quarta-feira, 18 de novembro de 2015

MOSTRA 21 DE CINEMA 2015: O DESEJO AGUÇA COM O OLHAR

"Dentro da casa", de François Ozon

Tenho o privilégio de acompanhar a Mostra 21, idealizada por Elvis Pinheiro, há algum tempo. Em 2015, estive mais uma vez neste evento que tem exibido filmes de grande qualidade estética para o Cariri e, a este respeito, tecerei comentários com ênfase na exibição de algumas obras que mais particularmente me interessaram.
            Coincidentemente, os filmes que mais me causaram impacto, neste ano, foram realizados por cineastas que exploraram o idioma francês em suas obras. Isto não quer dizer que não apreciei os demais filmes, no entanto meu olhar foi aguçado por estas obras tão densas quanto qualitativas – e que as assisti em êxtase.   
            O desejo aguça com o olhar foi o tema do ano. O verbo desejar significa, segundo o dicionário[1], “ter desejo ou vontade de; querer; ambicionar”. Quando substantivo, este vocábulo adquire significação mais ampla – o desejo significa, desta feita, “vontade de possuir; ambição” – em outra acepção, poderia representar “vontade de comer; apetite; aspiração; anelo”.
                A Mostra 21 nos possibilita, desde sua primeira edição, apreciar personagens do universo cinematográfico delineadas por aspectos comportamentais diversos. As relações humanas, em suas mais densas e, por vezes, complexas manifestações, foram pormenorizadas nestes vinte e um dias em que, talvez mais do que em anos anteriores, tivemos uma pausa em nossas vidas cotidianas para mergulhar em dramas excedentes em profundidade, lirismo e beleza. E, com isto, muito descobrimos acerca de nossos próprios desejos, fragilidades, vulnerabilidades e, também, acerca de nossas forças e potencialidades, à medida que foi possível refletir sobre os limites de nosso olhar em relação a nós mesmos e, sobretudo, em relação ao outro. 
            Dentre os filmes que pude assistir, devo destacar, inicialmente, os seguintes: Violette (Martin Provost), Amor (Michael Haneke), A religiosa (Guillaume Nicloux), Bem amadas (Christophe Honoré), Jovem e bela e Dentro da casa (François Ozon). Estes foram, sem dúvidas, os que mais gostei da Mostra.
            O filme Violette, biografia da escritora francesa Violette Leduc, me instigou à necessidade de conhecer a escrita desta personalidade que, confesso, tomei conhecimento a seu respeito pela primeira vez através deste filme. A propósito, Cássio Starling Carlos (2014)[2] realiza, na Folha de São Paulo, crítica elogiosa sobre esse filme e diz que: “Violette atualiza, para nossa época que confunde literatura, autoficção e autopromoção, questões mais fundamentais, como ‘para que escrever?’ e ‘para quem se escreve?’”.
Concordo e endosso: o que mais me marcou neste filme foi o trabalho primoroso em apresentar os percursos vivenciados por esta escritora para construir sua ficção que, pelo que constatamos, causou polêmica por ser intensa e por expurgar, sem falsos moralismos, o desejo a partir de uma ótica feminina tão lírica quanto controversa, para a visão preponderante na época.
Já nos filmes Amor e A religiosa, reencontrei Isabelle Huppert – minha atriz francesa preferida –, em papéis secundários brilhantes! Recordo-me que ela, como a passional madre do filme A religiosa, arrancou risos da plateia – risos de nervosismo e estranhamento, obviamente! Ela, ao externar seu desejo pela religiosa submetida, sofregamente, ao convento sem que tivesse vocação, expressa seu ardor erótico com o semblante patético típico dos que confessam, passionalmente, o quanto desejam ao outro que, por uma série de fatores, se entrincheira em preterimentos e recusas.  
Em Amor, por outro lado, ela é a filha do casal de velhos músicos que, na vivência de um amor para além do senso comum, encontram-se às vésperas do desespero ocasionado pela doença da esposa e da sensação de impotência do esposo. Lírico e tecnicamente majestoso, Amor demora a sair da mente da gente após sua exibição – quem ainda não escuta, com incômodo, o barulho da torneira que escorre sem que a personagem protagonista a possa, ou queira, desligar?
Eu, que gosto muito de musicais, esperava com ansiedade assistir ao filme Bem amadas. Ele correspondeu às expectativas e tornou-se um dos meus preferidos da Mostra. Catherine Deneuve que – alterando um pouco o que teria dito, sobre ela, Susan Sarandon, no filme Fome de viver – ninguém precisa de muito estímulo para vê-la em cena, seja por sua beleza ou por sua atuação. Ela aparece ao lado de Chiara Mastroianni, sua filha, e pode dizer que colocou no currículo mais um belíssimo trabalho.
Devo mencionar, ainda, Jovem e bela e Dentro da casa, filmes do mesmo diretor.  Sobre o primeiro, gostei muito e o considerei interessante pela abordagem da juventude, prostituição e família com a densidade que os temas comportam, mas gostei mesmo, sem exageros, foi do controverso Dentro da Casa
Até que ponto, por meio da escrita, e seus vieses imaginativos, alguém pode manipular a outrem? Que versão de uma história é de fato a verdadeira? Desejar ver demais não seria uma postura masoquista, enquanto mostrar demais poderia figurar como uma postura de perceptível sadismo? Olhar não é uma tentativa, também, de encontrar-se com aquilo de mais íntimo que há em si mesmo? O que poderá ser encontrado na próxima página de um texto, que se pretende literário, não é um mecanismo que atiça, aguça, fomenta o desejo de olhar e olhar e olhar como um vício irrefreável? Este filme me deixou com muitas questões, talvez sem resposta – foi a sensação que eu tive, assim como outras pessoas, ao sair da sessão em que o filme Dentro da casa foi exibido. E a polissemia, nele presente, o confirmou como uma obra de arte excedente em genialidade! Talvez esta tenha sido a sessão em que melhor o desejo aguçado pelo olhar me foi apresentado.
Quanto aos demais filmes, o cinema nacional foi bem representado por Praia do futuro e Tatuagem. Ambos excelentes e muito elogiados pelos que participaram da exibição. Ninfomaníaca, Um estranho no lago, Holly Motors e Azul é a cor mais quente foram, talvez, os mais polêmicos – teriam causado estranhamentos e repulsa, ou instigado os olhares a desejarem mais loucamente?
Outros filmes foram exibidos, no entanto já me estendi muito em meu comentário. Devo cessar a escrita, por isto não falarei sobre todos. Porém, antes de silenciar, preciso dizer que o Ela foi um dos destaques desta Mostra – e com razão! A voz do sistema operacional Samantha, que era assustadoramente romântica e sexy, faz Theodore apaixonar-se – e quem não se apaixonaria? O amor, com suas vicissitudes, não poderia ter sido melhor retratado na Mostra!
Uma novidade ocorrida este ano foi a realização de palestras (em verdade, minicursos riquíssimos!) oferecidos ao público gratuitamente e ministrados por membros do Grupo Sétima de Cinema: 1) Cinelésbico: representatividade lésbica no cinema – mediado por Débora Costa – e 2) A estética do medo: os principais filmes e ciclos da história do cinema de horror – mediado por Wendell Borges.
Queria ter participado das duas palestras, mas participei apenas de uma – a ministrada por Wendell Borges. E posso afirmar que eu tive, assim como os demais que participaram, a oportunidade de aprender muito sobre uma das estéticas cinematográficas que eu menos apreciava, justamente por não conhecer mais a fundo. Após o passeio histórico realizado pelo ministrante, que foi coerente com a explanação conteudística, e com a exibição de materiais ricos acerca do assunto, pude me familiarizar mais com o gênero e repensar a visão errônea que eu tinha a este respeito.  
 Para finalizar, preciso dizer que a Mostra 21 é um acontecimento marcante para a história do cinema no Cariri, no Ceará, no Nordeste, no Brasil! O público ganha muito com o contato que tem tido com as exibições dessas obras cinematográficas de incomensurável valor estético. Precisamos que o Grupo Sétima de Cinema seja ainda mais perseverante no estudo, divulgação e produção textual sobre Cinema – e que para isto tenha sempre apoio. E Elvis Pinheiro, cuja iniciativa fez do Cariri um espaço aberto à sétima arte, continue aguçando nossos olhares cada vez mais para a necessidade de vislumbrar, na arte cinematográfica, momentos de fuga do mundo cotidiano, tão cheio de seus dissabores, e o encontro com os nossos desejos mais profundos que, de certo modo, só precisam de um estímulo, visual, talvez, para virem à tona.  

Émerson Cardoso
"A religosa", de Guillaume Nicloux





[1] LUFT, Celso Pedro. Minidicionário Luft. São Paulo: Ática, 2000.
[2] CARLOS, Starling Cássio. Mais que biografia, “Violette” atualiza questões da literatura. In: Folha de São Paulo. Disponível em: www1.folha.uol.combr/ilustrada/2014/0815066448. Acesso em: 11/09/15.

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