quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

TRECHO DO CONTO: "A LEGENDA DE SÃO JULIÃO, O HOSPITALEIRO", DE GUSTAVE FLAUBERT


Uma mesinha, um banco, uma cama de folhas secas e três copos de barro, eis toda a sua mobília. Dois buracos nas paredes serviam de janelas. De um lado, estendiam-se a se perderem de vista planícies estéreis tendo à superfície pálidos laguinhos por toda parte; e o grande rio, à sua frente, rolava suas ondas esverdeadas. Na primavera, a terra úmida tinha um cheiro pútrido. Depois, um vento desordenado levantava turbilhões de poeira. Entrava em toda a parte, turvava a água, fendia as gengivas. Um pouco mais tarde, eram nuvens de mosquitos, cujo sussurro e as picadas não paravam dia e noite. Em seguida, sobrevinham geadas tão terríveis que davam às coisas a rigidez da pedra, e inspiravam um desejo delirante de comer carne.
Passarem-se meses sem que Julião visse alguém. Por vezes, ele fechava os olhos, tentando, pela memória, voltar à sua juventude; – e o pátio de um castelo aparecia com galgos no patamar, criados na sala de armas, e numa caramanchão de pâmpanos, um adolescente de cabelos louros entre um ancião coberto de peles e uma dama com grande toucado; de repente, os dois [cadáveres] estavam lá. Ele atirava-se de bruços na cama, e repetia chorando:
 – Ah! pobre pai! pobre mãe! pobre mãe!
E caía numa sonolência onde as visões fúnebres prosseguiam.

Uma noite, quando dormia, cuidou de ouvir alguém chamá-lo. Apurou o ouvido e distinguiu apenas o rugido das ondas.
Mas a mesma voz voltou:
– Julião!
A voz vinha da outra margem, o que lhe pareceu extraordinário, dada a largura do rio.
Chamaram uma terceira vez:
– Julião!
E esta voz aguda tinha a entonação de um sino de igreja.
Depois de acender a lanterna, saiu da cabana. Um tufão furioso enchia a noite. As trevas eram profundas, e aqui e ali rasgadas pela brancura das vagas que saltavam.
Após um minuto de hesitação, Julião soltou a amarra. A água, subitamente, ficou tranquila, o barco deslizou nela e tocou a outra margem, onde um homem esperava.
Estava envolto numa túnica em farrapos, o rosto semelhante a uma máscara de gesso e os olhos mais vermelhos do que brasas. Alumiando-o com a lanterna, Julião notou que uma lepra horrenda o cobria completamente; no entanto, havia em sua atitude uma majestade de rei.
Assim que ele entrou no barco, este afundou extraordinariamente, esmagado por seu peso; uma sacudidela o fez subir; e Julião começou a remar.
A cada remada, a ressaca das ondas levantava-o de proa. A água, mais negra do que piche, corria furiosa pelos dois lados da bordagem. Abria precipícios, fazia montanhas, e a chalupa saltava por cima, depois voltava a descer nas profundezas onde redemoinhava, sacudida pelo vento.
Julião debruçava o corpo, esticava os braços, e, retesando-se, fincando os pés, revirava-se com uma flexão do tronco, para ter mais força. O granizo fustigava suas mãos, a chuva escorria pelas suas costas, a violência do ar sufocava-o; ele parou. Então o barco foi á deriva. Mas, compreendendo que se tratava de uma coisa considerável, de uma ordem, à qual não devia desobedecer, retomou os remos; e o ranger [das borlas] cortava o clamor da tempestade.
A pequena lanterna consumia-se à sua frente. Pássaros esvoaçando, escondiam-na a intervalos. Mas continuava reparando nos olhos do leproso que se mantinha de pé, na popa, imóvel como uma coluna.
E isto durou muito tempo, muitíssimo tempo!
Quando chegaram à cabana, Julião fechou a porta; e ele viu-o sentar-se no banco. A espécie de sudário que o cobria tinha-lhe caído até os quadris; e suas costas, seu peito, seus braços magros desapareciam sob as placas de pústulas escamosas. Rugas enormes sulcavam sua fronte. Como um esqueleto, ele tinha um buraco no lugar do nariz; e seus lábios azulados soltavam um bafo espesso como um nevoeiro, e nauseabundo.
– Tenho fome! – disse ele.
Julião deu-lhe tudo o que possuía, um pedaço de toucinho e côdeas de pão escuro.
Depois que devorou tudo, a mesa, o prato e o cabo da faca apresentavam as mesmas manchas de que se viam em seu corpo.
Depois, ele disse:
– Tenho sede!
Julião foi buscar o seu cântaro; e, quando o pegou, ele exalou um aroma que dilatou seu coração e suas narinas. Era vinho; que achado! mas o leproso esticou o braço, e de uma tragada esvaziou todo o cântaro.
Em seguida, disse:
– Tenho frio!
Julião, com sua vela, ateou fogo a um molho de fetos [samambaias], no meio da cabana.
O leproso ali se aqueceu, e, agachado sobre os calcanhares, tremia com todos os seus membros, debilitava-se; seus olhos já não brilhavam, suas chagas escorriam, e, com uma voz quase apagada, murmurou:
– Tua cama!
Julião ajudou-o serenamente a se arrastar até lá, e até estendeu sobre ele, a tela do seu barco.
O leproso gemia. Os cantos de sua boca descobriam seus dentes, um estertor acelerado sacudia-lhe o peito, e o ventre, em cada uma das aspirações, escavava-se até as vértebras.
Depois cerrou as pálpebras.
– É como se tivesse gelo nos ossos! Fica junto de mim!
E Julião, levantando a tela, deitou-se nas folhas secas, junto dele, lado a lado.
O leproso virou a cabeça.
– Tira tua roupa, para eu ter o calor do teu corpo!
Julião despiu-se; depois, nu como no dia do seu nascimento, deitou-se outra vez na cama; e sentia contra a sua coxa a pele do leproso, mais fria que uma serpente e áspera como uma lima.
Julião procurava animá-lo; e o outro respondia, ofegante:
– Ah! eu vou morrer!... Aproxima-te, aquece-me! Não com as mãos! não! com todo o seu corpo.
Julião estendeu-se completamente em cima dele, boca com boca, peito com peito.
Então o leproso estreitou-o; e seus olhos, de repente, tiveram uma claridade de estrelas; seus cabelos alongaram-se como raios de sol; o bafo de suas narinas tinha a suavidade das rosas; uma nuvem de incenso elevou-se da lareira, as ondas cantavam.
No entanto uma abundância de delícias, uma alegria sobre-humana descia como uma inundação na alma de Julião desfalecido; e aquele cujo braço o continuava apertando, crescia, crescia, tocando com a cabeça e os pés, as duas paredes da cabana. O telhado voou, o firmamento se desenrolava; – e Julião subiu nos espaços azuis, face a face com Nosso Senhor Jesus, que o levava para o céu.

E eis a história de São Julião, o Hospitaleiro, tal como mais ou menos a encontramos nos vitrais de uma igreja de minha terra.

(FLAUBERT, 1974, p. 99 – 102)

REFERÊNCIAS:

FLAUBERT, Gustave. Trois contes. Paris: Louis Conard, Librarie-Éditeur, 1910.

__________. Três contos. Tradução de Luís Lima. Rio de Janeiro: Editora Três, 1974.


segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

MEU "APÓLOGO DA MESA"


Era um dia de festa. As pessoas corriam de um lado para o outro arrumando os últimos detalhes da grandiosa recepção. Em todos os cômodos da mansão havia móveis que, sob vigilância da anfitriã, eram limpos cuidadosamente. Todos foram polidos, enfeitados, mudados de lugar.
Houve, porém, um problema impossível de passar sem dar nas vistas. Enquanto todos os móveis riam no auge da felicidade pela nova roupagem que apresentavam, a mesa, mais reflexiva que o natural, no centro da sala, com olhares de estranhamento e aspecto descontente, permanecia intocada.
Todos os móveis receberam nova coloração, espargiam perfume, alguns receberam toalhas e enfeites novos. Apenas ela, a mesa, permanecia com seu aspecto de sempre: a mesma cor desbotada, desperfumada, sem conserto. O riso e a felicidade dos outros passaram, aos poucos, a incomodá-la. Desse modo, no auge da sensação de inferioridade, no auge da solidão, sentindo-se uma “qualquer”, começou a reclamar-se da vida triste e lamentável a que aqueles seres a submetiam. 
Quem aqueles móveis felizes pensavam que eram? E onde estava a dona da casa que não valorizava a sua presença inestimável? Como poderia ficar calada diante de situação tão adversa a seu ego? Ela tinha direito de reclamar... Ela há anos servia à família que ali residia. Era esse o pagamento recebido por tantos anos de benevolência e solicitude? Imundos todos! Mereciam alimentar-se no chão como animais, e não em sua reconfortante planície. Queria que todos morressem, que um incêndio destruísse a felicidade daqueles móveis exibidos, que uma enchente destruísse os risos daqueles seres frívolos. O ódio invadiu-a e, se ela pudesse, faria de tudo para desfazer aquela alegria insuportável e sem graça. 
Foi neste instante que gritou contra todos os móveis, e seus enfeites, as mais absurdas injúrias. Expôs o defeitos, as fragilidades, os insucessos dos companheiros com a intenção de fazê-los se sentirem por baixo, assim como ela se sentia. “Se eu não mereço ser bem tratada, ninguém mais merece!”, pensou. Disse tudo o que pensava e, sem se importar com a tristeza que poderia causar aos seus, rebaixou-os com os piores xingamentos. 
Não se deu por vencida e passou a lamentar-se das vezes em que foi bondosa. Atirou sobre os que estavam ao seu redor o quanto lhes havia ajudado. Queria fazê-los perceber, com palavras contundentes, o quanto era vítima de injustiça naquele momento. Ódio! Raiva! Rancor! Quanto teria de esperar para morrer e não ver mais tanta maldade e ingratidão?
Depois que cansou de, desequilibrada, criticar a todos, atirando sua raiva contra os mais próximos, aconteceu algo que fez com que ela se calasse. De repente, com muita delicadeza, alguém a limpou, a lustrou e colocou sobre ela uma toalha de rendas. Prepararam-lhe o melhor enfeite. Fizeram dela o centro da festa e todos os convidados, ao longo da recepção, transformaram-na num ponto de referência atrativíssimo – afinal de contas sobre ela estavam as mais perfeitas guloseimas. A mesa, que antes falava com leviandade, ódio, amargor, que havia magoado todos os demais companheiros com seu azedume e despeito, agora estava calada, parecia constrangida pelo mal-estar que havia proporcionado. 
A festa, no entanto, havia acabado para os demais móveis e enfeites da casa. E ela finalmente se deu conta de que fora uma estúpida, invejosa, grosseira e, pedindo desculpas, baixou a vista. Era tarde. Nunca mais conseguiu reconstruir as amizades que, com palavras ferinas e desnecessárias, destruiu.
Um velho relógio, muito sábio, a olhou condescendentemente e disse: “A paciência é uma grande virtude, porém é um dom tão raro! Estar com raiva é possível, mas ninguém tem o direito de atirar contra os outros as suas próprias frustrações”.

REFERÊNCIAS:

CARDOSO, Cícero Émerson do Nascimento. Apólogo da mesa. In: Revista de Literatura e Artes Boca Escancarada, n. 5, p. 21 – 22, mai. / ago. de 2014.

RESUMO: "POR QUE (NÃO) ENSINAR GRAMÁTICA NA ESCOLA?" (SÍRIO POSSENTI)


CONSIDERAÇÕES INICIAIS:

Este livro está dividido em duas partes: 1) na primeira parte, o autor elabora dez teses sobre o ensino de gramática e 2) na segunda, estão expostos conceitos de gramática e reflexões que apontam para seu ensino no espaço escolar.

OBJETIVOS DO AUTOR:


  • *   Discorrer sobre um conjunto de princípios destinado a provocar reflexão sobre o ensino de gramática da língua portuguesa;


  • *     Propor teses sobre o ensino da língua materna sem, com isto, cair no plano das experiências que transformam, por vezes, o aluno em objeto de experimentos;


  • *     Refletir sobre a concepção de língua e de ensino de língua na escola.

PRIMEIRA PARTE

“Em que consistiria o domínio do português padrão? Do ponto de vista da escola, trata-se em especial (embora não só) da aquisição de determinado grau de domínio da escrita e da leitura”. (p. 19)

“Uma das medidas para que esse grau de utilização efetiva da língua escrita possa ser atingido é escrever e ler constantemente, inclusive nas próprias aulas de português”. (p. 20)

TESES
TESE 01

O objetivo da escola é ensinar o português padrão, ou, mais exatamente, o de criar condições para que ele seja aprendido.

TESE 02

Damos aula de que a quem? Para que um projeto de ensino de língua seja bem sucedido, uma condição deve necessariamente ser preenchida, e com urgência que haja uma concepção clara do que seja uma língua e do que seja uma criança (na verdade, um ser humano, de maneira geral).

TESE 03

Não há línguas fáceis ou difíceis. Todas as línguas são estruturas de igual complexidade. Não existem línguas simples e línguas complexas, primitivas e desenvolvidas. O que há são línguas diferentes.

TESE 04

Todos os que falam sabem falar. Saber falar uma língua significa saber uma gramática. Saber gramática não significa saber de cor algumas regras que se aprendem na escola, ou saber fazer análises morfológicas e sintáticas. Saber uma gramática é saber dizer e saber entender frases.

TESE 05

Não existem línguas uniformes. Neste sentido: a) todas as línguas variam, isto é, não existe sociedade ou comunidade na qual todos falem da mesma forma; b) a variedade linguística é o reflexo da variedade social e, como em todas as sociedades existe alguma diferença de status ou de papel entre indivíduo ou grupos, estas diferenças se refletem na língua c) os principais fatores de diferenciação são: geográficos, de classe, de idade, de sexo, de etnia, de profissão, etc.

TESE 06

Não existem línguas imutáveis. Nenhuma língua permanece uniforme. 

TESE 07

Falamos mais corretamente do que pensamos. É relativamente pequena a diferença entre o que um aluno (ou outro cidadão qualquer) já sabe de sua língua e o que lhe falta saber para dominar a língua padrão.

TESE 08

Língua não se ensina, aprende-se. Não se sabe muito bem o que se passa na mente humana, o fato observável é que todos falam, e muito, e bem, a partir de três anos de idade. Não se aprende por exercícios, mas por práticas significativas. 

TESE 09

Sabemos o que os alunos ainda não sabem? Os programas anuais poderiam basear-se em levantamento do conhecimento prático de leitura e escrita que os alunos já atingiram e, por comparação com o projeto da escola, uma avaliação do que ainda lhes falta aprender. 

TESE 10

Ensinar língua ou gramática? O domínio efetivo e ativo de uma língua dispensa o domínio de uma metalinguagem técnica. É possível aprender uma língua sem conhecer as regras com as quais ela é analisada. 

SEGUNDA PARTE

ENSINO DE GRAMÁTICA:

Estudo de regras mais ou menos explícitas de construção de estruturas (palavras ou frases). Um exemplo dessa primeira atividade é o estudo das regras ortográficas, regras de concordância e de regência, regras de colocação dos pronomes oblíquos etc.

Análise mais ou menos explícita de determinadas construções. Exemplos são os critérios para a distinção entre vogais e consoantes, critérios de descoberta das partes da palavra (radical, tema, afixos), análise sintática da oração e do período, especialmente se isso se faz com a utilização de metalinguagem.

CONCEITO DE GRAMÁTICA:

A palavra gramática significa “conjunto de regras”:

1) conjunto de regras que devem ser seguidas (normativa ou prescritiva);
2) conjunto de regras que são seguidas (descritiva);
3) conjunto de regras que o falante da língua domina (internalizada).

CONCEPÇÃO DE LÍNGUA:

A cada uma das definições de gramática apresentadas acima corresponde uma concepção diferente e compatível de língua:

1) Para a normativa, a língua corresponde às formas de expressão observadas produzidas por essas pessoas cultas, de prestígio.
2) Para a descritiva, encara a língua falada ou escrita como sendo um dado variável (não uniforme), e seu esforço é o de encontrar as regularidades que condicionam essa variação.
3) Para a internalizada, a língua deve ser compreendida como conhecimento interiorizado.

REFERÊNCIAS:

POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas, SP: Mercado de Letras: Associação de Leitura do Brasil, 1996.




CRÔNICA: O QUE É SER MAU-CARÁTER?


O que uma pessoa quer exprimir quando diz que alguém tem caráter? Creio que se remete à índole, à integridade moral, à retidão, à firmeza e à honradez com que a pessoa age diante das mais diversas situações cotidianas.

Neste sentido, o que seria uma pessoa sem caráter, ou melhor, mau-caráter? Fiz pesquisa e constatei que a lista de sinônimos é longa, exige síntese. O mau-caráter é, portanto, tratante, covarde, mentiroso, desleixado, troçador, infame, desonroso, trapaceador, vigarista, traiçoeiro, fraudulento, velhaco, desleal, falso, utilitarista, improbo, interesseiro, duvidoso, impudico, cínico, sem-vergonha, descarado, cafajeste, calhorda, biltre, mal-educado, desrespeitoso, rude, grosseiro, provocador, violento, estourado e, o que é pior, do meu ponto de vista, vulgar.

Eu não quero ser assim, Deus, não quero. Eu estou ciente de que o ser humano, falível que é, pode trazer em si alguns ou todos esses adjetivos. Mas eu não quero, não aceito, não posso fiar-me na ideia de que também poderia agir assim apenas porque, irremediavelmente, sou humano. Ademais, a história mostra que muitos humanos conseguiram ter caráter irreprochável. Ninguém é perfeito, é certo, por isto é possível que um dia ou outro o espírito desande e aja de acordo com alguma das condutas que, em seu conjunto, formam o mau-caratismo. A imaturidade pode nos levar a isto, mas a imaturidade precisa passar. A proposito, triste do ser humano que não sente a necessidade de mudar, de repensar a conduta, de vislumbrar possibilidades de crescimento.

Dentre os termos que enumerei acima, parece-me que o pior do mau-caráter é ser desleal e, neste caso, acrescento o fato de que todo desleal é ingrato. Ingratidão é um aspecto terrível na conduta de alguém, devo dizer. Além disso, deslealdade, que vem certamente da ingratidão, torna o indivíduo falso porque, para conseguir o que queria de alguém, o desleal deve ser perito em falsidade – e a isto se acresce novo aspecto: visão utilitária das coisas e pessoas. O indivíduo deseja alcançar algo, cria traiçoeiramente uma estratégia, utiliza a falsidade para engabelar o outro e age cínica e sorrateiramente destruindo, sem qualquer reflexão sobre respeito, a vida de alguém. Uma pessoa mau-caráter, ao que parece, é um Atlas – o mundo pesa-lhe nas costas porque ela precisa articular muitas ferramentas para conseguir o que quer.  

Eu não quero ser assim, meu Deus, não quero. E, pensando nisso, dentre os traços que comprometem minha índole, o que é triste demais, a covardia é o mais gritante. Tanto a dizer e realizar, mas o excesso de prudência – não seria melhor dizer medo? – me desencoraja. Tem a ver com a minha infância? Precisei silenciar demais, fugir do enfrentamento, aceitar calado a violência da vida. Eu tinha mãos erguidas pedindo auxílio, porém, como eu não gritava a plenos pulmões, por não saber gritar, ninguém via o vazio nelas renascido. Aprendi a escrever, no entanto, e isto foi um alívio.

Grande alívio este: quem escreve quer ser lido. Os clássicos não são lidos, que espaço terão os amadores? A insegurança também constituiria a índole mau-caráter? Tenho inseguranças demais, devo dizer. Tendência à mágoa também? E orgulho? E omitir, algumas vezes, coisas que desagradariam ao outro? Forçar indiferença pode ser mau-caratismo? E não querer ver para sempre-sem-fim a face de quem se mostrou mau-caráter? Raiva represada, raiva exibida, raiva em tom de voz, raiva no desprezo dispendido, raiva de moer com o olhar, raiva sem precedentes – isto também indica traços de alguém sem caráter?   

Quero tirar o mundo das costas, porque ter caráter pode conduzir o indivíduo à leveza – é a isto que devoto meu pensamento. Preciso de leveza e paz – que ambição hercúlea! Eu posso ter sido falho mil vezes, ou melhor, eu falho milhões de vezes, no entanto estou aqui confessando meus pecados mil vezes mil para, a partir disto, prosseguir e não tornar a pecar. Deus precisa estar comigo, porque, diante da vida e sua imprevisibilidade, a carne tende a ser fraca e, disto estou certo, a gente busca maturidade, caráter digno, gestos fraternos, mas as adversidades e a preservação da vida podem pesar na hora de darmos respostas ao mundo. Eu, assim como Sophie[1], também preciso fazer minhas escolhas – ah, e que eu encontre em mim a leveza que tanto busco.

Émerson Cardoso
10/02/18




[1] Sophie’s choice (1982) é um filme norte-americano de drama dirigido por Alan J. Pakula, que rendeu a Meryl Streep seu primeiro Óscar de Melhor Atriz em 1983.