Encontrou-o pela
primeira vez quando foi coroada princesa no Baile da Primavera e assim que o
coração deu aquele tranco e o olho ficou cheio d’água pensou: acho que vou amar
ele pra sempre. Ao ser tirada teve uma tontura, enxugou depressa as mãos
molhadas de suor no corpete do vestido (fingindo que alisava alguma prega) e de
pernas bambas abriu-lhe os braços e o sorriso. Sorriso meio de lado, para
esconder a falha do canino esquerdo que prometeu a si mesma arrumar no dentista
do Rôni, o Doutor Élcio, isso se subisse de ajudante para cabeleireira. Ele
disse apenas meia dúzia de palavras, tais como, Você é que devia ser a rainha
porque a rainha é uma bela bosta, com o perdão da palavra. Ao que ela respondeu
que o namorado da rainha tinha comprado todos os votos, infelizmente não tinha namorado
e mesmo que tivesse não ia adiantar nada porque só conseguia coisas a custo de
muito sacrifício, era do signo de Capricórnio e os desse signo têm que lutar o
dobro pra vencer. Não acredito nessas babaquices, ele disse, e pediu licença
pra fumar lá fora, já estavam dançando o bis da Valsa dos miosótis e estava
quente pra danar. Ela deu a licença. Antes não desse, diria depois à rainha
enquanto voltavam pra casa. Isso porque depois dessa licença não conseguiu mais
botar os olhos nele, embora o procurasse por todo o salão e com tal empenho que
o diretor do clube veio lhe perguntar o que tinha perdido. Meu namorado, ela
disse rindo, quando ficava nervosa, ria sem motivo. Mas o Antenor é seu
namorado?, estranhou o diretor apertando-a com força enquanto dançavam Nosotros. É que ele saiu logo depois da
valsa, todo atracado com uma escurinha de frente única, informou com ar
distraído. Um cara legal mas que não esquentava rabo em nenhum emprego, no
começo do ano era motorista de ônibus, mês passado era borracheiro numa oficina
da Praça Marechal Deodoro mas agora estava numa loja de acessórios na
Guaianazes, quase esquina da General Osório, não sabia o número mas era fácil
de achar. Não foi fácil assim ela pensou quando o encontrou no fundo da
oficina, polindo uma peça. Não a reconheceu, em que podia servi-la? Ela começou
a rir, Mas eu sou a princesa do São Paulo Chique, lembra? Ele lembrou enquanto
sacudia a cabeça impressionado. Mas ninguém tem este endereço, porra, como é
que você conseguiu? E levou-a até a porta: tinha um monte assim de serviço,
andava sem tempo pra se coçar mas agradecia a visita, deixasse o telefone,
tinha aí um lápis? Não fazia mal, guardava qualquer número, numa hora dessas
dava uma ligada, tá? Não deu. Ela foi à Igreja dos Enforcados, acendeu sete
velas para as almas mais aflitas e começou a Novena Milagrosa em louvor de
Santo Antônio, isso depois de telefonar várias vezes só pra ouvir a voz dele.
No primeiro sábado em que o horóscopo anunciou um dia maravilhoso para os
nativos de Capricórnio, aproveitando a ausência da dona do salão de beleza que
saíra para pentear uma noiva, telefonou de novo e dessa vez falou, mas tão
baixinho que ele precisou gritar, Fala mais alto, merda, não estou escutando
nada. Ela então se assustou com o grito e colocou o fone no gancho,
delicadamente. Só se animou com a dose de vermute que o Rôni foi buscar na
esquina, e então tentou novamente justo na hora em que houve uma batida na rua
e todo mundo foi espiar na janela. Disse que era a princesa do baile, riu quando
negou ter ligado outras vezes e convidou-o pra ver um filme nacional muito
interessante que estava passando ali mesmo, perto da oficina dele, na São João.
O silêncio do outro lado foi tão profundo que o Rôni deu-lhe depressa uma
segunda dose, Beba, meu bem, que você está quase desmaiando. Acho que caiu a
linha, ela sussurrou apoiando-se na mesa, meio tonta. Senta, meu bem, deixa eu
ligar pra você, ele se ofereceu bebendo o resto do vermute e falando com a boca
quase colada ao fone: Aqui é o Rôni, coleguinha da princesa, você sabe, ela não
está nada brilhante e por isso eu vim falar no lugar dela, nada de grave,
graças a Deus, mas a pobre está tão ansiosa por uma resposta, lógico. Em voz
baixa, amarrada (assim do tipo de voz dos mafiosos do cinema, a gente sente uma
coisa, diria o Rôni mais tarde,
revirando os olhos) ele pediu calmamente que não telefonassem mais pra oficina
porque o patrão estava puto da vida e além disso (a voz foi engrossando) não
podia namorar com ninguém, estava comprometido, se um dia me der na telha, EU
MESMO TELEFONO, certo? Ela que espere, porra. Esperou. Nesses dias de
expectativa, escreveu-lhe catorze cartas, nove sob inspiração romântica e as
demais calcadas no livro Correspondência
erótica, de Glenda Edwin, que o Rôni lhe emprestou com recomendações.
Porque agora, querida, a barra é sexo, se ele (que voz maravilhosa!) é Touro,
você tem que dar logo, os de Touro falam muito na lua, nos barquinhos, mas
gostam mesmo é de trepar. Assinou Pomba Enamorada, mas na hora de mandar as cartas,
rasgou as eróticas, foram só as outras. Ainda durante esse período começou pra
ele um suéter de tricô verde, linha dupla (o calor do cão, mas nesta cidade,
nunca se sabe) e duas vezes pediu que lhe telefonasse disfarçando a voz, como
se fosse o locutor do programa Intimidade no Ar, para avisar que em tal e tal
horário nobre a Pomba Enamorada tinha lhe dedicado um bolero especial. É muito,
muito macho, comentou o Rôni com um sorriso pensativo depois que desligou. E só
devido a muita insistência acabou contando que ele bufou de ódio e respondeu
que não queria ouvir nenhum bolero do caralho, Diga a ela que viajei, que
morri! Na noite em que terminou a novela com o Doutor Amândio felicíssimo ao
lado de Laurinha, quando depois de tantas dificuldades venceu o amor
verdadeiro, ela enxugou as lágrimas, acabou de fazer a barra do vestido novo e
no dia seguinte, alegando cólicas fortíssimas, saiu mais cedo pra cercá-lo na
saída do serviço. Chovia tanto que quando chegou já estava esbagaçada e com o
cílio postiço só no olho esquerdo, o do direito já tinha se perdido no
aguaceiro. Ele a puxou pra debaixo do guarda-chuva, disse que estava putíssimo
porque o Corinthians tinha perdido e entredentes lhe perguntou onde era seu
ponto de ônibus. Mas a gente podia entrar num cinema, ela convidou, segurando
tremente no seu braço, as lágrimas se confundindo com a chuva. Na Conselheiro
Crispiniano, se não estava enganada, tinha em cartaz um filme muito
interessante, ele não gostaria de esperar a chuva passar num cinema? Nesse momento
ele enfiou o pé até o tornozelo numa poça funda, duas vezes repetiu, essa
filha-da-puta de chuva e empurrou-a para o ônibus estourando de gente e fumaça.
Antes, falou bem dentro do seu ouvido que não o perseguisse mais porque já não
estava aguentando, agradecia a camisa, o chaveirinho, os ovos de Páscoa e a
caixa de lenços mas não queria namorar com ela porque estava namorando com
outra, Me tire da cabeça, pelo amor de Deus, PELO AMOR DE DEUS! Na próxima
esquina, ela desceu do ônibus, tomou condução no outro lado da rua, foi até a
Igreja dos Enforcados, acendeu mais trezes velas e quando chegou em casa pegou
Santo Antônio de gesso, tirou o filhinho dele, escondeu-o na gaveta da cômoda e
avisou que enquanto Antenor não a procurasse não o soltava nem lhe devolvia o
menino. Dormiu banhada em lágrimas, a meia de lã enrolada no pescoço por causa
da dor de garganta, o retratinho de Antenor, três por quatro (que roubou da sua
ficha de sócio do São Paulo Chique), com um galhinho de arruda, debaixo do
travesseiro. No dia do Baile das Hortênsias, comprou um ingresso para
cavalheiro, gratificou o bilheteiro que fazia ponto na Guaianazes pra que
levasse o ingresso na oficina e pediu à dona do salão que lhe fizesse o
penteado de Catherine Deneuve que foi capa do último número de Vidas Secretas. Passou a noite olhando
para a porta de entrada do baile. Na tarde seguinte comprou o disco Ave-Maria dos namorados na liquidação,
escreveu no postal a frase que Lucinha diz a Mário na cena da estação, Te amo hoje mais do que ontem e menos do que
amanhã, assinou P. E. e depois de emprestar dinheiro do Rôni foi deixar na
encruzilhada perto da casa de Alzira o que o Pai Fuzô tinha lhe pedido há duas
semanas pra se alegrar e cumprir os destinos: uma garrafa de champanhe e um
pacote de cigarro Minister. Se ela quisesse um trabalho mais forte, podia
pedir, Alzira ofereceu. Um exemplo? Se cosesse a boca de um sapo, o cara
começaria a secar, secar e só parava o definhamento no dia que a procurasse,
era tiro e queda. Só de pensar em fazer uma ruindade dessas ela caiu em
depressão, imagine, como é que podia desejar uma coisa assim horrível pro homem
que amava tanto? A preta respeitou sua vontade mas lhe recomendou usar alho
virgem na bolsa, na porta do quarto e reservar um dente pra enfiar lá dentro.
Lá dentro?, ela se espantou, e ficou
ouvindo outras simpatias só por ouvir, porque essas eram impossíveis para uma
moça virgem: como ia pegar um pelo das injúrias dele pra enlear com o seu e
enterrar os dois assim enleados em terra de cemitério? No último dia do ano,
numa folga que mal deu pra mastigar um sanduíche, Rôni chamou-a de lado, fez um
agrado em seus cabelos (Mas que macios, meu bem, foi o banho de óleo, foi?) e
depois de lhe tirar da mão a xícara de café contou que Antenor estava de casamento
marcado para os primeiros dias de janeiro. Desmaiou ali mesmo, em cima da
freguesa que estava no secador. Quando chegou em casa, a vizinha portuguesa lhe
fez uma gemada (A menina está que é só osso!) e lhe ensinou um feitiço
infalível, por acaso não tinha um retrato do animal? Pois colasse o retrato
dele num coração de feltro vermelho e quando desse meio-dia tinha que cravar
três vezes a ponta de uma tesoura de aço no peito do ingrato e dizer fulano,
fulano, como se chamava ele, Antenor? Pois, na hora dos pontaços, devia dizer
com toda fé, Antenor, Antenor, Antenor, não vais comer nem dormir nem descansar
enquanto não vieres me falar! Levou ainda um pratinho de doces pra São Cosme e
São Damião, deixou o pratinho no mais florido dos jardins que encontrou pelo
caminho (tarefa dificílima porque os jardins públicos não tinham flores e os
particulares eram fechados com a guarda de cachorros) e foi vê-lo de longe na
saída da oficina. Não pôde vê-lo porque (soube através de Gilvan, um chofer de
praça muito bonzinho, amigo de Antenor) nessa tarde ele se casava com uma
despedida íntima depois do religioso, no São Paulo Chique. Dessa vez não
chorou: foi ao crediário Mappin, comprou um licoreiro, escreveu um cartão
desejando-lhe todas as felicidades do mundo, pediu ao Gilvan que levasse o
presente, escreveu no papel de seda do pacote P. E. bem grande (tinha esquecido
de assinar o cartão) e quando chegou em casa bebeu soda cáustica. Saiu do
hospital cinco quilos mais magra, amparada por Gilvan de um lado e por Rôni do
outro, o táxi de Gilvan cheio de lembrancinhas que o pessoal do salão lhe
mandou. Passou, ela disse a Gilvan num fio de voz. Nem penso mais nele,
acrescentou, mas prestou bem atenção em Rôni quando ele contou que agora aquele
vira-folha era manobrista de um estacionamento da Vila Pompeia, parece que
ficava na rua Tito. Escreveu-lhe um bilhete contando que quase tinha morrido
mas se arrependia do gesto tresloucado que lhe causara uma queimadura no queixo
e outra na perna, que ia se casar com Gilvan que tinha sido muito bom no tempo
em que esteve internada e que a perdoasse por tudo o que aconteceu. Seria
melhor que ela tivesse morrido porque assim parava de encher o saco, Antenor
teria dito quando recebeu o bilhete que picou em mil pedaços, isso diante de um
conhecido do Rôni que espalhou a notícia na festa de São João do São Paulo
Chique. Gilvan, Gilvan, você foi a minha salvação, ela soluçou na noite de
núpcias enquanto fechava os olhos para se lembrar melhor daquela noite em que
apertou o braço de Antenor debaixo do guarda-chuva. Quando engravidou, mandou
um postal com uma vista do Cristo Redentor (ele morava agora em Piracicaba com
a mulher e as gêmeas) comunicando-lhe o quanto estava feliz numa casa modesta
mas limpa, com sua televisão a cores, seu canário e seu cachorrinho chamado
Perereca. Assinou por puro hábito porque logo em seguida riscou a assinatura,
mas levemente, deixando sob tênue rede de risquinhos a Pomba Enamorada e um coração flechado. No dia em que Gilvanzinho fez
três anos, de lenço na boca (estava enjoando por demais nessa segunda gravidez)
escreveu-lhe uma carta desejando-lhe todas as venturas como chofer de uma
empresa de ônibus da linha Piracicaba-São Pedro. Na carta, colou um
amor-perfeito seco. No noivado da sua caçula Maria Aparecida, só por
brincadeira, pediu que uma cigana muito famosa no bairro deitasse as cartas e
lesse seu futuro. A mulher embaralhou as cartas encardidas, espalhou tudo na
mesa e avisou que se ela fosse no próximo domingo à estação rodoviária veria
chegar um homem que iria mudar por completo sua vida, Olha ali, o Rei de Paus
com a Dama de Copas do lado esquerdo. Ele devia chegar num ônibus amarelo e
vermelho, podia ver até como era, os cabelos grisalhos, costeleta. O nome
começava com A, olha aqui o Ás de Espadas com a primeira letra do seu nome. Ela riu seu risinho torto (a falha do dente já preenchida, mas ficou o jeito) e disse
que tudo isso era passado, que já estava ficando velha demais pra pensar nessas
bobagens mas no domingo marcado deixou a neta com a comadre, vestiu o vestido
azul-turquesa das bodas de prata, deu uma espiada no horóscopo do dia (não
podia ser melhor) e foi.
REFERÊNCIA:
TELLES, Lygia Fagundes. Pomba enamorada ou uma
história de amor. In: Meus contos
preferidos. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p. 19 25.
Nenhum comentário:
Postar um comentário