corda”, mas não indica, com isto, que o eu lírico deseja libertar-se dessa suposta prisão. Ele, na sequência, enfatiza: “E / nós somos / nós”. O Nós a que ele alude nos possibilita pensar o vocábulo como substantivo ou pronome sem, contudo, isto prejudicar o sentido que o poema quer alcançar, antes o torna mais amplo em sua polissemia.
   O verbo AMO, imbricado em outros verbos, surge três vezes como a confirmar o discurso passional do eu lírico. Se o amor aprisiona suas “vítimas” em suas cordas, ao mesmo tempo em que dá “corda”, e ele e o ser amado tornam-se “nós”, não há necessidade de fuga da parte, pelo menos, do eu lírico. Ele, em verdade, resigna-se e afirma, aprisionado ao ser de sua devoção: “Nos apertAMOs”. Ressaltemos, ainda, que o vocábulo “nó”, amarra que se dá na ponta de uma corda, que aparece no plural, ou “nós”, pronome indicativo de junção, conexão, acoplamento entre indivíduos, se confundem e intensificam o efeito poético do texto.
  Outro poema, nesta linha, que é notável, sobretudo porque tem um teor erótico bem articulado com o teor metalinguístico recorrente nos textos do autor, dá-se pela polissemia assumida no texto pelo vocábulo “oral” que, neste caso, traz pelo menos duas acepções.
Oral

Antes
Do coito,
Do gozo
Da consonante com a vogal.

Verdade seja dita!

O prazer da transa escrita
Passa primeiro pela linguagem oral.

     O vocábulo “oral”, numa primeira acepção, remete-se ao sexo oral que, como o eu lírico expõe, é uma preliminar da cópula, para ele, indispensável: “Antes / Do coito [...], / O prazer da transa escrita / Passa primeiro pela linguagem oral”. Numa segunda acepção, e nisto está o valor estético do poema, “oral” remete-se a uma das propriedades da linguagem. Antes da escrita, em seu sentido pragmático, há a oralidade, ou seja, a língua em sua manifestação mais direta e, para isto, não se faz necessária a assimilação da língua em sua forma escrita.  
  Assim, antes da escrita, segundo o eu lírico, é a oralidade que representa a manifestação expressiva da língua. Do mesmo modo, agora numa instância erótica, para efetivação do coito – os genitais masculino e feminino estão metaforizados, respectivamente, no vocábulo “consoante” e “vogal”, ou vice-versa –, ele confessa: o sexo oral representa ato indispensável para efetivação do “prazer da transa”.
   O amor também aparece com uma visão realista mais que pertinente no poema Diagnóstico. O eu poético expõe um casal representado pelos pronomes Ela / Ele. Para ela, o amor “era uma FICÇÃO” – algo fantasioso, elaborado imaginariamente. Para ele, o amor era “uma FACÇÃO” – grupo que detém indivíduos que lutam por uma mesma causa, ou grupos antagônicos que disputam uma supremacia política. O diagnóstico evocado no título ocorre quando o casal se separa e é dito pelo médico que o amor não era, senão, “uma INFECÇÃO / intestinal”.
O amor tratado com o lirismo presente nos poemas anteriores não está presente neste último. Este propõe uma reflexão sobre o quanto o amor, que surge no eufemismo “infecção intestinal” – que substitui palavras do campo semântico das fezes –, pode ser doentio e sórdido a quem o vivencia sem considerá-lo em suas contradições e possibilidades de conflito. O amor, desse modo, é tratado primorosamente como algo não idealizado.
No poema Cavalo de troia, há mais criatividade pela discussão de categorias que aproximam o eu lírico do universo tecnológico, e pelos trocadilhos utilizados, do que pela originalidade temática propriamente dita. O amor, neste poema, é apresentado como algo que está no fim. Um “hacker” surgiu, na história de amor vivida pelo eu lírico e sua amada, e o hacker foi responsável pela destruição dessa história de amor. Assim, ele lamenta: “Um hacker / Malicioso / Invadiu nossa conexão / Deletou o nosso tesão” e, também, “Jogou nosso amor na lixeira”.
Os poemas Ela é fada!, Senha, Água viva, A flor mais bela, Poema leve e Amor e caligrafias, apesar de apresentarem aliterações, metáforas ou tons metalinguísticos, não trazem, como os anteriores, a temática do amor com um trabalho mais apurado, muito menos apresentam trocadilhos bem delineados e efeitos impactantes em seus versos de desfecho. No caso de Arco-íris e Cantiga moderna, há a promessa inicial de um texto cujo desfecho poderá ter alguma intensidade, no entanto o primeiro conclui com uma imagem explícita demais, e não poética, como era prenunciado; e o segundo, um tanto moralista, perde o lirismo porque tenta fazer crítica à falta de lirismo do “trovador” moderno, mas incorre no mesmo equívoco que denuncia.
Estes problemas não ocorrem, por exemplo, em Todo teu. Este poema, cujo título já indica uma tentativa hiperbólica de entrega afetiva, discorre sobre o amor numa perspectiva da passionalidade. De tal modo o eu lírico se entrega ao ser a quem devota seu amor, que o pronome possessivo, repetido à exaustão, evidencia que ele parece perder a identidade. A repetição do pronome pessoal reto na primeira pessoa do singular (EU), que parece ter mais a ver com a tentativa de aproximação sonora entre Eu e Teu, que causa a aliteração dos versos, indica no mínimo um discurso paradoxal. O Eu está tão presente no poema que questionamos se realmente o eu lírico se entregou de todo a sua amada, tendo em vista que ao dizer que ele é todo, inteiramente, completamente dela, não seria necessário apresentar as partes do seu todo para enfatizar seu discurso, como ele faz de modo recorrente. Poema de um eu lírico autoafirmativo, deparamo-nos com anáforas, aliterações, assonâncias e rimas. É um poema com ritmo, com tom hiperbólico e que é rico em sonoridade.  
Amor platônico pode ser inserido no rol dos poemas bem articulados do livro. Sobretudo no desfecho, que tem efeito intenso, o poeta ganha em expressividade. Os trocadilhos, a preocupação formal e o jogo de palavras tornam o poema um dos mais criativos da coletânea.
Mas Kama Sutra, mais uma vez pela metalinguagem, e pelo trocadilho sexo / escrita, também pela simplicidade do texto, que não deixa de ter um efeito intenso na conclusão bem delineada, é um poema notável.
Kama Sutra

Invento
Posições verbais
Todo santo dia.

Escrever
É fazer Kama Sutra
Com a poesia.

  A céu aberto discorre, também, sobre política, como foi apontado no início deste texto. Quem decidir ler a obra de Paulo Soares se deparará, desde seu livro anterior, e sua produção literária na época dos Cordelistas Mauditos, com poemas de grande valor estético, sobretudo numa perspectiva política, que me parece ser o tema que o autor, sempre ácido, bem como pertinente, melhor explora.
Um tiro no coração da poesia e A céu aberto apresentam um autor que ainda busca delinear seu estilo, mas do ponto de vista conteudístico ambos são fiéis ao que parece ser o principal mote do autor: observar com criticidade o mundo a sua volta. Devemos aguardar os novos trabalhos do autor, para certificarmo-nos de que seu estilo finalmente será consolidado. A leitura do novo livro de Paulo Soares, no entanto, mostra-nos que podemos esperar, em meio a poemas que podem não ser dos mais expressivos, e que apresentam alguns problemas de pontuações, grandes textos poéticos que certamente o tornam um autor notável por não ter medo de expor seu trabalho na busca de torná-lo conhecido, e que parece não temer ter que melhorá-lo.
Paulo Soares precisa criar mais poemas como este, ambíguo, incisivo e com efeito intenso no desfecho, com o qual encerro minhas observações sobre A céu aberto:  

Na ponta da língua

Se na hora do poema
A inspiração me deixar brochar
E ficar à míngua.
Não ria!
Meu tesão pela poesia
Tem a resposta na ponta da língua.


SOARES, Paulo. A céu aberto. Fortaleza: Premius, 2015.

Émerson Cardoso

Junho de 2016

POEMA SELECIONADO PARA A V MOSTRA DE POESIA "ABRIL PARA A LEITURA" DO CCBNB - CARIRI 2016


ACABOU CHORARE

(minha versão)

 

Pela janela, ao acordar, vislumbrei

Três humanos, à força de machado e picareta,

Arrancarem de mim uma das árvores da rua...

 

O que dizer para os devastadores:

Que não me sangrassem com a lâmina do machado,

Porque minhas folhas poderiam nunca mais se recompor?

 

Acabou! – Disse a mim mesmo, quando a vi no chão,

E fiz velório o dia inteiro

Nublando a janela com o furor das pálpebras...

 

"O QUINZE", DE RACHEL DE QUEIROZ - TRECHOS


Publicado em 1930, O Quinze tornou-se um dos livros mais populares de Rachel de Queiroz. Em meio ao drama da seca, o narrador dessa obra – narrador heterodiegético – insere suas personagens em dois planos: 1) por um lado, deparamo-nos com a personagem feminina Conceição, que se vê dividida entre a possibilidade de emancipação, proporcionada pelo universo do conhecimento, e o aprisionamento doméstico, representado pela efetivação do casamento; 2) e, por outro lado, deparamo-nos com a personagem Chico Bento que, com sua família, decide caminhar de Quixadá até Fortaleza para tentar fugir da seca, ocasião em que se defronta com necessidades limítrofes da sua dignidade humana. Diante disso, retomamos O Quinze, no ano em que a seca que serviu como contexto para sua enredística completa seu centenário, com o objetivo de realizar estudo crítico sobre sua estrutura, além de enfatizar o debate que vem à tona à medida que, cem anos após essa grande seca, ainda percebemos a existência de tal problema.  

Em seguida, apresentamos dois trechos dessa obra:

5

Agora, ao Chico Bento, como único recurso, só restava arribar.
Sem legume, sem serviço, sem meio de nenhuma espécie, não havia de ficar morrendo de fome, enquanto a seca durasse.
Depois, o mundo é grande e no Amazonas sempre há borracha...
Alta noite, na camarinha fechada que uma lamparina moribunda alumiava mal, combinou com a mulher o plano de partida.
Ela ouvia chorando, enxugando na varanda encarnada da rede, os olhos cegos de lágrimas.
Chico Bento, na confiança do seu sonho, procurou animá-la, contando-lhe os mil casos de retirantes enriquecidos no Norte.
[...]
Cordulina ouvia, e abria o coração àquela esperança; mas correndo os olhos pelas paredes de taipa, pelo canto onde na redinha remendada o filho pequenino dormia, novamente sentiu um aperto de saudade, e lastimou-se:
– Mas, Chico, eu tenho tanta pena da minha barraquinha! Onde é que a gente vai viver, por esse mundão de meu Deus?
A voz dolente do vaqueiro novamente se ergueu em consolações e promessas:
 – Em todo pé de pau há um galho mode a gente armar a tipoia... E com umas noites assim limpas até dá vontade de se dormir no tempo... Se chovesse, quer de noite, quer de dia, tinha carecido se ganhar o mundo atrás de um gancho?
Cordulina baixava a cabeça. Chico Bento continuou a falar.
(QUEIROZ, p. 26 – 27)

9

Chegou a desolação da primeira fome. Vinha seca e trágica, surgindo no fundo sujo dos sacos vazios, na descarnada nudez das latas raspadas.
– Mãezinha, cadê a janta?
– Cala a boca, menino! Já vem!
– Lá vem o quê?...
Angustiado, Chico Bento apalpava os bolsos... nem um triste vintém azinhavrado...
 (QUEIROZ, p. 46 – 47)

14

Deitada na cama, com a luz apagada, Conceição recordava Vicente e sua visita.
A verdade é que ela era sempre uma tola muito romântica para lhe emprestar essa auréola de herói de novela!
Metido com cabras... não se dava ao respeito... E ainda por cima, não se importava nem em negar...
Mãe Nácia, porque naturalmente, no tempo dela, aguentou muitas dessas, diz que não vale nada...
[...]
Foi então que se lembrou que, provavelmente, Vicente nunca lera o Machado... Nem nada do que ela lia.
Ele dizia sempre que, de livros, só o da nota do gado...
Num relevo mais forte, tão forte quanto nunca o sentira, foi-lhe aparecendo a diferença que havia entre ambos, de gosto, de tendências, de vida.
O seu pensamento, que até há pouco se dirigia ao primo como a um fim de natural e feliz, esbarrou nessa encruzilhada difícil e não soube ir adiante.
Ele lhe aparecia agora como um desses recantos da mata, próximo a um riacho, num sombrio misterioso e confortante. Passando num meio-dia quente, ao trote do cavalo, a gente para ali, olha a sombra e o verde como se fosse para um cantinho do céu...
Mas volvendo depois, numa manhã chuvosa, encontra-se o doce recanto enlameado, escavado de minhocas, os lindos troncos escorregadios e lodosos, os galhos de redor pingando tristemente.

  (QUEIROZ, 1993, p. 78 – 79)

QUEIROZ, Rachel de. O Quinze. 58. ed. São Paulo: Siciliano, 1993.

"ROMANCE LXXX OU DO ENTERRO DE BÁRBARA ELIODORA", DE CECÍLIA MEIRELES



Nove padres vão rezando
– e com que tristeza rezam! –
atrás de um pequeno vulto,
mirrado corpo, que levam
pela nave, além das grades
e ao pé do altar-mor enterram.

Dona Bárbara Eliodora,
tão altiva e tão cantada,
que foi Bueno e foi Silveira,
dama de tão alta casta
que em toda terra das Minas
a ninguém se comparara,

lá vai para a fria campa,
já sem nome, voz nem peso,
entre palavras latinas,
velas brancas, panos negros,
– lá vai para as longas praias
Do sobre-humano degredo.

Nove padres vão rezando...
(Dizei-me se ainda é preciso!...
Fundos calabouços frios
devoraram-lhe o marido.
Quatro punhais teve n’alma,
na sorte de cada filho.

E, conforme a cor da lua,
viram-na, exaltada e brava,
falar às paredes mudas
da casa desesperada,
invocar Reis e Rainhas,
clamar às pedras de Ambaca.)

Ela era a Estrela do Norte,
ela era Bárbara, a bela...
(Secava-lhe a tosse o peito,
queimava-lhe a febre a testa.)
Agora, deitam-na, exausta,
num simples colchão de terra.

Nove padres vão rezando
sobre seu pálido corpo.
E os vultos já se retiram,
e a pedra cobre-lhe o sono,
e os missais já estão fechados
e as velas secam seu choro.

Dona Bárbara Eliodora
toma vida noutros mundos.
Grita a amigos e parentes,
quer saber de seus defuntos:
ronda igrejas e presídios,
fala aos santos mais obscuros.

Transparente de água e lua,
velha poeira em sonho de asa,
Dona Bárbara Eliodora
move seu débil fantasma
entre o túmulo e a memória:
mariposa na vidraça.

Nove padres já rezaram.
Já vão longe, os nove padres.
Uma porta vai rodando,
vão rodando grossas chaves.
Fica o silêncio pensando,
nessa pedra, além das grades.

domingo, 13 de março de 2016

FASSBENDER E WINSLET: UM ENCONTRO TRIUNFANTE EM “STEVE JOBS”



Rafael Fishmann (2016)[1] afirma, sobre o filme Steve Jobs, dirigido por Danny Boyle, que este, pelo diferencial de seu enredo, não é apenas “mais um filme sobre Steve Jobs”. Ele diz isto, certamente, porque quem o assistir se deparará com novas nuanças que diferem dos demais filmes que também discorrem sobre a personalidade evocada no título.
Boyle o apresenta em três momentos de sua vida e enfatiza, além das decisões que ele toma do ponto de vista profissional, sua dificuldade em demonstrar afeto pelas pessoas com as quais mantém laços de maior proximidade: como ocorre em sua relação com a filha – que ele inicialmente nega ser sua – e com as pessoas com quem precisa lidar ao longo de sua instável vida profissional.  
            Devo dizer que o que torna esse filme cinebiográfico um clássico imediato se deve, sobretudo, a dois aspectos: 1) o roteiro (adaptado da premiada biografia Steve Jobs (2011), realizada por Walter Isaacson, ele é constituído de diálogos precisos, bem articulados e dotados de um ritmo intenso) e 2) o elenco, que dá o melhor de si em grandes atuações (Michael Fassbender, Kate Winslet, Jeff Daniels e Michael Stuhlbarg estão impecáveis).
            A respeito desse filme, A. O. Scott (2015)[2] diz que: “The accuracy of this portrait is not my concern. Cinematic biographies of the famous are not documentaries”[3]. Concordo. Não me parece, de fato, o mais relevante encontrar nele o que pode ter sido fiel à realidade, ou mesmo ao livro que o inspirou, mas o modo como a história foi contada – o roteirista Aaron Sorkin e o diretor, do meu ponto de vista, foram geniais.
            Sobre a interpretação de Fassbender, aclamada por diversos críticos, Steve Rose (2015)[4] diz que: “Despite bearing little physical resemblace [...], Fassbender inhabits the Jobs persona with compelling conviction – long before he breaks out the black polo neck”[5]. A propósito, por sua atuação Fassbender recebeu indicações, dentre outros prêmios, para o BAFTA, para o Globo de Ouro e para o Óscar de Melhor Ator. Sua interpretação é realmente digna de prêmios! Ele consegue nos convencer como um Jobs humano, falível, austero, dotado de conflitos internos, mas ao mesmo tempo determinado, ousado e incisivo em suas posturas.
            Outra atuação que teve indicação para o BAFTA, para o Globo de Ouro e para o Óscar, desta feita de Melhor Atriz Coadjuvante, nesse filme, foi a de Kate Winslet. Ela venceu o Globo de Ouro, o BAFTA e é uma das favoritas para os demais prêmios para os quais foi indicada. Considerada uma das melhores atrizes de sua geração, Winslet tem um histórico de personagens marcantes e ela, em Steve Jobs, acrescentou à sua carreira mais uma personagem delineada por um caráter forte a que ela deu vida com seu já reconhecido talento. Trata-se de Joanna Hoffman, que trabalhou com Jobs e, no filme, é apresentada como sua fiel escudeira.
            Em entrevista, ao ser indagada sobre o que há de especial nesta personagem, Winslet[6] afirma: “Foi um dos grandes papéis que criei. É um cenário de sonhos: diálogos de Aaron Sorkin, interação com Michael Fassbender, dirigida por Danny Boyle. Eu quase nem prestei atenção no tema central do filme, para ser honesta. Eu queria era estar naquele set”.
            A interação entre Winslet e Fassbender rendeu cenas magistrais. Eles são atores experientes, intensos e determinados a dar o melhor de si, por isto conseguem ser convincentes e emocionam por conduzirem com propriedade suas personagens e, também, pelo ritmo que empregam aos diálogos – o trabalho de construção vocal de Winslet merece ser elogiado.
            Winslet disse, ainda, quanto à relação existente entre Jobs e Joanna, que nunca viu “uma dinâmica assim no cinema americano, em que o protagonista precisava mais dela do que vice-versa”. Ressalte-se, nesta perspectiva, uma das cenas mais emblemáticas do filme: Joanna, indignada pela falta de atenção de Jobs, em relação à filha, expurga seu desconforto atirando papéis pelo chão, ao mesmo tempo em que ameaça abandoná-lo. Ela, que sempre permaneceu ao seu lado, mesmo quando, com sua personalidade forte, o enfrentava, ameaça que se demitirá, após anos de uma parceria marcada pela lealdade e pelo apoio irrestrito que ela lhe dispendeu em seus empreendimentos. Isto faz com que ele, incentivado pela companheira de trabalho, e amiga, olhe com mais sensibilidade para a filha.   
Cumplicidade, lealdade e amizade, a partir dessa relação, podem ser apontadas, pertinentemente, como subtemas desse filme. Poucas vezes foi possível ver no cinema uma relação de amizade entre um homem e uma mulher construída de modo tão intenso, sem que isto caísse em conotações afetivo-sexuais entre eles.
Desse modo, é possível perceber que tais subtemas somam-se ao tema principal, que é a perscrutação psicológica de Jobs ante seus empreendimentos e conflitos internos, e amplia a dimensão humana do filme. Isto suscita inúmeras reflexões que apontam para os aspectos polissêmicos dessa obra cinematográfica que pode ser considerada, sim, uma das mais bem delineadas cinebiografias realizadas pelo cinema norte-americano.
Fassbender e Winslet protagonizaram um encontro triunfante nesse filme em que as personagens Jobs e Joanna se completam, fraternalmente, numa existência que parece exigir deles, cada vez mais, coragem, persistência e mútua lealdade. Esse encontro foi tão expressivo que merece acontecer novamente: que isto ocorra em breve! 
 
            Cícero Émerson do Nascimento Cardoso
           




[1] FISHMANN, Rafael. Steve Jobs não é só mais um filme sobre Steve Jobs. Disponível em: https://macmagazine.com.br/2016/01/12/critica-steve-jobs-nao-e-so-mais-um-filme-sobre-steve-jobs. Acesso em: 13/02/16.
[2] SCOTT, A. O. Review: ‘Steve Jobs’, Apple’s Visionary C.E.O. Dissected.   http://www.nytimes.com/2015/10/09/movies/review-steve-jobs-apples-visionary-ceo-dissected. Acesso em: 13/02/16.
[3] “A precisão biográfica deste retrato não é minha preocupação. Biografias cinematográficas de famosos não são documentários”.
[4] ROSE, Steve. Michael Fassbender on playing Steve Jobs: “Was he flawed? Yeah! We all are”. http://www.theguardian.com/film/2015/nov/12/steve-jobs-well-done-portraying-the-apple. Acesso em: 13/02/16.
[5] “Apesar da pouca semelhança [...], Fassbender habita a persona Jobs com convicção convincente – muito antes de ele entrar na polo de gola preta”.
[6] GRAÇA, Eduardo. Entrevista: Kate Winslet sobre “Steve Jobs”: estava disposta a desaparecer neste papel. Disponível em: http://cinema.uol.com.br/noticias/redacao/2016/01/14/kate-winslet-sobre-steve-jobs-estava-disposta-a-desaparecer-neste-papel.htm. Acesso em: 13/02/16.