terça-feira, 30 de janeiro de 2018

FOLHETIM DE FACEBOOK OU CRÔNICA: "DEPOIS DA FESTA, COMEÇA O ANO"

PARTE 1

Primeiro mês do ano de 2018. Entendo o porquê de as pessoas idealizarem tanto a festa de fim de ano: o cotidiano é insuportável! Dormir, fazer refeições, trabalhar, lidar com o trânsito, ser vítima dos impostos (IPVA, IPTU, dentre outros), consumir no ar a pouca perspectiva de mudança para a política nacional...

As mesmas pessoas que falavam do nascimento de Jesus, e desejavam ano novo promissor a quem cruzasse o caminho, preferem dar bom exemplo aos políticos e agem com altruísmo e respeito em filas, no trânsito, nas repartições públicas, na cozinha de casa, nas calçadas do centro da cidade, nos terrenos baldios – com que gentileza fustigam o mundo! A chuva de começo do ano mostra a gentileza do povo sendo arrastada pelas ruas a entupir bueiros e esgotos. Ah! Ninguém subestime o universo das sombras cotidianas: ele pode muito mais do que nós! E Cristo fica em seu lugar de sempre, já não mais recém-nascido. Traz seus punhos furados e seu lado direito sangrando – como de costume. Enquanto isto, o ódio e a violência do mundo brincam de roda com a cristandade. Que ciranda festiva!

PARTE 2

A chuva de começo do ano mostra a gentileza do povo sendo arrastada pelas ruas a entupir bueiros e esgotos. Ah! Ninguém subestime o universo das sombras cotidianas: ele pode muito mais do que nós! E Cristo fica em seu lugar de sempre, já não mais recém-nascido. Traz seus punhos furados e seu lado direito sangrando - como de costume. Enquanto isto, o ódio e a violência do mundo brincam de roda com a cristandade. Que ciranda festiva!

O primeiro mês do novo ano já fez deslizar máscaras. Pessoas abraçáveis colocam punhais nos dentes e redesenham mágoas – comigo é diferente? Ética e respeito não cantam notas expressivas. Se o planeta soubesse o que comporta cessaria seu giro, e tudo o mais dançaria sem música. O ser humano pode ser podre, oco e frágil, repetimos. E quem pode ser perfeição na Terra? E quem pode cerrar os olhos? Poucos exemplares dignos ocupam os metros quadrados do planeta. E eu, que não sei de mim? E eu, que pareço santo quando julgo o mundo? E eu, que retalho a vida com mãos sempre feridas? Que vida? Ah! Não sei se 2018 poderá trazer arcanos mais dignos. Ano eleitoral e de copa e de... De quantos outros momentos de subterfúgio e caos?

PARTE 3

Acontece que é fácil exigir dos outros uma solidariedade que não temos. Somos culpados por esbravejar, ou por lavar as mãos? Cada verso do poema que não escrevemos é a entrelinha do monstro morando em nós: ele está fadado a comer libertação e iguais direitos para, insone, excretar não-fraternidades. Atirar pedra nos outros quer ser nossa missão, percebamos! É possível vestir roupagem isenta de orgulho e sombras, também tirar do olhar vapor de mágoas? Silêncio e solidão seriam caminhos adequados, ou mesmo antídotos, que nos libertariam de errar menos? 

O ser humano pode ser podre, oco e frágil, repetimos. E quem pode ser perfeição na Terra? E quem pode cerrar os olhos? Poucos exemplares dignos ocupam os metros quadrados do planeta. E eu, que não sei de mim? E eu, que pareço santo quando julgo o mundo? E eu, que retalho a vida com mãos sempre feridas? Que vida? Ah! Não sei se 2018 poderá trazer arcanos mais dignos. Ano eleitoral e de copa e de... De quantos outros momentos de subterfúgio e caos?

PARTE 4

Primeiro mês do ano, mas a sensação é de que os meses últimos já rechegaram. Seria possível alterar o girar do mundo se eu corresse aos gritos pisando em pregos e vestindo urtiga? Eu devo mudar primeiro, devo dizer. Mudar seria, meu Deus, conviver sem vislumbrar tortura. Nem sempre o convívio é ferir os pés e fustigar a pele – é certo. E, se a esperança se materializa, falhas são sinais de redenção: erros conduzem, tanto quanto a morte, a humanidade ao mesmo clã dos que vivem aos tombos. A cura existe? Ninguém se cura de errar aos prantos e redesejar perdão. Ao ser humano, errar tentando o melhor convívio é vida acesa no revirar das horas.

E por falar em convivência, querem que eu me posicione ante dois espaços de ódio: o ódio I quer que eu o abrace e odeie o ódio II, e o ódio II quer que eu o abrace e odeie o ódio I. Não tenho condições, porque odiar estraga a pele e não cura gordura no fígado. Se me dessem outra opção... Assim, prefiro o não e o não. Preciso recuperar meus dedos, que se foram em aceno austero. O que fazer com o que tenho agora? Ler é sufrágio, escrever é ponte. E tomar água e fazer poemas riem de mim. Não apoiarei um ódio ou outro, porque amar é estrada de espinho ridente que me instiga a recobrar meu pulso. E passar bem, despropositados ódios. Espero que o que for amor, em cada rua, exista – e eu o encontre na passarela inerte de um cotidiano bom.

PARTE 5

O primeiro mês do ano está prestes a acabar – acabou, devo dizer. Ou será que no espaço de um dia ainda poderemos viver grandes momentos? O ano, porém, prossegue a marcha indiferente a chacinas, a tempestades políticas que têm se formado, a olhares insones, a mudanças não planejadas e a golpes. O ano passa por estar com medo? Claro que não! O medo não o fustiga. O medo, antes, é vestimenta que cabe melhor em nós. Tenho visto muita coragem assomar em gente antes medrosa. Os tiranos e seus golpes não têm força quando a coragem redefine o sangue. Então, ano que finda, pode seguir seu curso, mas nos ensine a ter coragem. Não queremos congelar a boca e retesar os passos...

No mais, quando o caos sair sedento pelas ruas da vida, e o país abrir seus cansados olhos, será o momento da trégua? A esperança erguerá seu punho e saciará, finalmente, a fome que nos acomete? Todos dirão, ano intangível, que a voz guardada é bomba contra despotismo e morte. Na multidão escuto gritos de medo – sou eu perdido procurando a mim. O fim se fez carne e habitou o mundo. Adeus, janeiro! Aceite minha última saudação. Mas, antes, responda, Deus: virão melhores dias?

Émerson Cardoso

(Que escreveu sem forças entre os dias 24 – 30/01/2018)

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

CRÔNICA: "AH, OS AMIGOS", DE RACHEL DE QUEIROZ



 Sim, amigo é coisa muito séria. Acho que a gente pode viver sem emprego, sem dinheiro, sem saúde e até sem amor, mas sem amigos, nunca. Pois o amigo é capaz inclusive de suprir discretamente essas faltas e lhe conseguir trabalho, lhe emprestar dinheiro, lhe tratar a doença. Só não pode se envolver em assuntos de amor, porque aí deixa de ser amigo; e a maior tolice a que se arrisca a incorrer a alguém é misturar amigo com amor.
Amizade e amor são qualidades paralelas na vida de cada um; se conhecem, até se estimam, mas nunca se encontram ou se confundem. Aliás, não estou dizendo novidade nenhuma, todo mundo sabe que o namoro, noivado, casamento, amores são relações essencialmente antípodas da amizade. Quer pela sua impermanência, ou, quando permanentes, pela sua natureza tumultuária, absorvente, egoísta, as relações de amor têm que ter categoria à parte. Transforme em amante o seu amigo ou amiga, e você perde o amigo e terá um péssimo amante, que sabe todos os seus defeitos, lhe conhece do tempo em que você não se enfeitava para ele, não lhe escondia suas falhas do corpo e da alma, e que, portanto sabe de todos os seus pontos fracos. Fica impossível.
A primeira lei da boa amizade creio que é ter poucos amigos. Muitos camaradas, colegas, conhecidos cordiais, mas amigos, poucos. E, tendo poucos, poder e saber tratá-los. Jamais criar tempo de rivalidade entre os amigos: cada um há de ter sua área específica, sua zona própria de influência.
Não vê que cada amigo, por ser único no seu território, não precisa sequer conhecer os donos dos outros territórios. É que, sendo a nossa alma tão variada nas exigências, precisamos de amigos de acordo com os diferentes ângulos do nosso coração. O amigo da comunicação intelectual não pode ser o mesmo amigo da confiança íntima; o velho companheiro da infância não tem nada a ver com o precioso camarada adquirido nos anos de maturidade.
E há outras razões práticas para não misturar os amigos: eles podem se coligar contra a gente, ou se tornar amigos entre si, por conta própria, nos excluindo. Ou também podem se chatear uns com os outros, porque os companheiros espirituais deles nem sempre correspondem aos nossos. Se você adora fulano porque toca em suas cordas nostálgicas, contando-lhe lembranças da mocidade passadas na barranca de um rio em Mato Grosso. Assim com o futebol, os debates sobre religião, as intrigas políticas, os negócios, o gosto de recordar os sambas de Noel Rosa. Insisto, mantenha com rigor cada amigo no seu compartimento.
Axioma absoluto em assuntos de amizade: amigo é insubstituível. O que um lhe deu jamais outro lhe poderá dar igual. Pode vir um amigo novo para preencher a área vazia deixada pelo amigo que se foi por morte ou briga. Mas só ocupará mesmo aquele espaço físico. E há vezes em que nem isso é possível. E o melhor será fechar aquele nicho do coração, dada a dificuldade de encontrar outro ser vivo que satisfaça ante nós as especificações do ausente. Ai de mim, bem o sei. Minha amiga de infância que morreu deixou no meu peito esse santuário vazio.
Respeite seus amigos. Isso é essencial. Não procure influir neles, governá-los ou corrigi-los. Aceite-os como são. O lindo da amizade é a gente saber que é querida a despeito de todos os nossos defeitos. E nisso está outra superioridade da amizade sobre o amor: a amizade conhece as nossas falhas e as tolera e, até mesmo, as encara com condescendência e afeto. Já o amor é só de extremos e, ou se entrincheira na intolerância, ou se anula na cegueira total. Amigo entende, aguenta, perdoa, "Amigo é pra essas coisas", como diz aquela cantiga tão bonita.
Se você não é capaz de ter amigos, você é um erro da natureza, você é como o unicórnio, o animal de que se fala mas não existe. Porque até os bichos têm amigos; e dizem que, depois da morte, no outro mundo, as almas mantêm sublimadas as amizades cá de baixo, naquela quintessência de excelências que só o céu pode dar.
(Rachel de Queiroz)


 QUEIROZ, Rachel de. Ah, os amigos. In: Rachel de Queiroz – Melhores Crônicas. 2. ed. São Paulo: Gaudí Editorial, 2008. 


CRÔNICA: "LITERATURA, SOLIDARIEDADE E MORTE"


Eu, que não conseguia pensar em definições para a felicidade, passei a utilizar a ideia proposta por Clóvis de Barros Filho em algumas de suas aparições internéticas. No Provocações, por exemplo, sendo entrevistado por Abujamra, ele sugeriu que a felicidade acontece quando se realiza algo e deseja-se que este algo não acabe nunca.
            Neste sábado, pela manhã, iniciei a fatigante tarefa de limpar e organizar livros. Meu problema é que demoro demais realizando esta tarefa, porque inevitavelmente passo a ler trechos ou capítulos inteiros – fica impossível concluir o trabalho a que me proponho em tempo hábil.
            Enquanto limpava os livros, devo dizer, fiquei tão angustiado a ponto de sentir dor física. Quando eu morrer, e eu vou morrer mais dia menos dia, o que acontecerá com meus livros, que constituem a única posse material que me causa medo de perda? Depois que eu me for, quem será capaz de cuidar deles, ou utilizá-los, com o mesmo devotamento a que eu estou fadado? Veio-me, com isto, medo de morrer. Medo de ficar sem aquilo que constitui algo de relevante para mim sobre a Terra. Medo e angústia. E se eu fosse embora hoje, por morte ou fuga? Como eu poderia deixar para trás aquilo que me causa tanta satisfação? Sim, eu também vejo nisto muito materialismo e dramaticidade. Parece-me doloroso que eu consiga atribuir tanto valor sentimental a objetos e, por vezes, não conseguir olhar com o mínimo de humanidade para alguns seres com os quais tenho que conviver. É que os livros foram conquistados com sacrifício, e sabem falhar menos.
            Pensei, em seguida, que amo livros porque amo Literatura. Pronto. Não amo livros – isto me redime! –, amo a Literatura que eles podem me dar em grandes ou pequenas doses. Eis, portanto, a relação com o que Clóvis de Barros Filho pensa sobre a felicidade. Enquanto posso ler, informar-me, discutir e repassar algo sobre Literatura eu me sinto vivo, eu me sinto feliz. Pensar que isto poderá cessar um dia, por algum motivo, me amedronta. E, para tentar expressar este medo, parei a arrumação dos livros, respirei um pouco e passei a escrever. Escrevi para mim mesmo, claro. Ultimamente, nem os clássicos têm leitura garantida, quanto mais os amadores!
            Além disso, alguém já me perguntou: o que a Literatura pode fazer de forma prática para mudar o mundo que vive de misérias? Deus do céu! Não sei! Não sei, em absoluto, o que dizer, o que responder. Eu poderia criar hipóteses, reproduzir o que foi dito por muita gente, mas sequer tenho forças para isto. Eu, e digo isto com tristeza, não sei se resolvi ou resolverei com meu amor à Literatura a miséria do mundo ou de alguém que nele habita. Primeiro, que sou herói do romantismo da desilusão – de tanto pensar, não ajo. Segundo, que, dos miseráveis, sou o que mais precisa: minha mão estendida criou raízes. O que peço? Peço humildade, leveza e amor – amor numa perspectiva cristã, se me permite exibir minha tendência a tudo explicar, que é minha neurose de guerra por excelência.
            Felicidade, para mim, portanto, seria o mesmo que disse Clóvis de Barros Filho. Eu queria tanto ter acesso à Literatura hoje e sempre, queria tanto passar a eternidade com ela, que pensar no fim disso me dói. Talvez eu esteja angustiado mesmo porque ontem, enquanto esperava ser atendido em consultório médico, reli a primeira parte de Memórias do subsolo, de Dostoiévski, ou porque parei a arrumação dos livros quando toquei A paixão segundo G. H., de Clarice Lispector, e achei por bem reler uns trechos e, num fôlego só, terminei lendo quase o livro inteiro.
            Devo voltar à arrumação. Escrever não me organizará a vida, nem me dará a eternidade que me possibilitaria viver de, para e com meus livros. Mas, para concluir, a propósito da pergunta que me fizeram sobre o que a Literatura pode fazer contra as misérias do mundo, eu devo dizer que ela pode não fazer muito pelo caos mundial criado pelo homem, e sua tendência ao mal, mas ela fez muito por mim, ao que sou grato. Por pura gratidão, devo propagá-la. Não é assim que devemos fazer com quem nos prestou alguma solidariedade?


Émerson Cardoso
23/12/2017

domingo, 7 de janeiro de 2018

RESENHA CRÍTICA: NOTAS SOBRE "A CADEIRA DE BARBEIRO", DE ZÉLIA SALES


Na edição do Prêmio SESC de Contos de 2016, um dos contos me tocou profundamente. Seu enredo é constituído pelo cotidiano de uma menina do interior, e sua irmã, na árdua tarefa de "sobreviver" enquanto precisa pedir dinheiro ao pai para extrair seus dentes. O receio de pedir só não parece maior do que o medo da extração.
O leitor não deve se precipitar com esta sinopse aparentemente simples, porque se trata de um conto que trabalha, dentre outros aspectos, o universo do sertanejo que, por vezes, não conta senão com sua capacidade de resistir apesar das dores do corpo e, sobretudo, da alma. Família, infância, dores físicas e morais que a memória teima em resguardar surgem com intensidade nessa narrativa. O tom doloroso com que a autora a concebe, no entanto, é de uma singeleza que nos incita a vislumbrar nas personagens não só dor, mas lirismo e beleza – elas até conseguem ser felizes, embora esta felicidade seja “comprada a duras penas”. O que me causou espanto, nesse texto, foi a humanidade dessas personagens tão humildes, singelas e, por isto, grandiosas.
Quando um autor diz coisas intensas de modo simples, com linguagem precisa, objetiva e bem delineada, o leitor, invariavelmente, se deixa fisgar. Some-se a estas características, peculiares à linguagem, uma capacidade de perceber a poesia no que é aparentemente prosaico, e o autor não conseguirá ficar no anonimato jamais. É isto que acontece com Zélia Sales.
Eu tive acesso, após o deslumbramento que o conto Sobre dentes, mencionado acima, me causou, ao livro A cadeira de barbeiro – publicado em 2015, pela Editora Lua Azul. Neste livro, constam dez contos escritos com narrador autodiegético que percorre todas as narrativas como se contasse – confidenciasse – suas memórias da infância. Estas memórias trazem à tona acontecimentos familiares, cenários austeros, por vezes, porém sempre liricamente construídos, personagens cativantes que se deparam com: a morte, a loucura, a solidão, o medo, os traumas da infância, os cenários mais diversos que o olhar sempre atento da narradora nos apresenta. E este olhar é impulsionado por uma sensibilidade excessiva, no melhor sentido do termo.
Os contos de Zélia Sales são escritos com períodos curtos, advérbios e adjetivos têm presença apenas quando muito necessários, o uso do verbo no pretérito imperfeito – tempo verbal que se refere a um fato ocorrido no passado, mas que ainda não foi completamente terminado, e é usado com frequência em fábulas, contos de fadas e histórias de trancoso – que dá ideia de continuidade e ruptura de ações para causar expectativas e prender a atenção do espectador/leitor.
Além disso, ela explora recursos descritivos com substantivos que empregam tom cinematográfico à cena. O lirismo e a beleza das narrativas não são conseguidos no texto a custo de excessos verborrágicos. O que melhor caracteriza o texto dessa autora é sua capacidade de dizer com simplicidade, objetividade e acuidade linguística aquilo a que se propõe.
As narrativas são construídas a partir de um fio central: uma narradora-personagem retoma as memórias da infância e as esparge em suas histórias sempre enternecedoras. Ela é carismática, humana, instiga empatia, de modo que o leitor confia em seu olhar sobre as demais personagens. As sensações e reflexões a que cada história conduz o leitor vêm, certamente, do empenho dessa narradora que, até quando comete um pecado – como em O sétimo mandamento –, faz o leitor sofrer com ela, feito um cúmplice apiedado. Ela roubou, mas o fruto do roubo – “um caquinho de louça” – é tão insignificante, e seu gesto é dotado de tamanha ingenuidade, que condená-la parece impertinente. Ainda mais quando ela mesma superdimensiona a culpa e ouve em todos os lugares a fatídica frase proferida pela menina lesada: “Tu roubou meu caco”. Seria cômico, se não fosse trágico – e o leitor se apieda. Há, neste conto, uma frase inesquecível: “A dor da ovelha ferida dura mais que o prazer do lobo saciado”.  
Seguindo a sequência em que os textos são dispostos, deparamo-nos com o primeiro conto do livro cujo título evoca a narradora das demais narrativas: A filha do barbeiro. Conduzindo-nos pelas imagens que sua memória resguarda, a narradora descreve, nostálgica, a casa paterna em que ganha destaque o barbeiro, seu pai. Trata-se de uma descrição aguçada pelo saudosismo que torna o cenário – e seus objetos – um recanto de felicidade perdido a que a narradora não tem mais acesso senão por meio de lembranças. Tudo se desfez a partir da separação dos pais, o que motiva o patriarca a abrir o Salão Popular na cidade. Ela descreve, assim, a cadeira utilizada pelo pai em seu ofício:

Uma autêntica cadeira de ferro, robusta e presunçosa. Na pisadeira reforçada, o nome em alto relevo, que soletrei com dificuldade: ES-TI-LO. Ele se movia naquele ambiente com tanta naturalidade, com tanto pertencimento, falava com desenvoltura, movia o objeto do lugar procurando um melhor efeito, sorria... (SALES, 2015, p. 23)

            Esse conto, dividido em duas partes, mostra os efeitos causados pela separação – os filhos tendem a sofrer em demasia. Os parágrafos criados após a afirmação de que os pais discutiram, acontecimento que se segue à separação, são formados por períodos excessivamente curtos, que poderiam indicar a ideia de corte, redução do que se tem a narrar, ou mesmo dificuldade da narradora de retomar assunto tão indigesto, e não superado. A ausência paterna é representada pela imagem: “A enorme cadeira imóvel, triste, silenciosa no canto da sala”. Perde-se, com isto, o universo infantil que, de modo idealizado, representa: felicidade, segurança e equilíbrio.
Depois, a narradora reencontra o pai, em seu salão, e recebe dele uma maleta. Ele diz: “Guardei todo esse tempo pra lhe dar”. Ela, por sua vez, expressa suas sensações ante o gesto do pai: “Veio um nó no meu peito, subiu, me engasgou. Segurei-a nos braços tentando mostrar naturalidade, descansei meus olhos sobre ela”.
            Segue-se a esse conto, o texto A indesejada das gentes. Ao ler esta narrativa foi inevitável não lê-la em comparação com a letra da canção Samarica Parteira, de Luiz Gonzaga. A diferença entre elas é que na letra da canção temos um parto bem-sucedido, com direito a festejos e outras benesses, enquanto no conto de Zélia Sales temos um parto com cores sombrias e imagens pungentes.
A personagem Melha, diante da constatação da parteira Zefinha Barroso, de que seu filho estava atravessado, tem seu comovente, e fatídico, encontro com a morte. A narradora, que recorre a tons descritivos com a intenção de retardar o acontecimento trágico, e que, com isto, causa intensa expectativa no leitor, relata o acontecimento com vivacidade. O trecho a seguir, que descreve a chegada da parteira à casa de Melha, comprova nossa afirmação:

Já passava das nove quando os dois apearam no terreiro. A sogra, as cunhadas, as comadres, alvoroçadas, cuidavam de tudo, no impedimento da dona da casa, a essa hora já se vendo de dores. A parteira atravessou o alpendre, a sala, o corredor rumo à camarinha. Já conhecia o caminho. Num passinho miúdo, o queixinho gordo levantado, com sua maletinha debaixo do braço, cumprimentou as mulheres e adentrou. Conhecia todas elas, suas camarinhas, seus corpos. Já aparara mais de cinquenta meninos, sem perder nem um. (SALES, 2015, p. 30)

Além disso, a morte, que se apresentou à narradora quando ela “ainda não tinha seis anos”, é personificada, assim como no romance A menina que roubava livros (obra em que a morte é a narradora), e é descrita da seguinte forma: “Agora eu podia perceber seus longos cabelos cor de ferrugem descendo até a barra das saias, roçando o chão, confundindo-se com a poeira vermelha da estrada”. A impotência do ser humano ante a certeza da morte é o tema por excelência do texto, também certo fascínio que ela exerce, justamente por sua aura misteriosa, sobre as pessoas – neste caso, sobre a criança que trava seu primeiro contato, nada amistoso, com esta “indesejada”.
O Cemitério de Santa Cruz, mencionado no texto anterior, é retomado no conto: Mas havia um menino morto sobre a mesa, no centro da sala. Se no texto anterior a comoção nos vem como uma pancada, tendo em vista que depois de intensa luta a morte sai vitoriosa, e ainda exibe seu “troféu” – o corpo da mãe e do filho mortos –, neste, a comoção já nos é incitada desde o título. O menino nele evocado é o irmão da narradora. Ela, que não vivia com o pai, e sentia sua falta, ao revê-lo, sequer pôde demonstrar alegria: “Queria correr para os seus braços, subir em seus pés, dançar com ele agarrada à sua cintura, o rosto colado em sua barriga, como tantas vezes antes”.
No parágrafo seguinte, no entanto, como numa ênfase, a oração é iniciada por uma conjunção adversativa. Ela queria fazer festa pelo reencontro com o pai: “Mas havia um menino morto sobre a mesa, no centro da sala”. Ela está, portanto, impedida de realizar seu gesto de afeto – e a estrutura linguística empregada consegue formalizar isto com maestria.
Em seguida, somos informados sobre a dor da mãe que perdeu o filho e vislumbramos a cena do enterro. A narradora, que mais parece lamentar a partida do pai, do que a saída do pequeno caixão, em imagem das mais belas e angustiantes do livro, afirma: “Parecia que eu havia engolido um angu grosso e fervente que me queimava a garganta e comprimia o peito”.
Devo ressaltar o trabalho com a linguagem, sobretudo nos últimos parágrafos do texto que, do meu ponto de vista, estão mais para versos, no melhor sentido do termo, ricos em aliteração. Notemos que o barulho dos passos do pai parecem ser sugeridos pela recorrência da consoante oclusiva bilabial /p/, e pelas consoantes oclusivas linguodentais /t/ e /d/. Podemos remeter a recorrência de sons nasais /n/ e /m/, do dígrafo nh, e da vogal nasal /ã/, à melancolia e angústia presentes na cena descrita (SALES, 2015, p. 39):

Fiquei na porta vendo-o desaparecer no caminho íngreme e sinuoso.
A pedra grande, meu pai, a palmeira.
Meu pai.
                                                 Tudo tão longe.
                                                                            
Esta cena, devo ressaltar, é uma das mais belas e pungentes de quantas aparecem na obra em pauta. Mas quando pensamos que um texto se superou em lirismo e poesia, deparamo-nos com outros como Parques dos horrores. A narradora, com sua fixação pela figura paterna, cuja presença lhe parece acontecimento grandioso e desejado, apresenta, neste caso, pelo menos duas visões opositivas sobre ele.
Na primeira, a vemos julgando, ressentida, o pai por ele a levar para o parque, porém não permiti-la brincar nos carrinhos: “Mas que miserável unha de fome sem coragem de comprar um reles bilhetinho para a filha que aprendeu a ler antes do tempo, praticamente sozinha, que nunca recebeu reclamação da escola, que não lhe respondia...” Ela diz, ainda, neste sentido, que sentia: “Vontade de esmurrá-lo, chamá-lo de insensível, miserável”.
Na segunda, vemos indulgência e tentativa de compreensão por parte da narradora: “Pobre papai, talvez, por trás do sorriso infantil estivesse mentalizando um cálculo, contabilizando o que sobraria para o pão, para o leite e o feijão do dia seguinte”. Além disso, ela diz: “Mas todo dinheiro existente talvez repousasse no fundo da gaveta para saldar a conta da farmácia, o aluguel atrasado da casa, da barbearia”.
A frustração, a impotência e a pobreza são temas perceptivelmente presentes nesse conto que pode ser considerado um dos mais cinematográficos do livro. A descrição dos cenários e o ritmo empregado apontam para isto. Tudo é bem delineado, a linguagem consegue expor o que é exterior à protagonista com a mesma fluidez com que consegue entrar em sua psicologia.
A propósito, a menina é impossibilitada de brincar, mas o pai, que no início se diverte, parece subentender a angústia da filha, e ele, em sua impossibilidade, também parece se frustrar por não poder lhe proporcionar o que ela tanto queria, como apreendemos do trecho: “O sorriso tinha desaparecido de seu rosto, que me parecia cansado, já com duas covas fundas de cada lado, a testa vincada. A cabeça baixa, os ombros caídos, os olhos enterrados no chão, caminhava como se carregasse uma montanha nas costas”.
Com relação ao tema da frustração, desilusão e quebra de expectativas, devo dizer: o conto O Circo Íbis é emblemático. A magia do circo, o fascínio que ele exerce sobre as pessoas, com seus artistas exóticos e revestidos de beleza e encanto, surge, neste texto, com intensidade. A narradora, que pela primeira vez vai ao circo, e o vislumbra por um prisma da idealização, como toda criança, pensa em como seria maravilhoso fugir com o circo e, ao deparar-se com a realidade existente em seus bastidores, se desencanta.
Ela flagra o cotidiano da personagem Francimeire, a rumbeira que aviva o imaginário dos homens, e percebe a diferença entre a realidade e a imaginação. A mesma moça encantadora que dança no picadeiro, e na imaginação dos homens, é flagrada pela narradora estando sonolenta, tendo que cuidar do filho ainda bebê e com marcas de cansaço e envelhecimento:

A longa cabeleira negra estava lá, como no picadeiro, mas muito real... Real como aquele cheiro de cocô que impregnava o ambiente, as estrelas sem brilho da almofada murcha como os seios dela, onde o garotinho se agarrava. Fui recuando de costas, me afastando daquela cena, procurando o caminho de casa. (SALES, 2015, p. 81)

Intenso, com um tom realista, e humano, esse conto desfaz na criança – e no leitor, por que não? – a visão idealizada do circo. Nele, está presente uma discussão sobre alguém que se questiona: o que é real ou irreal naquilo que esteve sempre no plano da idealização? Até que ponto o que nos emociona, de fato, deve ser vivido como uma realidade inexorável e absoluta? A metáfora da carrapeta, que a mãe recomenda à narradora que não abra, e ela termina por abrir, para constatar, desiludida, não haver nada dentro, dá ao conto um tom de parábola que muito o enriquece.
Com o conto O grito é perceptível o aspecto fabular que remete às histórias de trancoso, ou de exemplo e assombração, recorrentes na cultura popular e propagadas pela oralidade. Ao ler esta história, é possível questionar: se tudo não passa de imaginação da narradora-personagem, por que a avó se mostra visivelmente intrigada e tentando disfarçar algum medo? A memória, sobretudo se pensarmos a memória da criança, tende a superdimensionar a realidade das coisas. O que aconteceu realmente pode, com o tempo, parecer irreal, e o contrário disto também é possível.
O teor de mistério, de incerteza, a recorrência à memória, e seus efeitos sobre a realidade, que são motes comuns à obra da escritora Lygia Fagundes Telles, parecem ter sido muito bem explorados no conto de Zélia Sales. Os pormenores do cenário e os diálogos precisos e rápidos são marcas estilísticas que a autora consegue articular sobriamente. Ela consegue ser singular em sua criação artística, no entanto podemos dizer que em vários aspectos ela lembra o que de melhor podemos encontrar na literatura nacional – sua proximidade com temas explorados por Lygia Fagundes Telles, por exemplo, sobretudo se pensarmos o conto O grito, não é gratuita. Também não seria exagero dizer que Zélia Sales tem intensidade narrativa, trabalho com a linguagem, temas e análises psicológicas que lembram um dos maiores contistas de que dispomos no país, e que também é um cearense: Moreira Campos.
Prosseguindo em nossa leitura, não é menos bem articulado o conto Batismo. Uma mulher condenada por assassinato, mal vista na cidade, e que é alvo do imaginário fantasioso das crianças, ao tomar água na casa da narradora, tem, finalmente, seu momento de redenção. Enquanto toma a água: “De olhos fechados, totalmente desarmada, a mulher se diluía naquela água pura e transparente”. Como se a água a fizesse renascer, aparentemente cai a máscara de assassina e dela emerge outra pessoa. Assim: “A criança antiga, magra, faminta surgiu esticando o braço esquálido, a mão esquálida, os dedos esquálidos pedindo complacência. Sua alminha de algodão-doce se banhava naquela sacramental água de pote”. A mulher vista como monstruosa, no final das contas, se humaniza.
Outra personagem feminina marcante é a personagem evocada no conto Dandola. A narrativa tem início com a apresentação da inquieta Maria Angélica, colega de escola da narradora, que, despois, confessa ser filha adotiva de um casal de velhos que moravam em casarão próximo à matriz. Ao mesmo tempo, somos apresentados a Dandola, personagem marcada pela loucura que a torna alvo de preconceito e inferiorização social. Maria Angélica, após descobrir que Dandola é sua mãe biológica, entra em estado depressivo e termina por também enlouquecer.
O último conto do livro é o que apresenta maior título: Dois anjos deslizando no assoalho encardido do Cine Teatro Royal ao som de um bolero rasgado. Mais uma personagem feminina é apresentada: a virago Tereza Zoin. A narradora vai em busca do pai, a pedido da mãe, e depara-se com ele a dançar com Tereza Zoin cujo comportamento em nada lembra o de uma mulher que estaria em acordo com o que uma sociedade preconceituosa e moralista atribuiria à mulher.
Além da força física que lembrava a de um homem, Tereza Zoin também jogava sinuca, bebia e fumava. A descrição da personagem nos mostra que seu perfil em vários aspectos destoa do que, de fato, se atribui socialmente à mulher. No momento em que a narradora a vê dançar com seu pai, no entanto, aponta para o fato de que: “O cabelo curto, preto, a camisa de colarinho, a calça masculina. Nada disso tirava dela, naquele momento, a leveza, a doçura, a alma feminina”.
Por fim, seja pela riqueza psicológica das personagens femininas recorrentes no livro, seja pela linguagem precisa, enxuta, bem delineada, os contos de A cadeira de barbeiro são um achado literário de grande valor. Poucos autores conseguiriam tanta pungência e criatividade em suas produções literárias. Zélia Sales consegue ir além da escolha de temas, alguns já muito explorados na literatura, pois ela consegue comover, instigar, desperta reflexões, consegue ser lírica, poética e, sobretudo, saber ser singular.  
Ler A cadeira de barbeiro foi um prazer indubitável – prazer dolorido, claro, porque ninguém deve se enganar sobre o conteúdo deste livro. Ele é pungente, não poupa suas personagens quando o objetivo é tirar delas o melhor em humanidade. Devo dizer que é gratificante saber que temos autoras com a capacidade artística de Zélia Sales neste país. Quero ler mil vezes esse livro – que li na íntegra uma quatro vezes –, porque sei que a sensibilidade dessa notável escritora amplia nossa humanidade quantas vezes a seu texto acorrermos. Como afirmei acima, a obra de Zélia Sales me tocou profundamente e eu espero, com urgência, que toque mais pessoas. Temos em sua obra o que há de melhor e mais lírico – não podemos deixar de conhecê-la em sua profundidade.

SALES, Zélia. A cadeira de barbeiro: contos. Fortaleza: Lua Azul Edições, 2015.
Émerson Cardoso
05/01/2018