quarta-feira, 20 de julho de 2016

ROMANCE INCONFORMADO (ANIVERSÁRIO DE JUAZEIRO DO NORTE -CE)


I
Ó cidade dos romeiros
Que à mercê da própria sorte
Debulha preces sentidas,
Quem te dará proteção
Contra facínoras, crápulas,
Que te roubam vorazmente
Eleição-pós-eleição?

Ó cidade atormentada
Pela falta de respeito
De monstruosos políticos,
Quem brigará por tuas lutas?
Quem te dará novos homens
Que resguardem teus valores
E que tenham gestos dignos?

Ó cidade sobranceira
De nordestinas sapiências
E de imponente memória,
Quem salvará do abandono
Teus recantos e riquezas?
Esqueceram-se de ti,
Desprezaram tua história?

Ó cidade inconformada,
De trânsito insustentável
E precária infraestrutura,
Quem te vê que não deseja
Novos rumos, novas eras,
Renovação dos teus bairros,
A segurança nas ruas?

II
Separamo-nos do Crato,
Vencemos Franco Rabelo,
Progredimos largamente,
Ó cidade dos romeiros!

Mas por que nós sucumbimos
Perante a ausência de escrúpulos
De políticos infames
Mil vezes incompetentes?

Padre Cícero fez tanto
Para construir Juazeiro!
Juazeiro é seu milagre:
Não carece de cuidado?

Ante a sânie de políticos
Que desprezam seus exemplos,
Que faremos, ó cidade,
Lar e abrigo de romeiros?

Queria limpar-te as feridas,
Lavar teus olhos chorosos.
Verter abraços queria
Sobre ti, cidade minha!

Queria salvar-te, Juazeiro,
Dar-te futuro honroso.
Abrir-te as mãos com preclaras
Aconchegar-te em meu peito.

Ó cidade resistente,
Tenho pouco para dar-te.
Meus versos inconformados
São um presente simplório.

Mas os entrego, humilde,
E espero ver-te, quem sabe,
Assistida e refulgente
A vestir novas roupagens!


CARDOSO, Cícero Émerson do Nascimento. Romanceiro do Norte Juazeiro. Virtualbooks Editora: Pará de Minas, 2014.

CRÔNICA: "TRATADO SOBRE A DOR"

"Big Man", de Ron Mueck 
Tarefa difícil esta de escrever quando se está doendo. Creio que temos consciência de nossa humanidade por meio da dor, por isto nunca nos isentaremos de vivenciá-la em algum momento. Quem pode ser superior à possibilidade de doer?
Há quem sinta prazer na dor – os masoquistas que o digam –, há quem sinta prazer em fazer doer – prerrogativas dos sádicos. Não podemos ver só um lado da moeda: por acaso um ser humano pôde aprender algo sem doer um pouco que seja?
Alguém me disse que uma mãe dói a pior dor quando morre um filho. Outro dia a vida me possibilitou ver uma senhora de oitenta anos chorando a morte do filho que morreu de ataque fulminante do coração. E eu, que presenciei a cena, permaneci em silêncio. Que palavra vai retificar a cratera daquele dileto coração?
Ainda vi dor quando uma amiga de infância foi embora – mas esta dor eu prefiro fingir que não aconteceu. Foi comigo também a dor quando morreram familiares queridos. Dor por mim e por aqueles que não sabiam doer como eu.
O tempo apaga tudo para alguns, para mim não: basta uma lembrança que a dor volta inteira. Não é só isso que pode ser considerado: uma foto de um tempo distante, uma música de melodia nostálgica, palavras que são retomadas numa conversa oportuna...
No dia em que visitei a primeira escola em que estudei na vida, quantas surpresas me aguardava a dor! Eu sempre fui de lembrar, mas não contava que seria capaz de ver meus colegas de dor infantil correndo naquele pátio. Cada lado do pátio, cada sala, meu Deus, quantos momentos passados que talvez só eu, numa existência toda, seja capaz de sentir como se fosse agora.
            Para entender a dor temos que ter sensibilidade. Algo que me sensibiliza é ver, diante de mim, a humilhação dos outros. Não gosto que punam os outros na minha presença. Lembro-me de que no período do serviço militar sofria mais pelos outros do que por mim. Vou fazer uma confissão: eu transcrevia as conversas que eu tinha com os meus companheiros de farda. Ia colhendo informações sobre eles e, sem que eles soubessem, colecionava, em forma de escritos, suas dores.
          Outro dia alguém me disse que a pior dor que existe é ficar em solidão. Outro já disse que é ficar sem a mãe. Outro que é perder o grande amor da vida. Mas consenso geral é que a dor pode triturar corpo e alma. E disto tenho receio.  
Na obra Dora, Doralina, de Rachel de Queiroz, a personagem protagonista inicia sua narrativa dizendo que: “A vida toda é um doer”. Concordo e digo mais: a vida toda, a meu ver, corresponde a um confronto intermitente contra a dor. Doer não é fácil até para os mais fortes.
Tive um amigo que um dia me disse que o slogan da sua vida era: “Viver a vida de todos os modos possíveis sem considerar a dor”. Este amigo tentou suicídio duas vezes, na terceira quase morreu – a verdade é que ele doía por amor.
Por que discorro aqui sobre dor? Eu sentia uma espécie de dor e decidi escrever sobre o assunto, porém agora cesso este texto porque de tanto escrever sinto dor nos dedos. Doer, sobretudo ao frágeis, é exercício insuportável.
A dor, segundo Celso Pedro Luft, é: sofrimento físico proveniente de doença, ferimento; tormento moral; aflição; dó, pena; remorso, arrependimento. Se ele diz, quem sou eu para desdizer? Mas que fique bem claro: a dor dói em mim e doerá até que a dor total se instale em mim e leve-me à sepultura. E isto parece não doer, mas me ampliar. É como se a dor realizasse tarefa renovadora e representasse possibilidades de sabedoria e experiências que me serão valiosas por toda a vida.
Uma indagação de repente me atormenta de tal modo que chega a doer: se viver é sentir dor a conta-gotas, como será a dor que antecede a morte? 

                                                                                               Émerson Cardoso

sábado, 16 de julho de 2016

RÉQUIEM PARA LUZIA




Eita, Luzia, parece que foi ontem
Que apertamos as mãos em despedida!
Que feliz conhecê-la nesta vida,
Vida que tende a ser pouco amigável!

Tu foste um ser humano tão amável!
Tantas vezes agiste por bondade
Quando isto em alguém é raridade:
E foste abrigo, afeto e acolhimento!

Foi de Deus caro presente, Luzia,
Tê-la encontrado em venturoso dia
E poder contar com sua amizade...

Qualquer lágrima que corra por ti,
É lembrança de que a vejo sorrir
Em minha mente plena de saudade!

Émerson Cardoso
13/06/16



terça-feira, 12 de julho de 2016

CONTO: "ENTRE MÚSICA E MOSCAS"


(Para ler, indispensavelmente, ao som de L’hymne a l’amour, de Edith Piaf)
  
“Enviarei enxames de moscas sobre ti.” (Êxodo 8: 21)

Um abrigo. No centro do recinto, um refeitório. Gatos rondam os espaços a espargir fezes. Moscas deslizam sobre o ar de incortável espessura. Há um resquício de jardim com roseiras repletas de espinhos e plantas que não verdejam. No todo, há um odor irrevitalizável de fechada gaveta. Mofo. Lentas águas de esgoto a céu aberto. Baratas ocultam-se estrepitosas. Cheiro de talco. Naftalina. Velhice. Abandono. Há pouco, um grito na decadente atmosfera ecoou. Foi assim:

Dona Aurora deitada estava em seu leito – engelhada e com fome sempre. Há dias sem banho. Moscas perspicazes, que sugavam as sujeiras do mundo, queriam sugá-la. Ela, que sofrera duas tromboses, o braço esquerdo movia para livrar-se dos selváticos insetos. Fechou os olhos, abriu-os. O que fazia ali? Onde o dedicado marido? Onde os três filhos? E os amigos tão íntimos? Sobraram-lhe velhice, doença, moscas.

No mesmo quarto, Dona Letícia com dificuldades andava. Ligou o rádio de pilha que ganhou no último dia das mães. Trazia alguma força contra moscas. E o rádio espargiu “L’hymne a l’amour”, de Edith Piaf. Ao escutar a música, Dona Letícia sorriu tristemente. Sua negra pele resplandeceu mais que era resplandecente seu olhar. Escutou a música enlevada. Sem entender palavra, um misto de saudade e persistência fez riacho em seu rosto. Moscas queriam, ousadas, sugar sua única posse: lágrimas-rios a correr silentes.

Dona Clarice saía do banheiro. Sentou-se na cama, para Dona Aurora olhou e deitou-se. Escutou a música de Dona Letícia e viu renascer o homem a quem devotara seu amor. Bonito era. Era bonito. Amou-o, embora doloroso fosse amar homem que traía, humilhava, espancava. Com raiva, certa vez, de ouvir coerências propagadas sobre os telhados, o homem bonito a quem ela devotadamente amara atirou nela uma chaleira que estava no fogo com água a ferver. A pele dos seios nunca mais voltou ao que era. Mas ela o amou, o amava, o amara. Depois que o amado morreu, ela amofinou e este era seu salário. Uma mosca invadiu seu vestido e ela matou-a num aperto do corpo contra a cama.

Dona Aurora tentou falar – não conseguiu. Em que mundo estranho ela... Ela, a mais rica da família, a bem-sucedida, a cujos trajes os outros invejavam, o que estava a fazer ali? Suas posses, adereços, móveis, imóveis, criadagem: onde? Lembrou-se: “Tenho marido rico, tenho dinheiro para toda vida e tenho maravilhosos filhos: o que eu quero mais? Nada peço a Deus. Se ele existe, parece que já me deu tudo... E ele que não se atreva a tomar o que é meu!” Agora, nos poucos movimentos que realizava, uma raiz de revolta e ódio. Odiava moscas. Ela não contava com o exemplo de Jó? E os filhos? Os amigos? O marido morto após a falência? Desesperou-se. Gritava, num sussurro, pelas companheiras de cárcere, ou pela enfermeira negligente, ou por um dos filhos, ou pelo marido, mas...

“Je renierais ma patrie
Je renierais mes amis
     Si tu me le demandais...”

Dona Letícia o rosto enxugou para novamente chorar. Sentiu-se mais-que-sozinha de repente, porque sabia que a música cessaria sem remorsos ao deixá-la ali, naquele cômodo sem saídas. Mas, não sem prenúncios de adeus, a música prosseguia. Tentou acompanhar a melodia cantarolando-a, mas abriu demais a boca e uma mosca a invadiu. Tossiu, tossiu, tossiu... Cuspiu enojada enquanto Piaf espargia no mundo melancolias.

Dona Clarice, gorda no florido vestido que ganhara da silenciosa nora no Natal, deitou-se de vez. Acomodou a cabeça de brancos cabelos, muito penteados, que estavam presos eternamente com auxílio de um rio de vaselina. No ar, cheiro de talco. Talco que ganhara da apática neta que a olhava como se não a quisesse olhar. Nojo, mal-estar, estranhamento no abraço dado. Havia também forte cheiro de abandono.  
           
E o grito se fez carne e habitou entre nós...

Ataque de trombose terceiro para Dona Aurora. Líquido putrefato e acinzentado vomitado por Dona Letícia que trazia em sua essência gorda e espevitada mosca. Ataque fulminante do coração para Dona Clarice.

“Si un jour la vie t’arrache à moi...

Naquela tarde, ao som do rádio de pilha, todos os que podiam, dos demais quartos, foram ver de onde provinha tão compungido grito. Dona Letícia, de pé, abanava as moscas que revoavam sobre os corpos de Dona Aurora e Dona Clarice.

“Nous aurons pour nous l’éternité...”

REFERÊNCIA:

CARDOSO, Cícero Émerson do Nascimento. Entre música e moscas. In: Breve estudo sobre corações endurecidos. Ponto da Cultura: Maricá – RJ, 2011. p. 26 – 28. 

domingo, 10 de julho de 2016

RESENHA CRÍTICA: "CANIBALISMO DE OUTONO", DE ARTURO GOUVEIA


Você e eu somos acúmulos deliberados e casuais de sílabas. E elas só existem se alguém nos ler. É aí que estamos condenados à degradação.
(AG, O Obscuro, p. 117)

Salvador Dalí apresentou sua obra Canibalismo de Outono ao mundo em 1936. Nesta obra, percebemos, dentre outros pontos, a presença de um casal cujas cabeças interligam-se, aparentemente, por meio de um beijo, ao mesmo tempo em que a mulher segura garfo e faca, com os quais se alimenta do corpo do homem que, por sua vez, segura uma colher com a qual também pretende alimentar-se da mulher.
       O título da pintura de Dalí é retomado, também sua essência temática, na primeira obra romanesca de Arturo Gouveia publicada no primeiro semestre de 2016, pela editora Iluminuras. Dividido em duas partes (I – A RAIZ DO ARGUMENTO e II – AS FOLHAS DISPERSAS), este romance apresenta um narrador autodiegético que tem como interlocutor uma juíza a quem ele se reporta através do pronome de tratamento “Meritíssima”. Este narrador, denominado Próspero Miranda, confessa seu crime – crime tão cruel quanto bem articulado – e apresenta as razões que o motivaram a conceber tão passionalmente seu desejo de vingança.
O romance inicia, desse modo, com a narração de momentos especiais vividos entre ele e sua amada, como percebemos no trecho (2016, p. 07)[1]: “No dia em que o Papa morreu, eu tive uma experiência de amor inconfundível. Eu e a Italiana vínhamos de Roma, de um concerto internacional de barítonos e um curso de regência, e nos envolvemos na cama da forma mais suave”. O narrador é um proeminente músico que adota uma órfã chamada Karol, que ele também chama de Italiana, e por quem, com o tempo, apaixona-se – sendo prontamente correspondido.
 Acontece que, quando Próspero Miranda, a despeito de críticas, introduzira a filha adotiva numa apresentação para a qual estava ensaiando, e a esperava para o segundo ensaio da Litania n. 4, de Francesco Durante, ela não apareceu. Depois, somos informados de que a moça (p. 09) “foi encontrada morta no carro dos gêmeos, cortada, trucidada de espancamentos, quase todo o corpo com hematomas e sinais de estupro e resistência”.
Foram acusados do crime os gêmeos Tila e Vói, de dezessete anos, que, apoiados pelo status do pai, conseguem ser absolvidos, sobretudo porque dispunham do álibi perfeito: uma foto na qual eles estavam, na mesma noite do crime, com garotas na boate de propriedade de seu pai.
A partir deste fato, e de outros que o leitor precisa recorrer ao instigante enredo para compreender, Próspero Miranda decide realizar um ato de vingança que seja, em todos os sentidos, excepcional. Ele deseja, por meio disto, expurgar sua frustração ante a impunidade que possibilita aos gêmeos ter uma vida normal após ele ter sido dilacerado, psicologicamente, ao saber da morte de sua amada.
A vingança, como poucas vezes vislumbramos na Literatura Brasileira, aparece com intensidade nessa obra. O narrador, a respeito de seu projeto de vingança, afirma (p. 13): “Meu plano era relativamente digressivo e previsível, como uma literatura de mau gosto que não vai direto ao desfecho. Mas isso multiplicava meu ódio como ninguém podia prever. E foi aí, um ano após a morte do Papa, que Tila e Vói chegaram no inferno”.
A propósito, do ponto de vista onomástico, o nome do narrador-protagonista nos remete à obra shakespeariana A tempestade. Próspero, duque de Milão, é confinado por traições políticas numa ilha, com sua filha Miranda, e utiliza-se de vasto conhecimento e de magia para realizar um ato de vingança contra seus traidores. Neste sentido, a relação intertextual presente nos nomes é mais que evidente e amplia as possibilidades de interpretação desse livro, sobretudo se considerarmos a temática da vingança – temática central de ambos.
Devemos mencionar, também, a proximidade sonora dos nomes dos gêmeos Vói e Tila com o sobrenome do Papa João Paulo II (Karol Józef Wojtyla), cuja morte é mencionada enfaticamente no livro. Atentemos, ainda, para o fato de que a filha adotiva de Próspero, a quem ele devota amor intenso, chama-se Karol, ou seja, o primeiro nome do líder religioso.
Ressaltemos que, além desses aspectos, Arturo Gouveia comprova a ideia de Bakhtin, que pensa o romance como uma forma proteica que pode assimilar, em si, diversos gêneros. Percebemos, neste sentido, que Canibalismo de Outono apresenta capítulos que se assemelham estruturalmente, por exemplo, aos textos do gênero dramático. Neles, há a indicação do nome da personagem seguida de sua fala, o que pode remeter também ao formato de diálogo típico de textos clássicos como os de Platão e Aristóteles. Há, ainda: partitura, entrevista, inúmeros minicontos e sonetos, que são de uma criatividade imensurável, também carta, como a que é direcionada a Hannah Arendt, com onze pontos que são breves comentários sobre seu conceito de banalidade do mal.
Do ponto de vista da linguagem, a incapacidade de comunicação dos gêmeos, que são aparentemente incapazes de comunicar-se sem espargir contra o interlocutor uma palavra obscena e vulgar, é ridicularizada pela erudição de Próspero Miranda e de outras personagens fascinantes que o narrador apresenta: o PINTOR – Salvador Dalí –, AG – o Obscuro –, Górgona-Húmus – a destruidora de rostos – e o Mentor – também retomado pelo pronome ELE.
Há capítulos em que percebemos o fluxo de consciência da personagem de modo tão intenso que desaparecem os sinais de pontuação e algumas palavras – surgem, em contrapartida, sinais gráficos aleatórios, pontilhados, parágrafos formados apenas por cinco linhas sem qualquer pontuação, dentre outras marcas textuais que parecem acompanhar os conflitos e divagações psicológicas do narrador-personagem. Há um capítulo, nesta perspectiva, intitulado ENCONTRO ACELERADO – III (DÓ), em que a frase “não seja puta de Benjamin Franklin” é repetida excessivamente, sendo intercalada com parágrafos em que o narrador retoma, apenas em alguns trechos, sua narração, e com sonetos, e minicontos, de notável vigor poético.
         Precisamos dar ênfase, para além da vingança de Próspero, que constitui o enredo por excelência do livro e já nos dimensiona, pela fabulação, seu valor estético, a pelo menos três acontecimentos marcantes: 1) o capítulo ENCONTRO ACELERADO – I (em que o narrador encontra-se com personalidades como AG – o Obscuro), 2) o capítulo ENCONTRO ACELERADO – II (em que o narrador visita Górgona-Húmus na Penitenciária Feminina localizada no Paço dos Abutres) e 3) o capítulo ENCONTRO ACELERADO IV (em que o narrador encontra-se na Itália com o Mentor, mais precisamente o diabo, e com ESQUILO  e ELI).
            Consideramos, diga-se de passagem, que Canibalismo de Outono pode inserir-se na tradição de textos literários que se remetem a pactos diabólicos. Neste caso, o Mentor, que se opõe a Próspero, tenta desencorajá-lo, por meio de argumentos bem delineados, a desistir de sua vingança – seus argumentos, no entanto, não são aceitos.
            A erudição dos diálogos, o alto grau de reflexão apresentado nos discursos das personagens, a menção a obras e nomes da música erudita, a menção a autores proeminentes da Literatura Universal e da Filosofia, assim como a construção narrativa que traz seus tons de bizarrice e de absurdo, bem como a construção psicológica de suas personagens que, algumas delas, margeiam o grotesco, tornam este livro uma experiência romanesca mais-que-bem-sucedida.
            Entre o amor erótico em sua manifestação mais singela, e o despertar da crueldade humana que nasce, por vezes, da incapacidade de ser indiferente a injustiças, Canibalismo de Outono nos apresenta um protagonista complexo, cruel e vingativo, mas que nos incita a pensar sobre a condição humana em suas mais vastas potencialidades – sobretudo em sua capacidade de amar, de sentir solidão e de sentir-se impotente ante a dor da perda.  
Este romance nos causa impacto, nos atemoriza, nos causa estranhamento, ao mesmo tempo em que nos leva a indagar, enternecidos, sobre o que de fato ocorreu no enredo: os acontecimentos são reais, ou não passam de devaneios de uma mente fustigada pela crueldade de tipos como os gêmeos Vói e Tila? O esboço de romance apresentado por AG, o Obscuro, é a resposta para o que perscrutamos? Isto tira nossa paz. Mas, a propósito da paz, para concluir, transcrevo uma das muitas frases que me tocaram profundamente neste livro (p. 191): “O pior dos infernos é ser cúmplice de uma paz aparente”.         
Arturo Gouveia é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada, é professor titular da Universidade Federal da Paraíba e escreveu, dentre outras obras: No inferno (1988), O mal absoluto (1996), A farsa do milênio (1997), A arte do breve (2003), O Evangelho Segundo Lúcifer (2007) e Santíssimas trevas (2008).
Cícero Émerson do Nascimento Cardoso



[1] GOUVEIA, Arturo. Canibalismo de Outono. São Paulo: Iluminuras, 2016.