Tarefa difícil
esta de escrever quando se está doendo. Creio que temos consciência de nossa
humanidade por meio da dor, por isto nunca nos isentaremos de vivenciá-la em
algum momento. Quem pode ser superior à possibilidade de doer?
Há quem sinta prazer na dor – os masoquistas que o digam –, há quem sinta
prazer em fazer doer – prerrogativas dos sádicos. Não podemos ver só um lado da
moeda: por acaso um ser humano pôde aprender algo sem doer um pouco que seja?
Alguém me disse que uma mãe dói a pior dor quando morre um filho. Outro
dia a vida me possibilitou ver uma senhora de oitenta anos chorando a morte do
filho que morreu de ataque fulminante do coração. E eu, que presenciei a cena,
permaneci em silêncio. Que palavra vai retificar a cratera daquele dileto
coração?
Ainda vi dor quando uma amiga de infância foi embora – mas esta dor eu prefiro
fingir que não aconteceu. Foi comigo também a dor quando morreram familiares
queridos. Dor por mim e por aqueles que não sabiam doer como eu.
O tempo apaga tudo para alguns, para mim não: basta uma lembrança que a
dor volta inteira. Não é só isso que pode ser considerado: uma foto de um tempo
distante, uma música de melodia nostálgica, palavras que são retomadas numa
conversa oportuna...
No dia em que visitei a primeira escola em que estudei na vida, quantas
surpresas me aguardava a dor! Eu sempre fui de lembrar, mas não contava que
seria capaz de ver meus colegas de dor infantil correndo naquele pátio. Cada
lado do pátio, cada sala, meu Deus, quantos momentos passados que talvez só eu,
numa existência toda, seja capaz de sentir como se fosse agora.
Para entender a dor temos que ter
sensibilidade. Algo que me sensibiliza é ver, diante de mim, a humilhação dos
outros. Não gosto que punam os outros na minha presença. Lembro-me de que no
período do serviço militar sofria mais pelos outros do que por mim. Vou fazer
uma confissão: eu transcrevia as conversas que eu tinha com os meus
companheiros de farda. Ia colhendo informações sobre eles e, sem que eles
soubessem, colecionava, em forma de escritos, suas dores.
Outro dia alguém me disse que a pior
dor que existe é ficar em solidão. Outro já disse que é ficar sem a mãe. Outro que é perder o grande amor da vida. Mas consenso geral é que a dor pode
triturar corpo e alma. E disto tenho receio.
Na obra Dora, Doralina, de
Rachel de Queiroz, a personagem protagonista inicia sua narrativa dizendo que:
“A vida toda é um doer”. Concordo e digo mais: a vida toda, a meu ver,
corresponde a um confronto intermitente contra a dor. Doer não é fácil até para
os mais fortes.
Tive um amigo que um dia me disse que o slogan da sua vida era: “Viver a vida de todos os modos possíveis sem
considerar a dor”. Este amigo tentou suicídio duas vezes, na terceira quase
morreu – a verdade é que ele doía por amor.
Por que discorro aqui sobre dor? Eu sentia uma espécie de dor e decidi
escrever sobre o assunto, porém agora cesso este texto porque de tanto escrever
sinto dor nos dedos. Doer, sobretudo ao frágeis, é exercício insuportável.
A dor, segundo Celso Pedro Luft, é: sofrimento físico proveniente de
doença, ferimento; tormento moral; aflição; dó, pena; remorso, arrependimento.
Se ele diz, quem sou eu para desdizer? Mas que fique bem claro: a dor dói em
mim e doerá até que a dor total se instale em mim e leve-me à sepultura. E isto
parece não doer, mas me ampliar. É como se a dor realizasse tarefa renovadora e
representasse possibilidades de sabedoria e experiências que me serão valiosas
por toda a vida.
Uma indagação de repente me atormenta de tal modo que chega a doer: se viver
é sentir dor a conta-gotas, como será a dor que antecede a morte?
Émerson Cardoso
Crônica perfeita. Lembrei-me de uma frase de Shakespeare (sinceramente não me recordo de que obra) em que ele diz: "Todo mundo é capaz de dominar uma dor, exceto que a sente". Sobre a sua indagação no final, alguns de nós tem um conta-gotas de dor mais rápido que nos causa sofrimento, mas também nos renova.
ResponderExcluirObrigado pela gentileza das palavras, Jean! Seu comentário é muito pertinente! Abraço fraterno!
ExcluirCrônica perfeita. Lembrei-me de uma frase de Shakespeare (sinceramente não me recordo de que obra) em que ele diz: "Todo mundo é capaz de dominar uma dor, exceto que a sente". Sobre a sua indagação no final, alguns de nós tem um conta-gotas de dor mais rápido que nos causa sofrimento, mas também nos renova.
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