quarta-feira, 30 de novembro de 2022

"UM APÓLOGO", DE MACHADO DE ASSIS

      


      Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha: 

    — Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma coisa neste mundo? 

    — Deixe-me, senhora. 

    — Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça. 

    — Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros. 

    — Mas você é orgulhosa. 

    — Decerto que sou. 

    — Mas por quê? 

    — É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu? 

    — Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu? 

    — Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados… 

    — Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás, obedecendo ao que eu faço e mando… 

    — Também os batedores vão adiante do imperador. 

    — Você é imperador? 

    — Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto… 

    Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha: 

    — Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima… 

    A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile. 

    Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe: 

    — Ora agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá. 

    Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha: — Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico. 

    Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça: — Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!

CRÔNICA: "BRINQUEDOS INCENDIADOS", DE CECÍLIA MEIRELES



Uma noite houve um incêndio num bazar. E no fogo total desapareceram consumidos os seus brinquedos. Nós, crianças, conhecíamos aqueles brinquedos um por um, de tanto mirá-los nos mostruários – uns, pendentes de longos barbantes; outros, apenas entrevistos em suas caixas. Ah! Maravilhosas bonecas louras, de chapéus de seda! Pianos cujos sons cheiravam a metal e verniz! Carneirinhos lanudos, de guizo ao pescoço! Piões zumbidores! – e uns bondes com algumas letras escritas ao contrário, coisa que muito nos seduzia – filhotes que éramos, então, de M. Jordain, fazendo a nossa poesia concreta antes do tempo.

Às vezes, num aniversário, ou pelo Natal, conseguíamos receber de presente alguns bonequinhos de celuloide, modesto cavalinhos de lata, bolas de gude, barquinhos sem possibilidade de navegação... – pois aquelas admiráveis bonecas de seda e filó, aqueles batalhões completos de soldados de chumbo, aquelas casas de madeira com portas e janelas, isso não chegávamos a imaginar sequer para onde iria. Amávamos os brinquedos sem esperança nem inveja, sabendo que jamais chegariam às nossas mãos, possuindo-os apenas em sonho, como se para isso, apenas, tivessem sido feitos.

Assim, o bando que passava, de casa para a escola e da escola para casa, parava longo tempo a contemplar aqueles brinquedos e lia aqueles nítidos preços, com seus cifrões e zeros, sem muita noção do valor – porque nós, crianças, de bolsos vazios, como namorados antigos, éramos só renúncia e amor. Bastava-nos levar na memória aquelas imagens e deixar cravadas nelas, como setas, os nossos olhos.

Ora, uma noite, correu a notícia de que o bazar incendiara. E foi uma espécie de festa fantástica. O fogo ia muito alto, o céu ficava todo rubro, voavam chispas e labaredas pelo bairro todo. As crianças queriam ver o incêndio de perto, não se contentavam com portas e janelas, fugiam para a rua, onde brilhavam bombeiros entre jorros d’água. A elas não interessavam nada peças de pano, cetins, cretones, cobertores, que os adultos lamentavam. Sofriam pelos cavalinhos e bonecas, os trens e palhaços, fechados, sufocados em suas grandes caixas. Brinquedos que jamais teriam possuído, sonhos apenas da infância, amor platônico.

O incêndio, porém, levou tudo. O bazar ficou sendo um fumoso galpão de cinzas.

Felizmente, ninguém tinha morrido – diziam em redor. Como não tinha morrido ninguém?, pensavam as crianças. Tinha morrido o mundo e, dentro dele, os olhos amorosos das crianças, ali deixados.

E começávamos a pressentir que viriam outros incêndios. Em outras idades. De outros brinquedos. Até que um dia também desaparecêssemos sem socorro, nós brinquedos que somos, talvez de anjos distantes!

 

REFERÊNCIA:

 

MEIRELES, Cecília. Escolha seus sonhos. 25. ed. Rio de Janeiro: Record, 1996.

quinta-feira, 10 de novembro de 2022

RESENHA CRÍTICA DO LIVRO "O TERCEIRO ANONIMATO", DE FERREIRA LIMA


LIMA, Valdi Ferreira. O terceiro anonimato. Fortaleza: Editora Radiadora, 2022. 

O terceiro anonimato, de Ferreira Lima, publicado em 2022, apresenta vinte e três poemas de inegável apuro técnico e expressivo. Como é evocado no título, essa obra faz parte de uma trilogia iniciada com o livro Poemas para assobiar de longe (2019) e seguida do livro Apontamentos sobre o cultivo da poesia (2021). 

Os três primeiros poemas apresentados (os mais curtos do livro) são: O anonimato, Escrever e Andarilho. No primeiro, como constatamos pelo título, temos o tema por excelência da obra. No segundo, temos um tom metalinguístico que será constante ao longo do livro. No terceiro, temos um poema direcionado para a subjetividade de uma voz lírica que reflete sobre a busca de si mesmo.

 

O anonimato, a escrita e as reflexões sobre a subjetividade de vozes líricas em contextos existenciais diversos perpassam o eixo poemático desse livro. Exemplar dessa perspectiva são os poemas: Anônimo, analógico e anacrônico, Simétrico (o melhor poema do livro seja do ponto de vista do conteúdo, seja do ponto de vista da forma), Trajeto, Pássaro, Derradeiras de quem vai partir, Um certo voo, O(s) poeta(s), Andarilho ou Adeus, anonimato! e O terceiro anonimato.

 

Instigante, sobretudo, é o poema Sísifo, um dos melhores do livro. Ferreira Lima retoma nele o mito grego do rei que ousa interferir nas ações dos deuses e acaba sendo punido, no Tártaro, com uma pedra que tenta conduzir até o cimo de uma montanha sem conseguir fazê-lo eternamente. O anonimato surge no poema metaforizado na imagem dessa pedra que se torna, também, a punição da voz lírica. Escrever é uma expurgação necessária a quem é poeta, mas pode ser torturante produzir quando se pode ser silenciado pelo anonimato.

 

Em Ulisses, poema que retoma o herói grego de uma das obras fundantes da Literatura Ocidental, temos uma reflexão sobre a escrita, uma perscrutação da subjetividade da voz lírica e explanações sobre a temática amorosa. O amor, a propósito, é retomado em vários poemas: Mil desculpas, Metas, Dotes para uma amada em segredo, Confissões de uma carta anunciada, Encontro, Cotidiano, Não quero tudo e Pra sempre.

 

Percebemos, após a leitura desse livro, que além do anonimato e do amor, reflexões sobre a escrita poética (com um tom metalinguístico evidente) também se caracterizam como recorrentes na obra do autor. Enquanto reflete sobre a escrita do poema, há predisposição do escritor a um atento trabalho com a linguagem. Não há rebuscamento linguístico, tampouco excessos imagéticos construídos a partir de metaforizações simplistas, em seus poemas. Quando recorre a figuras de linguagem (hipérbole, metáfora, símile, antítese, anacoluto, anáfora, aliteração etc.), ele está comprometido com a construção de imagens criativas e de perceptível lirismo.

 

No epílogo da obra, Nirton Venâncio comenta (apud LIMA, 2022, p. 110): “E onde estava Valdi Ferreira Lima que eu não via, que não víamos, que não líamos?” Reforço a pergunta, pois ao ler essa obra tive a sensação de estar diante de um dos grandes poetas do Ceará e, até pouco tempo, eu o desconhecia. É urgente, portanto, conhecê-lo. Há muito a descobrir na poesia que ele nos apresenta sem preciosismos e sem imbricadas soluções vocabulares.


Ressalvo que O terceiro anonimato encerra uma trilogia de poesias de Ferreira Lima, este poeta que descobri recentemente e é, sem dúvidas, um notável escritor. A poesia dele merece atenção, de modo que jamais poderá ser obscurecida pelo anonimato. O talento do autor e a beleza de sua obra precisam chegar ao mundo. Precisamos de poesia para ampliar nossas existências cotidianas. Leiamos, urgentemente, a poesia de Ferreira Lima.

 

Valdi Ferreira Lima nasceu em Serra da Donana, município de Jucás–CE, mas mora há anos em Sobral–CE. Vencedor de diversos prêmios, ele publicou: O guardador de raízes (2018), Poemas para assobiar de longe (2019) e Apontamentos sobre o cultivo da poesia (2021).


sexta-feira, 30 de setembro de 2022

CARTA PARA A VIDA APESAR DO CAOS DO MUNDO

Não sabemos totalmente onde localizar a fronteira entre o que é certo e o que é errado. Existem muitas implicações nessa dualidade, porque o que é certo para mim pode ser errado para o outro. Talvez seja esse, por excelência, o desafio de nossas existências: refletir sobre o melhor caminho para um possível equilíbrio e descobrir forças para agir conforme uma ética, um senso de justiça, um construto de respeito. 

Somos dois lados de uma página em branco que pode ser construída por quem melhor acolhe a capacidade de articular palavras na tentativa de contar uma história. Chimamanda Ngozi Adichie ensina que há um perigo inerente à legitimação de uma história única. Sempre existem dois ou mais lados quando uma narrativa é apresentada.

Tudo o que sabemos (do muito que desconhecemos) é que ainda é possível respirar apesar da dor e da angústia reveladas no cotidiano. Respirar ainda é possível?

Cada caminho percorrido e cada decisão tomada, tenho por certo, é como o caos afogado nas linhas das mãos sem qualquer resquício de correnteza. 

Assim é a vida: e tudo o mais é encontrar forças para prosseguir na jornada que pode ser curta ou pode ser longa, mas está repleta de paisagens verdejantes, apesar do cinza. 

Émerson Cardoso

11/10/2022




quarta-feira, 21 de setembro de 2022

CARTA PARA QUEM ESCREVE UMA TESE DE DOUTORADO


Caros irmãos e irmãs, 

Antes de iniciarmos a escrita da tese, que nos deixa em tensão constante, passamos por um processo seletivo excludente e massacrante, concorda? Quando saiu o resultado, devo dizer, a alegria foi sem tamanho. A sensação de vitória não nos cabia no peito, lembra? 

Depois, vêm as disciplinas a cumprir, com seus respectivos trabalhos de conclusão. Em seguida, temos que retomar nossos projetos e reorganizá-los para iniciar o trabalho de pesquisa. Tudo em atendimento a burocracias e a cumprimento de prazos. Faz parte do métier, sei disso, mas não é tão simples quanto parece. 

Não sei como aconteceu com vocês, mas, no meu caso, eu estudei em João Pessoa-PB, cidade muito distante da minha, de modo que ir para as aulas, semanalmente, foi uma experiência entre alegre e angustiante: 1) alegre porque ir para as aulas era a certeza de que eu havia entrado no Programa de Pós-Graduação tão desejado e a oportunidade de estudar com professores e professoras, sem exceção, incríveis; 2) angustiante porque voltar para casa era ter que ir da rodoviária, depois de quase nove horas de viagem, para a escola em que trabalho. Gosto muito de ser professor, mas na ocasião, quando eu esperava o afastamento do Estado (que me veio seis meses depois e, por questões burocráticas, durou apenas um ano), a sala de aula me consumia.

Agora, que estou na escrita da tese, penso muito no seguinte: que tal transformar esse processo que pode ser angustiante em algo suportável? 

Para começar, devo dizer que escrever uma tese é um processo extremamente solitário. Ele exige solidão, sem dúvidas, porque só se desenvolve quando se tem, minimamente, um espaço adequado para a leitura e a escrita, quando se tem ambiente silencioso e tranquilo com a menor quantidade possível de interferências etc. Que tarefa difícil encontrar esse espaço para muitos de nós!

Quando consigo esse espaço, coloco cânticos gregorianos, sons da natureza ou de harpas. Os livros de que preciso coloco-os todos muito próximos de mim. Escrevo seguindo um roteiro mental diariamente construído. Como faço mapeamento das obras literárias que analiso, também fichamentos das obras teórico-críticas lidas ao longo da pesquisa, isso me ajuda significativamente. Devo dizer, todavia, que não deixa de ser desafiador cumprir esse ritual!

Nesse processo que exige organização e momentos solitários, Deus sabe, corremos o risco de vivenciar dores físicas e psíquicas. Psíquicas, sobretudo, pois sentimos pressões de todos os lados. Os familiares raramente consideram nossa atividade como um trabalho relevante. Os amigos raramente conseguem a empatia que nos representa acolhida para lidar com a necessidade de distanciamento, por vezes, tão sofrida. Quem tem relacionamentos afetivos pode sofrer com cobranças de atenção quando, em verdade, o que queremos é empatia e apoio. Os ambientes de trabalho (caso estejamos vinculados a algum ambiente de trabalho) não têm a verdadeira dimensão do sacrifício que é estudar, produzir uma tese e sobreviver às exigências inerentes às atividades a serem realizadas. Os programas (não são todos) criam seminários acadêmicos e relatórios a serem entregues periodicamente com o objetivo de, por vezes, burocratizar o que já é burocratizante ao extremo. Faz parte do métier, claro, mas ainda é desafiador!

Nesse contexto todo, ainda existe a relação com o orientador, que pode ser maravilhosa ou desalentadora (eu tive a sorte de ter o melhor orientador do mundo, tendo em vista que ele tanto orienta trabalhos acadêmicos com dedicação e vasto conhecimento, quanto ajuda na compreensão de conteúdos que podem ser complexos, sempre com respeito e gentileza). Há casos, porém, em que as pessoas não têm essa mesma sorte. O sofrimento, quando isso acontece, pode ser triplicado. Torço para que vocês estejam bem nesse quesito! 

Quanto ao processo de escrita da tese propriamente dito, invade-nos, frequentemente, o MEDO. Temos medo de não dar conta do trabalho, de não cumprir os prazos, de não conseguir realizar um trabalho digno da leitura do orientador (no meu caso, como meu orientador é, realmente, maravilhoso, eu fico com o receio de decepcioná-lo), de falhar, de não alcançar os objetivos propostos no projeto etc. São muitos os medos - e isso amplia nossa angústia e ansiedade. Muitos de nós (eu que o diga) precisamos de psiquiatras e psicólogos para sobreviver a esse período. Em nosso caso, principalmente, somos sobreviventes de uma pandemia e estamos em contexto de desvalorização completa das pesquisas científicas em nosso país. A coisa não anda das mais tranquilas!  

Assim, entre angústias e medos, por vezes, ficamos paralisados. Então, não vamos deixar que isso aconteça. Vamos organizar nossos horários de escrita de modo a ter, também, um momento de distanciamento. Lazer, atividade física e distrações podem nos ajudar. Não vamos tomar café, por Deus, porque ele pode aumentar nossa ansiedade (se bem que algumas pessoas precisam do café para se manterem acordadas). Eu, se tomar café, não escrevo mais nada.

Além disso, vamos usar protetor solar para ficarmos diante do computador. Tive problemas de vermelhidão na pele e o protetor me ajudou. Seria interessante usarmos lubrificantes oculares para amenizarmos o ressecamento dos olhos. Vamos tomar muita água, viu? Também chás e sucos. Devemos acalmar a cabeça com músicas agradáveis. Assistir a filmes leves também pode ser uma boa ideia. Eu gosto de comédias. Vamos nos levantar, de vez em quando, e fazer alongamentos? Isso minimizará nossos problemas de circulação. 

Nesse momento em que o tempo corre indiferente ao nosso desespero, vamos acreditar em dias melhores e criar o hábito de escrever sem desanimar. Pausas para distanciamento, sim, mas dedicação também, pois escrever é criar um hábito, como tudo na vida, e exige algum sacrifício. Criado o hábito, o sofrimento tende a amenizar, porque o hábito dá a sensação de dever cumprido.

Depois, o que mais queremos é nos superar, construir um espaço de aprendizagens e ser capazes de olhar para esse momento de "sofrimento" e dizer: foi um tempo difícil, sim, mas vencemos. Vencemos!

Pode parecer clichê, tudo o que escrevi, porém: vai passar essa fase mais difícil, viu? Em breve, conseguiremos aquilo a que tanto nos dedicamos. E todo esse processo doloroso terá valido a pena!

Muita força, coragem e dedicação! Estamos na luta por dias melhores! Estudar nesse país é resistência, então resistamos! 

Atenciosamente, 

Émerson Cardoso






terça-feira, 6 de setembro de 2022

CARTA DE ANIVERSÁRIO PARA PAULO HENRIQUE


Juazeiro do Norte - CE, 06 de setembro de 2022


Caro sobrinho Paulo Henrique, 


Resolvi dar de presente, neste seu aniversário de dezoito anos, o que de mais importante eu poderia oferecê-lo: minhas palavras escritas nesta que se pretende uma carta pessoal não muito extensa, porque você anda preguiçoso demais e tem fugido de leituras. 

Para começar, lembro-me de que fiquei em choque quando sua mãe (minha irmã muito querida) disse que estava grávida. Fiquei em choque porque, na ocasião, a idade dela era a mesma que você tem hoje. Seu pai e sua mãe, aliás, tinham a mesma idade, isto é, eram jovens demais, na minha concepção, para colocarem uma criança no mundo. Eles moravam em bairro distante, de modo que não tínhamos tanta proximidade na ocasião da boa nova propagada sobre os telhados. 

Quando você nasceu, em um dia de segunda-feira, véspera do feriado no qual se comemora a "independência" do Brasil, eu experimentei sensações contraditórias: se, por um lado, fiquei alegre, porque o parto aconteceu dentro da normalidade (você e sua mãe estavam bem), por outro, fiquei triste porque eu analisava, já naquela época, que colocar uma criança no mundo era um problema filosófico sem precedentes. Sim, porque sua mãe e eu tivemos uma infância e adolescência difíceis demais. Eu temia, portanto, que isso também viesse a acontecer com você. A vida nem sempre é uma festa repleta de risos, de doces e de cores agradáveis em torno de uma mesa que resplandece sob efeito de flashes. A vida, em verdade, tem a mania de ser em preto e branco e, por vezes, festejar é um luxo de poucos. 

Você nasceu no ano bissexto de 2004. Neste ano, tínhamos perdido, em abril, nossa bisavó materna: Dona Maria Raquel. Estávamos sobrevivendo ao luto. Para mim, foi como se você fosse amenizar o vazio deixado com a partida dela. 

O dia do seu nascimento é uma data que tem desde a oficialização do Hino Nacional Brasileiro, de autoria de Joaquim Osório Duque Estrada, em 1922, até o aniversário de uma figura como Di Cavalcante (pintor brasileiro). Você nasceu sob o Signo de Virgem, somos do Elemento Terra, por isso nos damos tão bem?

Você nasceu rodeado de nomes de santos, afinal é juazeirense: a maternidade se chama São Lucas (sua mãe e eu nascemos nela também), localizada entre a Rua São Benedito, a Rua Santa Tereza, a Rua São Francisco e a Rua da Conceição. Ela fica ao lado da Igreja de São Miguel. A Igreja Católica, nesse dia,  celebra o dia de São Liberato de Loro. 

Por falar em nome, você iria se chamar Erick, mas seu pai optou por utilizar dois nomes: Paulo (nome de Saulo após sua conversão) e Henrique (nome vinculado à realeza). Ao pesquisar mais pormenorizadamente, Paulo Henrique significaria o pequeno rei da casa. Faz sentido, então, seu nome. Para sua avó, sobretudo, você é, desde sempre, o pequeno rei da casa e do coração dela.  

Na sua primeira infância, você viveu entre as cidades de Juazeiro do Norte e de Crato. No Juazeiro, conviveu com seus familiares paternos (a bisavó e o avô, infelizmente, já se foram) e, no Crato, conviveu com sua avó materna (também as duas tias mais novas). Com sua avó, você viveu longas temporadas no sítio em que ela morava. Ela comentou que sua infância foi tumultuada, a ponto de você quase ter pisado em uma cobra coral, de ter brincadeiras periculosas como perseguir sapos, de quase ter sido fulminado por um raio, dentre outras coisas. 

Ao retornar para Juazeiro, você começou a estudar efetivamente. Sempre me chamou atenção o fato de que você gostava demais de datas comemorativas, de festas, de eventos da escola. Parece uma predisposição para celebrar, para divertir-se, para coisas mais aproximadas do riso do que das melancolias. Suas escolas, desde o primeiro momento, foram particulares. Sua mãe sempre trabalhou para dar a você o que ela considerava a melhor Educação. 

Por falar em Educação, lembra que eu fui o primeiro a dar um livro de presente a você? Lembra que eu o fiz ler dez livros infantis nas férias de 2013? Lembra que eu o levei diversas vezes para peças teatrais nos sábados do CCBNB-Cariri? A propósito, um dos mais lindos espetáculos que já vi, intitulado Felinda, apresentado na Praça Padre Cícero, eu estava ao seu lado, recorda? 

Vimos muitos filmes juntos, também séries, vídeos etc. Gosto de assistir ao meu desenho animado favorito com você: Os Cavaleiros do Zodíaco. Também sua companhia é a melhor para assistir filmes de comédia, de aventura e de animação. Nada pode ser melhor do que fazer pipoca, produzir algum suco e assistir, até altas horas, aos filmes de nossa predileção - incrível como temos gosto parecido. 

Sabia que um dos melhores livros que eu li foi em sua companhia? Lemos O Hobbit juntos, anotando trechos, fazendo as vozes das personagens, rindo ou nos emocionando. Sabia que esse foi um dos melhores momentos de minha vida? No final do livro, eu caí no choro. Você deve se recordar disso, porque não deve ter me visto chorar muitas vezes. Nem sei ao certo o porquê do choro: se foi porque o livro chegou ao fim, se foi porque nossa leitura divertida tinha acabado ou se porque você realizou, naquele momento, o meu sonho de ler com meu filho (que não tive e não terei) uma obra literária que nos transformasse de algum modo. 

Depois do livro, fizemos uma maratona para assistir O Hobbit: você, seu irmão Paulo Victor e eu. Essa foi uma das noites mais felizes. Havia pipoca para todo lado e a alegria de poder compartilhar a experiência de ler uma obra e ver sua adaptação para o cinema. No final do ano, fizemos o chá d'O Hobbit, com direito a RPG, biscoito élfico e muita diversão. Esse foi outro momento inesquecível.

Quando preparávamos a festa, fazendo o biscoito élfico, lembrei daquele dia em que, altas horas, fui fazer panquecas e terminei fazendo outra receita. Sim, porque errei a receita e como saldo tivemos muita bagunça e riso. Lembra? Outro dia rimos muito em torno de minhas trapalhadas no preparo de um molho de beterraba. Aí estava em pauta meu embate muito comum com sua avó, que você costuma achar muito engraçado.  

Você é uma excelente companhia para caminhadas. Também é muito divertido para momentos de pizza, açaí, sorvete e outras guloseimas que são uma tentação difícil de resistir. Você é engraçado, porque tem um humor inteligente. Tem um humor sarcástico. Acho que aprendemos com Sheldon e Leonard - da minha série preferida The Big Bang: Theory. Por falar em série, estamos unidos quando o assunto é  Chaves e Chapolin - somos fãs incondicionais.

Ainda não disse, mas uma das coisas que mais gosto é de esperá-lo chegar da escola para almoçarmos juntos. Eu pergunto coisas da escola (quando você não falta, claro, porque anda faltando demais), você pergunta coisas do meu cotidiano, aí brigamos, rimos, conversamos, trocamos ideias, assistimos a algum vídeo etc. 

Neste seu aniversário, Paulo Henrique, vou dizer o que me disse um primo quando eu tinha a mesma idade que você: "Homem é aquele que sabe entrar e sabe sair de qualquer lugar". O primo me disse isso quando me viu todo fardado, em decorrência do serviço militar, e falou algo que o pai dele havia dito em sua adolescência: "Homem é aquele que sabe entrar e sabe sair de qualquer lugar". Eu, portanto, jogo essa frase para você, mas com alguns complementos: ser homem é ser você mesmo, é ser capaz de humanidades redescobertas, é ser dedicado a algum projeto que dê sentido à sua vida, é ser passível de erro, mas apto a refletir sobre esse erro e melhorar, é ser inteligente o suficiente para compreender que a vida é de quem se movimenta, é ser forte para os momentos de dor e de sofrimento, é ser corajoso para demonstrar suas fragilidades quando isso for necessário, é ser determinado a construir conhecimentos e saber compartilhá-los, é ter a humildade de admitir os erros, é ser honesto e lutar contra o que corrompe, é ser enfrentamento quando estiver em pauta defender sua dignidade, é ser coerente com o que você compreende ser sua verdade, é existir em plenitude e não deixar que ninguém impeça você de crescer e tornar-se uma pessoa melhor. 

Sabe o melhor presente que você poderia receber nesse dia festivo? O elogio que uma professora me ofertou, certa vez, durante o Ensino Médio (você e eu estudamos na mesma escola): "Você é um grande ser humano!"

A professora me deixou pensando nessa frase até hoje. Então, atiro-a para você também: "Você é um grande ser humano!" Por que ela disse isso? O que significa ser um grande ser humano? Sugiro que passe a vida inteira pensando nisso e, mais do que pensando, tentando ser esse grande ser humano. 

Para concluir, desejo um feliz aniversário. Você é o filho que eu gostaria de ter. Torço sempre para você se tornar algo verdadeiramente significativo para este mundo complexo no qual você foi atirado há exatos dezoito anos. 

Parabéns!

Com um abraço do seu Timerson.



 






terça-feira, 30 de agosto de 2022

FRATERNIDADE NA JAULA



Tempero de dor

e sal na ferida?

Mas passará logo...

 

Cratera na estrada


e pedra de ponta?

 

Mas passará logo...

 

Velório do sono


em cinzas de faca?

 

Mas passará logo...

 

Janela de sangue


em grito engolido?

 

Mas passará logo.

 


Émerson Cardoso

26/10/2020

 

NOTAS SOBRE O PROFESSOR GILMAR DE CARVALHO

Foto Divulgação

A primeira vez que vi o Professor Gilmar de Carvalho foi no Memorial Padre Cícero. Chamou minha atenção a capacidade dele de ser grandioso em suas palavras e, ao mesmo tempo, simples. Na ocasião, alguém comentou que ele era um dos maiores pesquisadores das tradições populares e eu constatei isso quando, ainda na graduação em Letras, li capítulos de Madeira Matriz – Cultura e Memória (1999) e o livro Patativa do Assaré (2000).

Depois, o reencontrei quando passei uma temporada em Fortaleza, entre junho e julho de 2010. Ele estava no Museu do Ceará. Foi a primeira vez que eu falei pessoalmente com ele. Foi a primeira vez que eu entrei no Museu do Ceará.  

Lembro-me de que ele estava um tanto apressado, mas meu primo o conhecia e apresentou-nos. Mesmo apressado, ele me deu atenção. Comentei que estava escrevendo uma espécie de Romanceiro que contava em poesia a História de Juazeiro do Norte, minha cidade, que decidi escrever após uma recomendação de Ariano Suassuna (a quem conheci e entrevistei em dezembro de 2009).

Ele me disse, na ocasião, que eu escrevesse esse Romanceiro, sim, e que poderia contar com ele para uma leitura e até para um prefácio. Fiquei irradiante, porque era uma deferência receber esse incentivo de uma personalidade que nós, estudantes e escritores do Cariri, já conhecíamos pela ampla pesquisa acadêmica realizada por ele em torno da Cultura Popular.  

Por timidez, não enviei o texto. Lamento até hoje por esse gesto de insegurança literária. Resolvi publicá-lo, para meu grande arrependimento, em 2014. Ele ainda estava incipiente. Se eu o tivesse enviado para apreciação do Professor Gilmar de Carvalho, ele talvez tivesse me dado as orientações necessárias para torná-lo um livro apresentável. Uma pena ter perdido essa oportunidade.

A terceira vez que nos encontramos foi no Passeio Público. Eu almoçava quando o vi chegar acompanhado de um amigo. Pensei em cumprimentá-lo, mas tive receio. Não queria incomodá-lo naquele horário de almoço. Se eu fosse falar com ele, meu gesto poderia ser interpretado como indiscrição. Lembro-me de que, na ocasião, olhei para ele várias vezes, mas não quis, por timidez, falar com ele. Quando eu saí, no entanto, fui até ele e o cumprimentei. Ele foi muito atencioso. Conversamos um pouco e fui embora. Nunca mais o vi pessoalmente.

Quem me apresentou o Professor Gilmar de Carvalho, em verdade, seja pelos textos que produziu, seja pelos depoimentos apresentados, foi João Pedro do Juazeiro. Este cordelista e xilógrafo, cuja obra fala por si em valor e criatividade, apresentou o melhor dessa figura emblemática que eu passei a admirar mais profundamente.

Para João Pedro do Juazeiro, o Professor Gilmar de Carvalho é mentor, padrinho artístico e mestre. Para ele, não seria possível pensar a arte que produz sem compreendê-la a partir da apreciação e incentivo oferecidos por esse grande entusiasta das artes do povo. Lendo os textos de João Pedro do Juazeiro (que escreveu sobre seu mestre cordéis, memórias, relatos de experiência etc.), eu acessei a alma desse pesquisador, jornalista, professor, escritor cuja alma transborda em riqueza de caráter e em generosidade.

Hoje, 30 de agosto de 2022, o Professor Gilmar de Carvalho faria aniversário. É triste pensar que ele, um baluarte da Cultura, da Educação e da Ciência desse país, foi embora. Temos por certo que, em sua ausência, permanecerá seu trabalho e seu exemplo. O Ceará, o Nordeste e o Brasil têm, nessa figura de relevo, um guardião da memória e, tenho por certo, a sua ausência física não o impedirá de fazer por nós o que ele sempre fez: abrir portas e acender luzes para quem a ele estende a mão.

Parabéns, Professor Gilmar de Carvalho!

 Émerson Cardoso

30. 08. 2022

segunda-feira, 15 de agosto de 2022

COMO RESPONDER À ALTURA (ou: quem tem medo de neuróticos que têm Marte em Escorpião?)

 


Já aconteceu de você ficar muito alegre com algo, a ponto de externar excessivas euforias, e isso incomodar alguém? Comigo já aconteceu. A pessoa, no auge de seu desconforto, atirou sobre mim o seguinte ditado popular: “Pobre nunca come e, quando come, se lambuza!”

 

Quem me visse naquele momento perceberia meu rosto caindo em nublação. O sol deveria ter mais força do que uma nuvem amarga, mas nem sempre isso acontece. A vida é repleta de nuvens entre permanentes ou passageiras que se comprazem em espalhar obscuridades porque não suportam luzes.

 

Que horror!

 

Hoje, se alguém atirasse contra minha alegria esse maldito ditado popular, eu teria resposta daquelas, bem desaforadas, aí eu queria ver uma nublaçãozinha chinfrim me apagar. Você ficou com curiosidade sobre o que eu diria para me defender?

 

A uma criatura amarga que desejasse botar gosto ruim em minha alegria, eu diria o seguinte:

 

Resposta 01 – Quem ouve você falando assim pode até pensar que você é, foi ou será rico um dia na vida. Agora, como percebi que você gosta da sabedoria popular, devo dizer que: “Quem nasce para burro não pode ser cangalha”. Tem mais: há uma coisa que eu gostaria de saber: quem foi o informante charlatão que disse a você que me interessa ouvir o som de sua voz irritante e insossa?

 

Resposta 02 – Gente, olha a sabedoria popular dessa pessoa como está aflorada! O que foi? Tomou café adoçado com amargura, ou constatou que sua vida insignificante não tem graça e por isso quis tirar minha alegria?

 

Resposta 03 – O que foi? Só porque você tem uma existência vazia e sem graça não suporta ver uma pessoa de bem com a vida? Procura tratamento, cruz pesada! Se não der certo com psicólogos, procura um exorcista, viu?

 

Resposta 04 – Sim, pessoa iludida da nação, pobre se lambuza, sim, faz festa, faz o que quiser, ainda mais quando é uma pessoa tão leve que atrai alegrias para si e para os outros. Posso fazer um tutorial de como ser alegre para você, viu? Isso se um dia você decidir deixar de ser chata e estraga-prazeres.

 

Resposta 05 – Sério mesmo que você (pessoa pobre em nível cinco) se sente no direito de vomitar uma frase dessas contra mim? Quando você não for mais pobre, ou se tornar uma pessoa menos invejosa e infeliz, aí conversamos, viu? Vai pelo sol, hein, quem sabe um dia ele derrete essa nuvem carregada que você tem na cabeça!

 

Coloquei apenas cinco respostas quando, em verdade, teria muitas outras. Quando estou chateado com algo, me torno irônico. Isso massacra algumas pessoas. Um amigo me disse, outro dia, que minhas ironias, ou meu rebuscamento na hora de brigar, não parecem muito eficazes. Nem sempre meus arqui-inimigos (que não tenho) entendem o desaforo que penso atirar contra eles. Talvez esse amigo tenha razão.

 

Um meio que utilizo há séculos, quando não gosto de algo ou de alguém, é demonstrar meu descontentamento com afastamentos, ou mesmo ignorando a presença. Talvez seja um bom caminho. O bom mesmo, em verdade, é jogar contra os vilões um desaforo bem articulado e sair de perto, plenamente, depois de ter dito o que se queria dizer. Mais interessante será, tenho por certo, perceber que o desafeto ficou para trás com cara de mal-estar na tentativa vã de entender o que foi dito.

 

Ah! Quem quiser entender desaforo bem construído que estude.  

 

Émerson Cardoso

15.08.2022

sábado, 23 de julho de 2022

A CONTEMPLAÇÃO DAS COISAS DIVINAS



Na crônica Um dia só para chorar (que consta no livro Anjos, buracos, pedras e moinhos), de Betania Moura, ela trata de uma mulher que decidiu não ir ao trabalho para ter um dia só para dedicar-se à arte de chorar. Eu que não choro há séculos, porque se o faço me sinto vulnerável, tive também o meu dia.

A propósito, no "Provocações", Antônio Abujamra costumava perguntar a alguns entrevistados: "Você chora?" A pergunta enveredava, por vezes, para outra questão: a contemplação do belo comove a ponto de levá-lo às lágrimas?

Eu responderia a Abujamra, se ele me perguntasse, que sim. Sim, porque diante das obras "Os retirantes" e "Criança morta", de Portinari, me veio um choro comovido sem explicação e difícil de refrear.

Imagens vistas e revistas nos livros didáticos estavam diante de mim. Líricas e profundas, elas estavam de tal modo aproximadas que todo o choro guardado (seja por perdas, mortes, frustrações e outras dores) transbordou. 

Tentei não chorar tanto, afinal estava acompanhado. Acho que não derramaria lágrimas perto de pessoas conhecidas, então aproveitei um momento no qual fiquei sozinho. Falando assim até parece que meu choro foi algo planejado, mas não foi.

O ato de chorar me foi impregnado como vulnerabilidade. Procurei a vida inteira conter a emoção diante de tudo. Não gostaria de ser assim, afinal a vida também dispõe de seus momentos de sofreguidão, passionalidade e afeto transbordantes. Por que não? 

Então, sem conseguir segurar o gesto, chorei. Sim, o fiz por amor ao belo presente nas duas obras potentes de Portinari. Pelas tonalidades, pelo expressionismo latente, por ver a temática da seca irromper dessas obras, fui às lágrimas. Com o desejo de ocultar, com medo de que as pessoas vissem, o choro me veio inevitável. Sentimento pode ser represa que explode, como ficou perceptível na ocasião, de forma inevitável. Isso, principalmente, diante do belo. 

Bem, depois de Portinari me emocionar profundamente, precisei me recompor para ver outras obras. Estavam lá pinturas de Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Lasar Segal, Van Gogh, Goya, Monet, Rafael, dentre outros grandes nomes da pintura. Em êxtase as vislumbrei. Perplexo as acolhi. Se não caí diante delas, foi porque força sequer tive para a queda. 

Por fim, ao sair do MASP, onde essas obras estão resguardadas, agradeci à existência pelo privilégio de poder ver a arte no que há de forte e belo. Saí renovado, afinal deixei lá todo o peso de chumbo que só o choro consegue arrefecer. Viver tem disso.

Émerson Cardoso

14.07.2022






VIAGEM PARA SÃO PAULO (ou: Pequeno Diário de Bordo)



RELATO DE VOO EM TEMPO REAL

Depois de um frio no estômago muito semelhante ao frio que sentimos naquele brinquedo inventado pelo demo, a que chamam de "Barca", e que está muito presente em parques, chegamos aos ares. 

Esta não foi a minha primeira experiência com aviões. Fui para Recife há algum tempo e dispus meu corpo e alma para essa viagem mais para a loucura do que para a sobriedade. Quem pode considerar lucidez o ato de estar no ar, e por vontade e gosto?

Agora, se me perguntassem o que estou sentindo (escrevo este texto vendo nuvens aos borbotões) durante esse trajeto que a invenção humana me proporcionou, sem que eu pedisse ou estimulasse, porque tenho juízo, eu diria: que absurdo poder voar com máquina tão fácil de cair.

Falar em queda de avião quando se está dentro de um é para os fortes. Sim, porque nada assusta mais um cristão sentado com cintos afivelados (enquanto a vida passa entregue a um piloto e  cortando nuvens em velocidade que não saberia dimensionar) do que a possibilidade de ouvir: "Senhores passageiros, pedimos que façam suas orações nas mais diversas crenças, porque o avião vai se esburrachar no chão!"

Estou na poltrona 14 (meu número de sorte). Deveriam estar ao meu lado duas pessoas. Há um rapaz de olhos claros e sapatos marrons, muito do silencioso e disposto a, na janela, ver vídeos da internet  (suponho, pois não sou de bisbilhotar, embora o tenha visto assistir cenas de "Pantanal", tik tok, vídeos do Instagram, facebook  etc). No meio, há o que poderia ter sido e não foi (deve ter desistido, suponho, aliás desiste de avião quem tem bom-senso). Eu estou na poltrona do corredor. De quando em vez, olho de lado, para ver o nada no qual estamos depositados, mas logo me acovardo e volto para meu texto.

Vou confessar um coisa. Acredita que ao entrar no avião implorei por uma água, que me foi dada minutos eternos depois, e coloquei nela (não me julgue!) umas simpáticas gotas de "Rivotril" 2,5 ml. Claro que fiz de tudo para disfarçar, mas quanto mais se esconde algo, mais isso tende a se explicitar. Viram meu copo e o frasco de remédio na minha mão. Não posso fazer nada! O psiquiatra sugeriu que eu o utilizasse  em caso de crise ansiosa. Não vejo ocasião mais propícia para tomá-lo. A primeira gota, tomei "para ter o argumento" (vide "Resposta ao tempo" e entenderá a referência). A segunda, tomei por covardia (achei melhor tomar para não ter crise de falta de ar e dar vexame). A terceira, tomei para conseguir manter os chakras alinhados, porque esses bandidos foram desalinhados ainda no Aeroporto de Juazeiro do Norte, quando uma funcionária da Gol agiu de forma descortês e com pressão psicológica causando desconforto para mim e para outra senhora (ela ouviu algumas respostas coerentes, amáveis e polidas, mas não isentas do meu Marte em Escorpião: uma ferroada só e o problema foi resolvido da melhor forma). Sou tímido e calmo, porém indisposto a faltas de educação. Tive que agir. A quarta, tomei porque a natureza pediu (quando não podemos alterar o rumo das coisas, a existência é assim, recorremos a subterfúgios). A quinta, e última gota (porque com menos do que isso eu não me responsabilizaria por meus atos tresloucados dentro desse presente de grego de asas), tomei porque viver exige coragem, e a minha coragem tem sido roubada de mim desde a infância-angustiante-infância. Assim, o jeito foi arrefecer no orgulho e tomá-lo com resignação. Em verdade, pouco importa o recurso a que acorremos se isso nos leva a algo que nos faria aproveitar melhor as experiências.  Se isso não atenta contra a dignidade de ninguém, nem contra a minha, por que não?

Agora, lá vem um rapaz e uma moça mais brancos do que a asa do avião. Estou em dúvida sobre o que tomarei. Queria mesmo era chá calmante (camomila, cidreira, erva doce, alecrim etc.). Na ausência de chá, porque esse povo não sabe o que é o bom da vida, resignado aceitarei um suco (eles servem sucos industrializados, ó céus!).

Parei o texto para esperá-los. Desisti de esperar, uma vez que nessa espera terminei olhando a janela à direita. Deus do céu! Azul e branco por todos os lados, igual ao manto de Nossa Senhora das Dores, padroeira de Juazeiro do Norte. Confesso que me veio a vontade de pedir para ela amenizar o trauma. 

Chegou o suco. Acabei de tomar o suco. O salgadinho guardei na mochila. Nunca se sabe da urgência de alimento que ele aplacará futuramente. Como tomei o suco muito rápido (a boca seca de nervosismo), a moça, simpática, me ofereceu mais um copo. Não aceitei. Suco industrializado me causa sensação de culpa. Queria mesmo era uns dez salgadinhos iguais aos que ela distribuiu (taurinos tendem à gula, portanto não me condene).

Voltei ao texto para pensar um pouco sobre o caos de estar nos ares. Sim, por Deus, estou sem qualquer chão que me dê ao menos a falsa segurança de ter para onde correr. Sensação de vazio aos pés, de não ter por quem gritar, de estar definitivamente condenado ao desamparo e ao desabrigo. Bem, isso não me é novidade. Apenas acrescentei a essas sensações amplamente vivenciadas um fato escalafobético: não há terra abaixo ou dos lados. Para chegar a ela, teria que aterrissar ou cair. A segunda opção, sinceramente, não é das mais amigáveis.

Cruzei as pernas e (que horror!) derrubei o copo com resquícios de suco. Detesto coisa doce nas mãos, mas não há água ao alcance. O jeito é me resignar. O suco ousou sujar minha mochila tão bem lavada. Que tragédia não grega em pleno voo, Senhor! O pior foi o olhar condescedente do rapaz ao lado, o que tem olhos claros e sapatos marrons, que além de me olhar na bagunça de derramar o suco, não aceitou o lanche (para me humilhar, por certo, eu que não resisti ao simplório alimento servido e o aceitei com veemência). O pior foi quando guardei o salgadinho na mochila e nossos olhos se encontraram. Eu o olhei para ver se ele estava olhando o que eu iria fazer. Sim, ele estava olhando e eu o olhei no exato momento em que ele estava me olhando. Encontro de olhares. Vergonha barulhenta de um, julgamento silencioso do outro.  

Lá vem a dupla de loiros novamente. Eles recolheram copos e guarnadapos. Aproveitei para olhar à direita e vi terra. Ainda distante dos meus pés saudosistas, mas a vislumbrei, sim, com frio no estômago e vontade de fechar os olhos.

O rapaz ao lado se remexeu umas três vezes, igual galinha quando quer pôr adjutórios (é assim que eu chamo "ovo"). Ri sozinho dentro da máscara. Máscaras são salvações pluridimensionais. Se ele soubesse do teor desse texto, hein. Eu estaria ferrado.

À frente, esqueci de dizer, há um rapaz que conheço de vista. Ele anda com os cabelos super assanhados e de óculos escuros. Ele tem sido super amigável com a moça ao lado dele, que tem uma criança que odeia silêncio e está no mundo dos jogos virtuais (com barulhos e mais barulhos) desde que o bendito avião achou por bem virar tuiuiú (quem assiste "Pantanal" entenderá a referência).

Comecei a pensar numa coisa: parece que não tenho mais o que escrever. Mal pensei nisso e o avião começou com a famigerada turbulência amedrontadora de almas mais propensas ao grito. Eu, agora sob efeito de "Rivotril", nada senti. Estou anestesiado. Aí, enquanto escrevia, nos bancos de trás surgiu um casal com discurso do tipo: aqui tem mais espaço, aqui é melhor etc. Melhor mesmo, em verdade, seria estar em terra firme, não acha?

Agora, depois de tudo isso, meus dedos enregelados começaram a doer. Vou ter que parar a escrita. Depois, se a minha compulsão de escrever me incitar, retomarei o texto. Se não, vou me despedindo. Em São Paulo voltarei a conversar sobre essa minha viagem que começa agora, mas já me rendeu aventuras incomensuráveis.

13.07.2022

SÃO PAULO: DE AÇÃO E DE CONCRETO

Quando o avião tocou o solo da primeira cidade que pisei fora do Nordeste, "Wave" (seguida de "Garota de Ipanema") tocava em som instrumental. Bossa Nova para comprovar que ainda se está vivo é de uma sofisticação sem precedentes.

Ao chegar, não foi difícil me perceber envolto em atmosfera de expectativas. Queria encontrar gente amiga, porque cidade corresponde ao nicho de amizades construídas em torno dela. 

A alma, ainda confrangida, voltou ao corpo somente quando pisei em terra firme. Tive crise de riso enquanto andava pelos corredores do aeroporto (a máscara me salvou de não parecer lunático?). Insegurança e nervosismo sempre fazem de mim um parque de diversões.

Depois, andei pelas ruas e avenidas, cheguei ao hotel, encontrei a poeta Jovina Benigno (minha conterrânea jovial e espirituosa) e organizei meus pertences no quarto com janela para o cinza de um prédio (cinza é minha cor preferida, hein!).

À noite, com frio agradável, fui ao lançamento do meu livro de contos na "Ria Livraria". Pessoas do mundo virtual se materializaram diante dos olhos.

Conversa vai, riso vem, a noite fria de São Paulo se converteu em acolhida e em realização concreta de um desejo que pensei não ter coragem de realizar. 

Estou em São Paulo. Desde que coloquei o pé aqui, Tom Zé canta em meu ouvido "São São Paulo". Na infância, essa cidade era luxo sempre ao alcance dos outros. Na adolescência, era perigo que não me instigava. Hoje, na adultez-não-consolidada, é desafio possível e proposta de alegre fuga.

Impossível não me lembrar de um ponto, ao olhar para São Paulo em sua concretude: acorreram a essa cidade, no passado, tantos conterrâneos meus em busca de melhores dias. A "Nova Califórnia", hoje, mudou de "status". Ela comporta valores, mas já não é riqueza à vista. 

São Paulo, devo confessar, assusta à primeira vista. Apesar do susto, ela amplia nosso mundo com seu movimento que não cessa. Aí me questiono: é bonito tudo isso? A pergunta é retórica, porque, sim, há beleza em tudo, basta olhar nas minúcias. 

                                                               13.07.2022

MUSEU DA LÍNGUA PORTUGUESA E PINACOTECA

O "Museu da Língua Portuguesa" dispõe de amplo material audiovisual. Gostei de conhecê-lo, mas não posso dizer que ele me deixou a maior das impressões. Impacto mesmo tive ao entrar na "Pinacoteca". 

Após subir degraus, atravessar passadiços e salões, finalmente vivenciei o primeiro impacto da visita: dirigindo-me a uma ponte estava, logo à direita, na parte baixa, a escultura "Musa Impassível", que Brecheret realizou em homenagem a Francisca Júlia. Esta poeta parnasiana, uma das minha preferidas, criou dois sonetos intitulados "Musa Impassível" (este se tornou um epíteto da autora). 

Estava à minha direita, aos meus pés, a escultura que sonhava conhecer. Como estava sozinho, recorri a uma moça que realizou algumas fotografias para mim. Ficaram exatamente como eu as queria. Uma delas me apresenta sentado aos pés da "Musa Impassível": bela, lírica e singular. 

Em seguida, vivenciei outro impacto: numa das salas estava o quadro "Antropofagia", de Tarsila do Amaral. Ver essa obra me causou sensações ainda difíceis de mensurar. Primeiro, fiquei perplexo. Depois, veio-me a incredulidade. Em seguida, alegria mal disfarçada, estupefação e deslumbramento. Vivi minutos de completa imersão. A alma estava em alegria tão ampla que palavras não poderiam expressá-la. 

Após essa experiência, vieram tantas outras. Obras artísticas somente tateadas nas páginas dos livros estavam ao alcance do olhar. Dizer como me senti não constituiria tarefa fácil, pois fiquei arrebatado. 

Além dessa obra de Tarsila do Amaral, outras foram distribuídas nos diversos salões do prédio. Assim, me deparei com obras de: Portinari, Anita Malfatti, Di Cavalcante, Cícero Dias, Sérvulo Esmeraldo, Adriana Varejão (cuja obra estava em exposição das mais lindas), Brecheret, Rodin (sim, Auguste Rodin), além de tantas outras grandezas artísticas, estavam próximas de mim. 

Obras grandiosas do Brasil e do mundo para contemplar em tão pouco tempo, Deus, foi um crime. Eu ficaria um dia inteiro passeando pelos salões e galerias. 

Depois de um dos mais marcantes acontecimentos de minha vida de professor-escritor (cuja alma aprendeu a amar devotadamente a arte), tive que ir embora. 

Agora, exaurido pelas muitas emoções vividas, devo dizer que estou realizado. Há tanto a conhecer ainda em São Paulo, mas ficará para outro dia. Sim, porque irei embora já planejando viagem de retorno. 

15.07.2022

Émerson Cardoso

17.07.2022