A
propósito do novo livro de Paulo Soares, A
céu aberto (2015), devo dizer, para fins de apresentação, que o poeta se
manteve na linha da denúncia social presente em seu primeiro livro: Um tiro no coração da poesia.
Percebemos isto em poemas, por
exemplo, como Onu, que é inteligente e
faz isto por meio de trocadilhos agressivos que são pertinentes, críticos e
corajosos.
Onu
Anos
e
Anos
de ONU.
Anos
e
Anos
de ÔNUS.
Ônus
e
ONUs
No Ânus.
Repleto de metalinguagem, esse livro dispõe de
poemas, em sua maioria, curtos, carregados de trocadilhos, anáforas, aliterações
e metáforas. Embora o teor político seja sua temática por excelência, outros
temas surgem e dão a tônica versátil da obra. O amor, numa perspectiva do
erotismo, por exemplo, aparece com recorrência. Observamos, desse modo, de modo
panorâmico, os poemas em que Paulo Soares discorre sobre o amor.
Assim, apesar de sentir que, em se
tratando da temática amorosa, o autor poderia, em alguns textos, ser mais original
na criação de algumas imagens, podemos encontrar poemas como Nós, em que o trocadilho entre o pronome
pessoal reto, na terceira pessoa do plural (NÓS), confunde-se com o substantivo
pluralizado (NÓS), e evidencia criatividade em seu conteúdo e sua forma.
Nós
Não
nos
desatAMOs.
O
AMOr
dá
corda.
E
nós
somos
nós.
Nos
apertAMOs.
O eu lírico do poema afirma que está, conotativamente falando, atado ao ser a quem devota seu amor. Na primeira
estrofe ele afirma: “Não / nos desatAMOs”. O amor é metaforizado como algo que,
de certo modo, aprisiona, no entanto o eu lírico, pelo que apreendemos do verbo
amar, que aparece no presente do
indicativo, e é transcrito em maiúscula dentro de outro verbo, confessa que ama
sem demonstrações de angústia ou sofrimento. O amor aprisiona ou, como ele
afirma, “dá corda”, mas não indica, com isto, que o eu lírico deseja
libertar-se dessa suposta prisão. Ele, na sequência, enfatiza: “E / nós somos /
nós”. O Nós a que ele alude nos possibilita pensar o vocábulo como substantivo
ou pronome sem, contudo, isto prejudicar o sentido que o poema quer alcançar,
antes o torna mais amplo em sua polissemia.
O verbo AMO, imbricado em outros
verbos, surge três vezes como a confirmar o discurso passional do eu lírico. Se
o amor aprisiona suas “vítimas” em suas cordas, ao mesmo tempo em que dá “corda”,
e ele e o ser amado tornam-se “nós”, não há necessidade de fuga da parte, pelo
menos, do eu lírico. Ele, em verdade, resigna-se e afirma, aprisionado ao ser
de sua devoção: “Nos apertAMOs”. Ressaltemos, ainda, que o vocábulo “nó”,
amarra que se dá na ponta de uma corda, que aparece no plural, ou “nós”,
pronome indicativo de junção, conexão, acoplamento entre indivíduos, se
confundem e intensificam o efeito poético do texto.
Outro poema, nesta linha, que é
notável, sobretudo porque tem um teor erótico bem articulado com o teor
metalinguístico recorrente nos textos do autor, dá-se pela polissemia assumida
no texto pelo vocábulo “oral” que, neste caso, traz pelo menos duas acepções.
Oral
Antes
Do
coito,
Do
gozo
Da
consonante com a vogal.
Verdade
seja dita!
O
prazer da transa escrita
Passa
primeiro pela linguagem oral.
O vocábulo “oral”, numa primeira acepção, remete-se
ao sexo oral que, como o eu lírico expõe, é uma preliminar da cópula, para ele,
indispensável: “Antes / Do coito [...], / O prazer da transa escrita / Passa
primeiro pela linguagem oral”. Numa segunda acepção, e nisto está o valor
estético do poema, “oral” remete-se a uma das propriedades da linguagem. Antes da
escrita, em seu sentido pragmático, há a oralidade, ou seja, a língua em sua
manifestação mais direta e, para isto, não se faz necessária a assimilação da
língua em sua forma escrita.
Assim, antes da escrita, segundo o eu lírico, é a
oralidade que representa a manifestação expressiva da língua. Do mesmo modo,
agora numa instância erótica, para efetivação do coito – os genitais masculino
e feminino estão metaforizados, respectivamente, no vocábulo “consoante” e “vogal”,
ou vice-versa –, ele confessa: o sexo oral representa ato indispensável para
efetivação do “prazer da transa”.
O amor também
aparece com uma visão realista mais que pertinente no poema Diagnóstico. O eu poético expõe um casal
representado pelos pronomes Ela / Ele. Para ela, o amor “era uma FICÇÃO” – algo
fantasioso, elaborado imaginariamente. Para ele, o amor era “uma FACÇÃO” – grupo
que detém indivíduos que lutam por uma mesma causa, ou grupos antagônicos que
disputam uma supremacia política. O diagnóstico evocado no título ocorre quando
o casal se separa e é dito pelo médico que o amor não era, senão, “uma INFECÇÃO
/ intestinal”.
O amor tratado com o lirismo presente nos poemas
anteriores não está presente neste último. Este propõe uma reflexão sobre o
quanto o amor, que surge no eufemismo “infecção intestinal” – que substitui
palavras do campo semântico das fezes –, pode ser doentio e sórdido a quem o
vivencia sem considerá-lo em suas contradições e possibilidades de conflito. O amor,
desse modo, é tratado primorosamente como algo não idealizado.
No poema Cavalo
de troia, há mais criatividade pela discussão de categorias que aproximam o
eu lírico do universo tecnológico, e pelos trocadilhos utilizados, do que pela originalidade
temática propriamente dita. O amor, neste poema, é apresentado como algo que
está no fim. Um “hacker” surgiu, na história de amor vivida pelo eu lírico e
sua amada, e o hacker foi responsável pela destruição dessa história de amor. Assim,
ele lamenta: “Um hacker / Malicioso / Invadiu nossa conexão / Deletou o nosso
tesão” e, também, “Jogou nosso amor na lixeira”.
Os poemas Ela
é fada!, Senha, Água viva, A flor mais bela, Poema leve e Amor e caligrafias, apesar de
apresentarem aliterações, metáforas ou tons metalinguísticos, não trazem, como
os anteriores, a temática do amor com um trabalho mais apurado, muito menos
apresentam trocadilhos bem delineados e efeitos impactantes em seus versos de
desfecho. No caso de Arco-íris e Cantiga moderna, há a promessa inicial
de um texto cujo desfecho poderá ter alguma intensidade, no entanto o primeiro
conclui com uma imagem explícita demais, e não poética, como era prenunciado; e
o segundo, um tanto moralista, perde o lirismo porque tenta fazer crítica à
falta de lirismo do “trovador” moderno, mas incorre no mesmo equívoco que
denuncia.
Estes problemas não ocorrem, por exemplo, em Todo teu. Este poema, cujo título já
indica uma tentativa hiperbólica de entrega afetiva, discorre sobre o amor numa
perspectiva da passionalidade. De tal modo o eu lírico se entrega ao ser a quem
devota seu amor, que o pronome possessivo, repetido à exaustão, evidencia que
ele parece perder a identidade. A repetição do pronome pessoal reto na primeira
pessoa do singular (EU), que parece ter mais a ver com a tentativa de
aproximação sonora entre Eu e Teu, que causa a aliteração dos versos, indica no
mínimo um discurso paradoxal. O Eu está tão presente no poema que questionamos
se realmente o eu lírico se entregou de todo a sua amada, tendo em vista que ao
dizer que ele é todo, inteiramente, completamente dela, não seria necessário
apresentar as partes do seu todo para enfatizar seu discurso, como ele faz de
modo recorrente. Poema de um eu lírico autoafirmativo, deparamo-nos com anáforas,
aliterações, assonâncias e rimas. É um poema com ritmo, com tom hiperbólico e que
é rico em sonoridade.
Amor platônico
pode ser inserido no rol dos poemas bem articulados do livro. Sobretudo no
desfecho, que tem efeito intenso, o poeta ganha em expressividade. Os trocadilhos,
a preocupação formal e o jogo de palavras tornam o poema um dos mais criativos
da coletânea.
Mas Kama Sutra,
mais uma vez pela metalinguagem, e pelo trocadilho sexo / escrita, também pela
simplicidade do texto, que não deixa de ter um efeito intenso na conclusão bem
delineada, é um poema notável.
Kama Sutra
Invento
Posições verbais
Todo santo dia.
Escrever
É fazer Kama Sutra
Com a poesia.
A
céu aberto discorre, também, sobre política, como foi apontado no início
deste texto. Quem decidir ler a obra de Paulo Soares se deparará, desde seu
livro anterior, e sua produção literária na época dos Cordelistas Mauditos, com poemas de grande valor estético,
sobretudo numa perspectiva política, que me parece ser o tema que o autor,
sempre ácido, bem como pertinente, melhor explora.
Um tiro no
coração da poesia e A
céu aberto apresentam um autor que ainda busca delinear seu estilo, mas do
ponto de vista conteudístico ambos são fiéis ao que parece ser o principal mote
do autor: observar com criticidade o mundo a sua volta. Devemos aguardar os
novos trabalhos do autor, para certificarmo-nos de que seu estilo finalmente
será consolidado. A leitura do novo livro de Paulo Soares, no entanto,
mostra-nos que podemos esperar, em meio a poemas que podem não ser dos mais
expressivos, e que apresentam alguns problemas de pontuações, grandes textos
poéticos que certamente o tornam um autor notável por não ter medo de expor seu
trabalho na busca de torná-lo conhecido, e que parece não temer ter que melhorá-lo.
Paulo Soares precisa criar mais poemas como este, ambíguo,
incisivo e com efeito intenso no desfecho, com o qual encerro minhas
observações sobre A céu aberto:
Na
ponta da língua
Se
na hora do poema
A
inspiração me deixar brochar
E
ficar à míngua.
Não
ria!
Meu
tesão pela poesia
Tem
a resposta na ponta da língua.
SOARES,
Paulo. A céu aberto. Fortaleza: Premius,
2015.
Émerson Cardoso
Junho de 2016