domingo, 14 de abril de 2013

ARTIGO ACADÊMICO

O artigo acadêmico consiste em um gênero textual que permite a socialização do conhecimento. Ele possibilita a apresentação dos resultados das investigações ou estudos a respeito de uma questão teórica e/ou prática. Segundo Köche¹ (2001), é um meio rápido e sucinto de divulgar e tornar conhecidos, através de sua publicação em periódicos especializados, a dúvida investigada, o referencial teórico utilizado (as teorias que serviram de base para orientar a pesquisa), a metodologia empregada, os resultados alcançados e as principais dificuldades encontradas no processo de investigação ou na análise de uma questão. [...] Do artigo, exigem-se certas qualidades, como linguagem concisa, correta e clara; coerência na exposição de ideias e na argumentação; coesão entre os elementos e parágrafos e fidelidade às fontes.(PAVANI, 2009, p. 127)

ESSA DEFINIÇÃO DE CERTA FORMA SIMPLÓRIA VOCÊ ENCONTRARÁ NA SEGUINTE OBRA:

KÖCHE, Vanilda Salton; BOFF, Maria Benetti; PAVANI, Cinara Ferreira. Prática textual: atividades de leitura e escrita. 6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

CONFIRA TAMBÉM:

¹ KÖCHE, José Carlos. Fundamentos de metodologia científica. 20. ed. Petrópolis: Vozes, 2001.

AS AUTORAS DA OBRA "PRÁTICA TEXTUAL: ATIVIDADES DE LEITURA E ESCRITA" APRESENTAM TAMBÉM, DE MODO BEM RESUMIDO, UMA SEQUÊNCIA QUE DARÁ UMA NOÇÃO DE COMO VOCÊ PODE REALIZAR UM ARTIGO ACADÊMICO:

1 - IDENTIFICAÇÃO:

TÍTULO DO TRABALHO: DEVE SER CLARO, SUCINTO E APRESENTAR O ESTUDO DE MODO OBJETIVO;

AUTOR: DEVE SER LOCALIZADO APÓS O TÍTULO E À DIREITA DA PÁGINA;

QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL E/OU ACADÊMICA DO AUTOR: APARECE EM FORMA DE NOTA DE RODAPÉ O QUE O AUTOR FAZ, O LOCAL DE TRABALHO E SUA TITULAÇÃO.

2 - RESUMO (OU ABSTRACT) E PALAVRAS-CHAVE:

RESUMO: SÍNTESE DO TRABALHO EM POUCAS LINHAS;

PALAVRAS-CHAVE: EXPRESSÕES QUE CONCENTRAM OS TEMAS ABORDADOS PELO AUTOR (GERALMENTE SÃO TRÊS PALAVRAS SEPARADAS POR PONTO E VÍRGULA).

3 - CORPO DO ARTIGO:

SITUAÇÃO-PROBLEMA: CORRESPONDE À INTRODUÇÃO E ORIENTA O LEITOR ACERCA DO QUE SERÁ INVESTIGADO NO TRABALHO (APRESENTAÇÃO / OBJETIVOS / JUSTIFICATIVA / ORIENTAÇÕES METODOLÓGICAS);

DISCUSSÃO: EXPÕE AS INFORMAÇÕES QUE FORAM UTILIZADAS PARA ENTENDER OU ESCLARECER O PROBLEMA. O AUTOR DEVE VALER-SE DE TODAS AS FORMAS POSSÍVEIS DE ARGUMENTAÇÃO. A REFERÊNCIA A OBRAS E AUTORES CONSULTADOS, NESSE SENTIDO, É DE GRANDE IMPORTÂNCIA. A DISCUSSÃO CORRESPONDE AO DESENVOLVIMENTO DO ARTIGO, E PODE SER DIVIDIDA EM QUANTOS ÍTENS FOREM NECESSÁRIOS;

SOLUÇÃO-AVALIAÇÃO: APRESENTA OS COMENTÁRIOS FINAIS, APONTANDO AS RESPOSTAS AO PROBLEMA INVESTIGADO, AS CONCLUSÕES ALCANÇADAS, OS LIMITES DO ESTUDO DESENVOLVIDO. NO ARTIGO DE PESQUISA DEVEM CONSTAR O MÉTODO EMPREGADO E OS RESULTADOS OBTIDOS.

4 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

APRESENTAÇÃO DAS OBRAS LIDAS PARA REALIZAÇÃO DO ARTIGO. DEVEM SEGUIR NORMAS DA ABNT.

5 - ANEXOS OU APÊNDICES:
QUANDO NECESSÁRIO, ANEXAM-SE QUESTIONÁRIOS, IMAGENS OU TABELAS...

PARA A PRODUÇÃO DO ARTIGO, OBSERVAM-SE AS SEGUINTES ETAPAS:

  • SELEÇÃO DA BIBLIOGRAFIA SOBRE O ASSUNTO;
  • DELIMITAÇÃO DO PROBLEMA;
  • ELABORAÇÃO DA ABORDAGEM PARA ANÁLISE DO ASSUNTO;
  • ELABORAÇÃO DO ESQUEMA DO TRABALHO;
  • ELABORAÇÃO DO RESUMO DOS TÓPICOS E DA ANÁLISE PESSOAL;
  • ORGANIZAÇÃO DAS ANOTAÇÕES NA ORDEM APRESENTADA NO ESQUEMA;
  • ESCOLHA DO TEMPO VERBAL MAIS INDICADO PARA SER USADO NO ARTIGO (O PRESENTE É O MAIS ADEQUADO);
  • ESCRITA DA PRIMEIRA VERSÃO DO TRABALHO;
  • REVISÃO DA ESCRITA;
  • SUBMISSÃO DO ARTIGO AO ORIENTADOR OU A OUTRA PESSOA PARA AVALIAR A PRODUÇÃO;
  • ESCRITA DA VERSÃO FINAL.                                                                                                                                                                                                                                                              
AGORA, PARA ILUSTRAR, VOU POSTAR AQUI O ARTIGO QUE APRESENTEI NO II COLÓQUIO NACIONAL DE PESQUISA EM CULTURA POPULAR REALIZADO PELO NÚCLEO DE PESQUISA EM ESTUDOS LITERÁRIOS E LINGUÍSTICOS DA UNIVERSIDADE REGIONAL DO CARIRI - NETLLI. A APRESENTAÇÃO DESSE ARTIGO ACONTECEU NO DIA 09 DE ABRIL DE 2013. ESSE TRABALHO FOI PUBLICADO NA OBRA QUE CITAREI EM SEGUIDA:

CARDOSO, Cícero Émerson do Nascimento. Arquétipos do herói no imaginário popular: uma leitura de "Lampião", de Rachel de Queiroz. In: MARTINS, Edson Soares. Estéticas da oralidade: cantos, danças, fé e tesouros do povo. Crato: Edson Soares Martins, 2013. p. 37-52.





ARQUÉTIPOS DO HERÓI NO IMAGINÁRIO POPULAR: UMA LEITURA DE “LAMPIÃO”, DE RACHEL DE QUEIROZ


CÍCERO ÉMERSON DO NASCIMENTO CARDOSO[1]


RESUMO:

A partir da leitura da peça teatral “Lampião”, de Rachel de Queiroz, realizaremos uma discussão sobre como se consolidam, no imaginário popular, os arquétipos da figura do herói. Para nosso recorte, observaremos o homem do cangaço na figura emblemática de Lampião conforme o concebe a autora. Consideramos que o cangaço é analisado, com recorrência, à luz de visões antagônicas: por um lado quem abraça o cangaço é visto como herói que, por meio do banditismo social, busca sobreviver às misérias existenciais ocasionadas pelos problemas climáticos e políticos cíclicos no Nordeste brasileiro e que, por isso, merece honras e homenagens; por outro, é visto como um ser à margem, que descumpre leis e cuja índole facínora não se afina com os valores morais socialmente estabelecidos. Atentaremos, também, para os elementos estruturais da peça, mas buscaremos, sobretudo, apontar, diante da temática abordada, resquícios da Cultura Popular.

PALAVRAS-CHAVE: Imaginário Popular; Teatro; Cangaço.

INTRODUÇÃO:

Cangaceiros, coiteiros, coronéis, tangerinos, vaqueiros, santos consagrados pelo povo, fanáticos religiosos alcunhados de beatos são alguns exemplos de figuras místicas e míticas que povoam o imaginário popular do Nordeste brasileiro. 
Dentre esses arquétipos comportamentais tão presentes na história do Brasil no final do século XIX, e início do século XX, podemos afirmar que poucos conseguiram instigar tanto interesse na população, e em pesquisadores, como a figura do cangaceiro. A oralidade propagou, ao longo dos anos, os eventos mirabolantes dos homens do cangaço com seus gestos benévolos despendidos a quem os auxiliava de algum modo, também gestos nada amigáveis que puniam a quem os visse com hostilidade. Desse modo foi construído o mito que gira em torno dos seguidores do controverso cangaço.  
Como estilo de vida de mulheres e homens destemidos que viviam à margem da lei no sertão nordestino, o cangaço inspirou a produção de inúmeros folhetos de cordel, garantiu sua presença no cancioneiro popular e também foi amplamente discutido quando se constituiu como tema para realização de filmes diversos.
Ora visto como reduto de bandidos destemidos cujo heroísmo vencia o jugo de coronéis e políticos exploradores do sertanejo nordestino, ora visto como agrupamento de facínoras capazes de medonhas atrocidades, o cangaço conseguiu, sobretudo na emblemática figura de Lampião, repercutir consideravelmente no imaginário popular. Numa tentativa de entender o que motiva um indivíduo a seguir o cangaço, Nascimento (1998, p. 21)[2] afirma sobre o cangaceiro que: 

Produto da alma bárbara do sertão e vítima congênita da influência mesológica, o cangaceiro era um representante da terra martirizada. Penetrava na estrada do crime e ia cumprir o destino infeliz dos bandoleiros, sempre movido à prática do crime, por desagravo de uma afronta recebida.

Essa afirmação nos dimensiona o que caracteriza o cangaço e, a partir dela, podemos considerá-lo uma das vertentes do chamado banditismo social que, em estudo apurado sobre o assunto, Hobsbawm (2010)[3] apresenta como uma forma de reivindicação de caráter social “primitiva” e, nas comunidades sociais mais pobres, esses bandidos costumam serem vistos como supostos defensores dos seus direitos – direitos esses muito desprezados pelo estado. Em decorrência disso, a figura do bandido é idealizada, enaltecida e transforma-se numa espécie de mito.
Em torno da representativa imagem de Lampião foi construído, pelo povo, o arquétipo do “herói” e do “marginal” que concentra valores divergentes em torno de si. Isso pode ser reforçado pelo que nos expõe Hobsbawm (2010, p. 88): “Lampião foi e ainda é um herói para sua gente, mas um herói ambíguo.” Nem sempre coerente aos eventos históricos, o imaginário associou-o ao bandido que entra no mundo da criminalidade por vingança – seu pai fora morto numa busca policial (GOMES, 2007)[4] e, com intenção de vingar-se, Lampião decidiu entrar para o cangaço. Além disso, esse mesmo imaginário o apresenta como homem cuja palavra era confiável, pois tratava-se de um ser dotado de viva inteligência, capaz de ser leal e honesto.
Ante a república velha, e sua política pouco destinada a mudar a realidade social da nação, aos pobres poucas opções eram dadas. O trabalho rural – quando as estiagens periódicas não dizimavam totalmente a esperança da colheita –, a imigração e a criminalidade constituíam-se como subterfúgios utilizados pelo sertanejo para fugir da miséria existencial em que se encontrava. Lampião – como parte dessa massa de degredados sociais – optou pela criminalidade. Podemos inferir, no entanto, que, embora ilegal, para o povo sua revolta parecia justa.  
O herói deveria, sob o ângulo de visão do povo, dispor de alguns atributos que o caracterizassem como tal. A coragem, a honradez, a inteligência – que se manifesta amiúde na “esperteza” do pobre ante a opressão dos poderosos –, a lealdade e a disposição de confrontar o poder público por meio de estratégias que o tornavam um guerreiro temido e, consequentemente, perseguido, são alguns dos valores que atribuem a Lampião e que provavelmente tornaram-no um mito. Porém, dentre os valores que lhe atribuem, parece-nos que o de maior relevância, e que mais o aproximou do povo, foi sua descrença ante a justiça do poder público que o levou ao cangaço na tentativa de vingar-se da morte do pai. O povo compartilhava, com ele, da mesma insatisfação diante do poder público que não demonstrava querer modificar a realidade social degradante da população que se sentia, cada vez mais, desprestigiada.
Inúmeras obras foram produzidas no país com base nos feitos “ilustres” de Lampião. A Literatura de Cordel, que se constitui como um dos maiores propagadores do mito que gira em torno de sua figura, nos oferece famosos folhetos como: “Entrada de Lampião na cidade do Padre Cícero” e “O que me disse um soldado que milagrosamente escapou das unhas de Lampião”, de João Martins de Athayde, “Chegada de Lampião ao inferno”, de José Pacheco, “Combate e morte de Lampião”, de Zé Vicente, dentre outros títulos.
Também a cinematografia, após a década de 1960, se torna um gênero comercial no cinema brasileiro. O primeiro filme sobre a temática foi “Lampião, o rei do cangaço” (1936), de Benjamim Abrahão, e na sequência temos: “O cangaceiro” (1954), de Lima Barreto, “A morte comanda o cangaço” (1961), de Carlos Coimbra, “Três cabras de Lampião” (1962), de Aurélio Teixeira, “O lamparina” (1963), de Glauco Mirko Laurelli, “Deus e o diabo na terra do sol” (1964), de Glauber Rocha, “Memórias do cangaço” (1965), de Paulo Gil Soares, “Maria Bonita, rainha do cangaço” (1968), de Miguel Borges, “Corisco e Dadá” (1996), de Rosemberg Cariry, e “Baile Perfumado” (1997), de Paulo Caldas e Lírio Ferreira.
A presença do cangaço na Literatura Brasileira se torna mais recorrente com o Modernismo, mas já no Romantismo a obra “O cabeleira” (1876), de Franklin Távora, colocava o tema em evidência. O cangaço aparece, no Modernismo, nas seguintes obras: “Cangaceiros” (1938) e “Fogo Morto” (1942), de José Lins do Rego; “Seara Vermelha” (1946) e, com menor recorrência, “Capitães da areia” (1937), de Jorge Amado; “Lampião” (1952) e “Memorial de Maria Moura” (1992), de Rachel de Queiroz; “O auto da compadecida” (1955), de Ariano Suassuna, dentre muitas outras obras que colocam em pauta, seja em prosa, poesia ou teatro, essa temática.
Essas obras reproduzem a imagem mítica que o imaginário popular criou sobre o cangaço, reforçando-a, ou criam um novo mito em torno dessa temática, uma vez que se busca popularizar essa imagem com auxílio da indústria cultural – sobretudo no caso do cinema – cujos fins são sempre tornar o homem objeto do consumo?
Parece-nos possível dizer que o imaginário popular criou o mito, e tanto a Literatura Popular – representada pelo Cordel – quanto a “Literatura Canônica” – representada pelas obras literárias acima citadas –, assim como a cinematografia brasileira, endossam a representação do cangaço proveniente desse imaginário que o povo constrói e propala, sobretudo, oralmente. Não se pode, no entanto, esquecer que há o reforço de uma indústria cultural que se utiliza de um elemento supostamente atrativo para o povo e o apresenta, com forte apelo comercial, ornado com novas cores e formatos.
É desse modo que queremos pensar a obra “Lampião” (1953)[5], de Rachel de Queiroz, que, longe de ser uma produção típica da cultura popular, se apoia na apresentação, por meio da dramaturgia, da imagem do famoso cangaceiro Lampião colhido, certamente, do arquétipo de herói construído pelo imaginário do povo.   

LAMPIÃO: O RETRATO DE UM HERÓI EM CINCO “QUADROS” 

            A obra “Lampião”, publicada em 1953, apresenta uma das versões sobre a história do mítico cangaceiro que percorreu o sertão nordestino instigando ora ódio, ora encômios. Rachel de Queiroz, cujas obras sempre enveredavam para um marcante telurismo, nos aproxima de Lampião, e sua companheira Maria Bonita, com um olhar realista e incisivo sobre o universo do cangaço.
            Para desenvolver a peça, Rachel de Queiroz realizou uma apurada pesquisa histórica[6] e utilizou-se de sua perceptível predileção em trabalhar com diálogos em seus romances para desenvolver as ações que surgem nos Cinco Quadros em que apresenta a personagem evocada no título. Os diálogos expressam marcas linguísticas que se aproximam da fala do sertanejo, há clareza e verossimilhança na construção da linguagem e os cenários sugeridos pela autora em nada fogem da paisagística rústica que, em alguns espaços do Nordeste, podemos constatar.  
            A peça apresenta, no Primeiro Quadro, uma cena única em que as personagens Maria Déa – que só recebe a alcunha de Maria Bonita após amigar-se a Lampião – e Lauro – primeiro marido de Maria Bonita com quem teve dois filhos – conversam sobre uma possível invasão de Lampião e seu bando.  
            Maria Déa mata uma cobra e a traz pendurada num galho seco de árvore e afirma que o marido é um covarde. Nesse ínterim eles conversam sobre Lampião e ela demonstra o quanto está insatisfeita com a vida conjugal – alude também ao fato de que enviou um bilhete ao cangaceiro dizendo que estava disposta a deixar marido e filhos e ir-se embora com ele.
            Nesse diálogo inicial a autora coloca em evidência suposições sobre o que motivara Lampião a optar pela vida do crime. Nas falas das personagens podemos encontrar também uma das visões que, no imaginário popular, sobre Lampião é propagado. Lauro, indignado com a alusão que a esposa faz à boa índole de Antônio Silvino e Lampião, afirma (QUEIROZ, 2005, p. 19): “Não, Silvino era bom, nunca fez perversidade à toa; e tirava dos ricos para dar aos pobres. Mas Lampião é um assassino miserável, bebedor de sangue inocente.”
            Em seguida, nos é apresentado Lampião que, ao chegar com seu bando, atendendo ao pedido de Maria Déa, como que fascinado por sua beleza brejeira a conduz consigo. Neste momento da peça é realizada uma descrição pormenorizada do cangaceiro. Essa descrição, diga-se de passagem, nos dá indicações de que a autora se apropria do aspecto físico que a larga iconografia relacionada ao cangaceiro nos disponibiliza e, assim como o delineia fisicamente, apresenta traços do seu intrigante perfil psicológico. Leiamos, a seguir, a descrição que nos é apresentada na peça:

Há divergência sobre sua estatura; a lenda conta que ele era alto; Leonardo Motta diz que era de estatura meã. Pelas fotografias, vê-se que é bem mais alto que o comum dos sertanejos. Tipo ascético, é sóbrio, taciturno, ciente de sua força. Usa óculos; cabelos grandes – é esse um traço característico de todos os seus companheiros também. Roupa de zuarte e cáqui, culote, perneiras. O grande chapéu de couro, quebrado à testa, enfeitado barbaramente com três estrelas de ouro; moedas de ouro sob as estrelas, na aba do chapéu, e na testeira bem visível; no barbicho longo que lhe cai pelo peito, há enfiados anéis lisos de ouro e de prata, e anéis com pedras. A faca que traz à cintura tem mais de meio metro; o cabo é de ouro. O peito é cruzado por cartucheiras enfeitadas de medalhas. Carrega um rifle com a bandoleira também enfeitada de escudos e medalhas preciosas. Usa ainda a tiracolo um jogo de embornais bordados. Pistola à cinta. Calça alpargatas de tipo sertanejo, bordadas e com ilhós. Os demais cangaceiros copiam os trajos e armamento do chefe, com riqueza proporcional. (QUEIROZ, 2010, p. 22)

            Ainda é mencionada pela autora a risada característica de Lampião. Ao mencionar o modo como o cangaceiro ri, a autora cita algo que muito nos interessa nessa investigação. Como se tivesse recorrido à contribuição do povo sertanejo para elaboração da imagem que ela tenta reproduzir em sua obra, a autora afirma que (ibidem, p. 26): “Lampião dá sua risadinha curta, característica – “risada de cobra”, dizia o povo do sertão”.
            O Segundo Quadro se divide em duas cenas. Na primeira, Lampião e seu bando se encontram num impasse: após fazerem emboscada conseguem sequestrar dois viajantes – um Agente de seguros e um Capangueiro. Lampião dita uma carta ao Agente de seguros e o força a entregá-la ao interventor de Pernambuco. O teor da carta se caracteriza como mais uma das investidas ousadas de Lampião em busca de poder. A carta propõe ao interventor de Pernambuco uma divisão do estado em que uma parte deveria ficar sob a jurisdição do estado e a outra parte sob seu domínio.
            Na segunda cena, Lampião e Maria Bonita dialogam. Surge na peça um dos momentos de maior intimidade do casal: ela lamenta os dois filhos que deixou para trás e Lampião repele seu lamento. O cangaceiro, apaixonado, afirma que preferia ver os filhos da amada mortos para que assim não precisasse lembrar-se de que tinha compartilhado o corpo dela com outros seres humanos. O amor e a possibilidade da morte surgem em seus discursos inconsolados: ela pela ausência dos filhos, ele pelo amargo domínio que o amor devotado à sua amada lhe proporcionava. Sem dúvidas, é um momento de forte lirismo da obra.
            No Terceiro Quadro temos uma cena única em que a autora delineia o cotidiano do cangaço: o rancho, os pertences, os costumes. Logo no início da cena, Volta-Seca retorna de uma venda com um jornal nas mãos. Há no jornal uma notícia sobre a carta enviada ao interventor pernambucano que dá uma resposta que não agrada a Lampião e, em decorrência dessa resposta, Sabino – um dos seus cangaceiros – faz comentários que desencadeiam um conflito e ambos se veem à beira de uma luta armada. O saldo dessa contenda é a morte de Sabino com três tiros. Para justificar a morte que comete, Lampião diz (ibidem, p. 75): “Era ele ou eu... E se eu não sou ligeiro...” Em seguida ao assassinato, Lampião, ironicamente, se apropria do dinheiro que Sabino guardava consigo.
            O Quarto Quadro é dividido em duas cenas. A primeira cena apresenta Ponto-Fino – o irmão mais novo de Lampião chamado Ezequiel – que, em meio a um iminente conflito armado que deixa o bando em alerta, dribla a atenção do irmão e, aproveitando-se de sua ausência, faz insinuações de conotação sexual à Maria Bonita que, em todas as investidas, o pretere. O cangaceiro expressa o quanto deseja ser o novo Rei do Cangaço, ser rico e poderoso e ter ao lado a companheira do irmão. Lampião percebe a afronta de Ponto-Fino assim que retorna ao rancho e inicia-se uma discussão.
            Na segunda cena acontece o confronto entre Ponto-Fino e Lampião. Maria Bonita tenta acalmar o conflito, mas o inevitável acontece: ante a arrogância, petulância e desacato do irmão, Lampião o enfrenta e acaba por feri-lo. Na cena, surge também Corisco que surge com intuito de atender ao chamado do seu ex-líder.
            Lampião, até aqui, apresenta um comportamento cuja base moral fora estipulada por ele no interior do seu grupo: quem afronta o cabeça do bando deve “pagar”, quem se dá ao direito do deboche deve ser “triturado” para aprender a respeitar, quem trai deve ser punido com rigor – e essa punição deveria ser aplicada contra qualquer um, independentemente do grau de parentesco. Nesse aspecto comportamental do cangaceiro identificamos um traço que a oralidade propagou e a Literatura de Cordel mitificou: a crueldade, frieza, senso de justiça particularmente austero com que ele agia diante do que entendia como inaceitável para o seu bando e, sobretudo, para com sua pessoa.
            Seu comportamento, bem como dos demais do seu bando, sempre nos parece contraditório, o que nos remete ao que diz Hobsbawm (2010, p. 86): “O universo ético a que pertencem (ou seja, aquele que é expresso nas canções, poemas e nos folhetos de feiras) contém tanto os valores do “ladrão nobre”, quanto os do monstro.” Por um lado temos Lampião que, em sua contradição moral (ibidem, p. 89): “Causar temor e ser impiedoso é um atributo mais importante para esse bandido do que ser amigo dos pobres.” Ao que, em seguida, o estudioso afirma: “E, curiosamente, embora na vida real Lampião fosse sem dúvida arbitrário, e às vezes cruel, via a si próprio como defensor da correção em pelo menos um aspecto importante: a moralidade sexual.”
            Outro traço distintivo de sua personalidade está no fato de que venerava a imagem do Padre Cícero – sacerdote que fora considerado santo pela religiosidade popular – conforme nos diz Queiroz (1997, p. 52)[7]: “Como todo bom sertanejo, Lampião reverenciava muito o “Meu Padim Pe Cícero”, abstinha-se de pilhar as moradas em que sua imagem estivesse entronizada e em suas andanças em todo o Estado do Ceará.” A religiosidade para Lampião era algo de suma importância: tinha a crença de que seu corpo estava “fechado”, ou seja, protegido pelos santos e resguardado das ciladas dos inimigos que o emboscavam. 
            Esse aspecto religioso surge com muita recorrência nos últimos momentos de Lampião quando, na Grota do Angico, no leito seco de um riacho, ele e Maria Bonita são emboscados e terminam sendo mortos. A alusão à proteção do Padre Cícero surge com recorrência, como se fosse necessário obter do santo aquilo que seu rifle – seu fiel companheiro de guerra – não conseguiria realizar sozinho.
            No Quinto, e último Quadro, a peça se encaminha para o desfecho trágico inevitável. Lampião e Maria Bonita, à espera do auxílio de Corisco, acuados na Grota dos Angicos, morrem abraçados. Seus corpos são separados apenas no fim, quando é dado ordem de que a cabeça de ambos deveria ser decepada. A proteção divina falhara, ou o astuto estrategista do sertão perdera a esperteza?
            Rachel de Queiroz não parece suprimir os traços violentos que marcaram a personalidade do Rei do Cangaço. A personagem Lampião concebida por Rachel de Queiroz traz em si a força que o torna, por vezes, singelo ante a mulher a quem devota seu amor e pode torná-lo implacável quando seu poderio é colocado à prova. 

CORTEM AS CABEÇAS: EIS O FIM DE LAMPIÃO E SEU REINADO

Um dos pontos altos da peça “Lampião” se dá pelo delineamento psicológico das personagens. A autora nos faz entrar no universo tenso dessas personagens que, aos poucos, mostram os valores morais a que acorrem para justificar suas ações.
Uma característica de Rachel de Queiroz é colocar em pauta, em suas obras, personagens femininas capazes de atos inusitados ante a sociedade e seus falsos moralismos. Não foi diferente ao retratar a companheira de Lampião, Maria Bonita. A imagem que a autora tentou passar foi a de que Maria Bonita, antes Maria Déa, era insatisfeita com a vida conjugal e doméstica e que se envolver com um bandido com a fama de Lampião seria uma transgressão e, ao mesmo tempo, uma libertação. Uma das cenas que comprova o que afirmamos está no Primeiro Quadro, momento em que Maria Bonita conversa com Lauro, o seu ainda marido (QUEIROZ, p. 16): “Por que não é você mesmo que vai fazer a minha renda? Era trabalho que lhe servia. Mas não adianta insultar, que você não reage. Nem ao menos sai dessa mansidão. Deus que me perdoe, parece que tem medo até de mim!”
Maria Bonita assume um papel de atividade ante o marido que, segundo ela (ibidem, p. 20): “Tem hora em que até me parece que não sou casada com um homem – que sou casada é com outra mulher que nem eu.” Assume seu desejo de ir embora, envia um bilhete para o rei do cangaço – mesmo sendo casada e tendo dois filhos – e não hesita em acompanhar o cangaceiro quando este a procura em sua casa.
Lampião e Maria Bonita são acompanhados por um bando armado que segue o líder com fidelidade. À medida que o tempo passa, as personagens secundárias também exibem seus perfis psicológicos.
Queremos destacar as personagens Ponto-Fino – irmão mais novo de Lampião cujo comportamento insolente culmina com um confronto entre ambos –, Volta-Seca – afilhado de Lampião e que se comporta como um cão de guarda –, Antônio Ferreira – também irmão de Lampião –; Moderno – que se chama Virgínio e é cunhado de Lampião –; Sabino – que em confronto com Lampião é assassinado com três tiros – e Corisco – ex-integrante do bando de Lampião e líder de um novo bando que sempre auxilia Lampião quando este lhe pede auxílio.
Esse é o universo de personagens austeras que percorrem os cenários idealizados pela autora. E, como afirma Prado (2000, p. 84)[8]: “No teatro [...] as personagens constituem praticamente a totalidade da obra: nada existe a não ser através delas”. Ao indagar-se acerca da caracterização das personagens no teatro, Prado (ibidem, p. 88) indica três vias, através das quais se considera o que a personagem revela sobre si mesma, o que faz, e o que os outros dizem a seu respeito.
Lampião revela-se um ser cujo poder é capaz de dominar, pelo temor, a todos; seu comportamento corajoso e sagaz o torna temido e, ao mesmo tempo, prestigiado. Esses aspectos tornam essa personagem no texto dramático, assim como na realidade, uma figura complexa e contraditória. E as personagens secundárias, que em seu derredor circundam, são delineadas a partir das decisões e ações e gestos advindos dele.
Em se tratando da importância dessa personagem, nos parece que finalmente chegamos a uma suposta conclusão.
Na década de 50, no país, surgiu um público que buscava abordagens mais ideológicas no teatro. Dentre as vertentes surgidas, podemos dizer que o regionalismo e a ideologia se caracterizaram como vieses proeminentes nesse período do teatro brasileiro. A primeira vertente estava vinculada ora à denúncia das problemáticas socioeconômicas, ora à explanação de idiossincrasias regionais reproduzidas com intenso valor estético; e a segunda recorria à ideologia, ou seja, colocava em voga o contexto político nacional, e suas contradições, de modo a denunciar seus absurdos e instigar no povo uma visão menos alienante sobre a política nacional.
Nossa proposta não era discutir se na peça de estreia de Rachel de Queiroz seria possível inferir elementos peculiares da teatralidade típica das camadas populares. É óbvio o fato de que a autora não desenvolveu essa obra comprometida com elementos estruturantes típicos do chamado teatro popular. Ao contrário, ela recorre a eventuais recursos tradicionais para contar sua versão da história do cangaceiro Lampião. Mas o que buscamos na peça, de fato, foi reconhecer os valores do imaginário popular que a autora, sempre comprometida em desenvolver obras de caráter regionalista – como se pode verificar em quase todas as suas obras –, desenvolveu ao dar vida a Lampião e seu bando.
Nosso intuito, ao colocar essa peça teatral em discussão, foi, portanto, investigar a partir de que ponto de vista a autora concebeu essa figura mítica. Queríamos entender se Rachel de Queiroz, ao se deparar com a dicotomia propagada pelo imaginário popular – Lampião foi, é, ou será um herói digno de honras, ou um bandido monstruoso que deveria ser banido do sertão? – assume um ponto de vista que elege uma dessas visões, ou se a autora se mantém neutra e prefere dar continuidade a essa duplicidade de valores que o povo constrói em torno dessa famosa personagem histórica.
Parece-nos cabível, ao finalizar nossa breve investigação, dizer que a autora conseguiu se utilizar de muitas pesquisas de caráter teórico, que deu verossimilhança aos eventos que reproduz em sua peça, mas foi do cotidiano, no convívio com o sertanejo nordestino, que ela encontrou o teor preciso para desenvolver o “seu” Lampião. E, para ela, embora o tenha pincelado com as cores mórbidas da tragédia iminente, fica em nossas mentes, após conhecer essa obra, a imagem de um homem dotado de extrema coragem, fiel às suas ideias, capaz de manipular as pessoas em benefício próprio, capaz de, em nome de seus valores morais, punir e matar sem sentimentalismos. E, ao mesmo tempo, a autora nos deu um Lampião capaz de se render de amores aos pés de sua Maria Bonita cuja personalidade forte o complementou na vida e na morte. E por falar em morte, o Lampião de Rachel de Queiroz não tinha medo de morrer, pois o ascetismo o tinha tumultuado o peito: morrer seria até lucro, pois tinha certeza de que teria a companhia do seu “Padim Pe Cícero” no céu, para onde estava certo de que poderia ir. Rachel de Queiroz o apresenta tão ambíguo, portanto, quanto o vê o povo com seu imaginário que cria e recria, à medida que o tempo passa, seus heróis e seus mitos.

REFERÊNCIAS:
 
GOMES, Karolina; HACKMAYER, Monika; PRIMO, Virginia. Lampião, Virgulino e o mito: 70 anos do fim do cangaço. In: Revista Eclética, Rio de Janeiro, n. 25, julho / dezembro. 2007. p. 16 – 19. Disponível em: http: // www.puc-riodigital.com.br. Acesso em: 22 de janeiro de 2013.


HOBSBAWM, Eric J. Bandidos. Trad. Donaldson M. Garschagen.  4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2010.


NASCIMENTO, José Anderson. Cangaceiros, coiteiros e volantes. São Paulo: Ícone, 1998.


PRADO, Décio de Almeida. A personagem no teatro. In: CANDIDO, Antonio; et al. A personagem de ficção. 10. ed. São Paulo: Perspectiva, 2000.


QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. História do cangaço. 5. ed. São Paulo: Global, 1997.


QUEIROZ, Rachel de. Lampião & A beata Maria do Egito. 5. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.



[1] Graduado em Letras pela Universidade Regional do Cariri – URCA – e Especialista em Ensino de Língua Portuguesa e Literaturas Brasileira e Africanas de Língua Portuguesa. Membro do NETLLI – Núcleo de Pesquisa em Estudos Linguísticos e Literários. 

[2] NASCIMENTO, José Anderson. Cangaceiros, coiteiros e volantes. São Paulo: Ícone, 1998.

[3] HOBSBAWM, Eric J. Bandidos. Trad. Donaldson M. Garschagen.  4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2010.

[4] GOMES, Karolina; HACKMAYER, Monika; PRIMO, Virginia. Lampião, Virgulino e o mito: 70 anos do fim do cangaço. In: Revista Eclética, Rio de Janeiro, n. 25, julho / dezembro. 2007. p. 16 – 19. Disponível em: http: // www.puc-riodigital.com.br. Acesso em: 22 de janeiro de 2013. 

[5] QUEIROZ, Rachel de. Lampião & A beata Maria do Egito. 5. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.

[6] Essas pesquisas serviram de escopo para que, quase cinquenta anos depois da publicação da peça teatral “Lampião”, Rachel de Queiroz retomasse a temática do banditismo social para realizar sua última obra “Memorial de Maria Moura”, publicada em 1992. 

[7] QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. História do cangaço. 5. ed. São Paulo: Global, 1997. 

[8] PRADO, Décio de Almeida. A personagem no teatro. In: CANDIDO, Antonio; et al. A personagem de ficção. 10. ed. São Paulo: Perspectiva, 2000.



















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