quarta-feira, 20 de julho de 2016

CRÔNICA: "TRATADO SOBRE A DOR"

"Big Man", de Ron Mueck 
Tarefa difícil esta de escrever quando se está doendo. Creio que temos consciência de nossa humanidade por meio da dor, por isto nunca nos isentaremos de vivenciá-la em algum momento. Quem pode ser superior à possibilidade de doer?
Há quem sinta prazer na dor – os masoquistas que o digam –, há quem sinta prazer em fazer doer – prerrogativas dos sádicos. Não podemos ver só um lado da moeda: por acaso um ser humano pôde aprender algo sem doer um pouco que seja?
Alguém me disse que uma mãe dói a pior dor quando morre um filho. Outro dia a vida me possibilitou ver uma senhora de oitenta anos chorando a morte do filho que morreu de ataque fulminante do coração. E eu, que presenciei a cena, permaneci em silêncio. Que palavra vai retificar a cratera daquele dileto coração?
Ainda vi dor quando uma amiga de infância foi embora – mas esta dor eu prefiro fingir que não aconteceu. Foi comigo também a dor quando morreram familiares queridos. Dor por mim e por aqueles que não sabiam doer como eu.
O tempo apaga tudo para alguns, para mim não: basta uma lembrança que a dor volta inteira. Não é só isso que pode ser considerado: uma foto de um tempo distante, uma música de melodia nostálgica, palavras que são retomadas numa conversa oportuna...
No dia em que visitei a primeira escola em que estudei na vida, quantas surpresas me aguardava a dor! Eu sempre fui de lembrar, mas não contava que seria capaz de ver meus colegas de dor infantil correndo naquele pátio. Cada lado do pátio, cada sala, meu Deus, quantos momentos passados que talvez só eu, numa existência toda, seja capaz de sentir como se fosse agora.
            Para entender a dor temos que ter sensibilidade. Algo que me sensibiliza é ver, diante de mim, a humilhação dos outros. Não gosto que punam os outros na minha presença. Lembro-me de que no período do serviço militar sofria mais pelos outros do que por mim. Vou fazer uma confissão: eu transcrevia as conversas que eu tinha com os meus companheiros de farda. Ia colhendo informações sobre eles e, sem que eles soubessem, colecionava, em forma de escritos, suas dores.
          Outro dia alguém me disse que a pior dor que existe é ficar em solidão. Outro já disse que é ficar sem a mãe. Outro que é perder o grande amor da vida. Mas consenso geral é que a dor pode triturar corpo e alma. E disto tenho receio.  
Na obra Dora, Doralina, de Rachel de Queiroz, a personagem protagonista inicia sua narrativa dizendo que: “A vida toda é um doer”. Concordo e digo mais: a vida toda, a meu ver, corresponde a um confronto intermitente contra a dor. Doer não é fácil até para os mais fortes.
Tive um amigo que um dia me disse que o slogan da sua vida era: “Viver a vida de todos os modos possíveis sem considerar a dor”. Este amigo tentou suicídio duas vezes, na terceira quase morreu – a verdade é que ele doía por amor.
Por que discorro aqui sobre dor? Eu sentia uma espécie de dor e decidi escrever sobre o assunto, porém agora cesso este texto porque de tanto escrever sinto dor nos dedos. Doer, sobretudo ao frágeis, é exercício insuportável.
A dor, segundo Celso Pedro Luft, é: sofrimento físico proveniente de doença, ferimento; tormento moral; aflição; dó, pena; remorso, arrependimento. Se ele diz, quem sou eu para desdizer? Mas que fique bem claro: a dor dói em mim e doerá até que a dor total se instale em mim e leve-me à sepultura. E isto parece não doer, mas me ampliar. É como se a dor realizasse tarefa renovadora e representasse possibilidades de sabedoria e experiências que me serão valiosas por toda a vida.
Uma indagação de repente me atormenta de tal modo que chega a doer: se viver é sentir dor a conta-gotas, como será a dor que antecede a morte? 

                                                                                               Émerson Cardoso

3 comentários:

  1. Crônica perfeita. Lembrei-me de uma frase de Shakespeare (sinceramente não me recordo de que obra) em que ele diz: "Todo mundo é capaz de dominar uma dor, exceto que a sente". Sobre a sua indagação no final, alguns de nós tem um conta-gotas de dor mais rápido que nos causa sofrimento, mas também nos renova.

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    1. Obrigado pela gentileza das palavras, Jean! Seu comentário é muito pertinente! Abraço fraterno!

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  2. Crônica perfeita. Lembrei-me de uma frase de Shakespeare (sinceramente não me recordo de que obra) em que ele diz: "Todo mundo é capaz de dominar uma dor, exceto que a sente". Sobre a sua indagação no final, alguns de nós tem um conta-gotas de dor mais rápido que nos causa sofrimento, mas também nos renova.

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