RELATO DE VOO EM TEMPO REAL
Depois de um frio no estômago muito semelhante ao frio que sentimos naquele brinquedo inventado pelo demo, a que chamam de "Barca", e que está muito presente em parques, chegamos aos ares.
Esta não foi a minha primeira experiência com aviões. Fui para Recife há algum tempo e dispus meu corpo e alma para essa viagem mais para a loucura do que para a sobriedade. Quem pode considerar lucidez o ato de estar no ar, e por vontade e gosto?
Agora, se me perguntassem o que estou sentindo (escrevo este texto vendo nuvens aos borbotões) durante esse trajeto que a invenção humana me proporcionou, sem que eu pedisse ou estimulasse, porque tenho juízo, eu diria: que absurdo poder voar com máquina tão fácil de cair.
Falar em queda de avião quando se está dentro de um é para os fortes. Sim, porque nada assusta mais um cristão sentado com cintos afivelados (enquanto a vida passa entregue a um piloto e cortando nuvens em velocidade que não saberia dimensionar) do que a possibilidade de ouvir: "Senhores passageiros, pedimos que façam suas orações nas mais diversas crenças, porque o avião vai se esburrachar no chão!"
Estou na poltrona 14 (meu número de sorte). Deveriam estar ao meu lado duas pessoas. Há um rapaz de olhos claros e sapatos marrons, muito do silencioso e disposto a, na janela, ver vídeos da internet (suponho, pois não sou de bisbilhotar, embora o tenha visto assistir cenas de "Pantanal", tik tok, vídeos do Instagram, facebook etc). No meio, há o que poderia ter sido e não foi (deve ter desistido, suponho, aliás desiste de avião quem tem bom-senso). Eu estou na poltrona do corredor. De quando em vez, olho de lado, para ver o nada no qual estamos depositados, mas logo me acovardo e volto para meu texto.
Vou confessar um coisa. Acredita que ao entrar no avião implorei por uma água, que me foi dada minutos eternos depois, e coloquei nela (não me julgue!) umas simpáticas gotas de "Rivotril" 2,5 ml. Claro que fiz de tudo para disfarçar, mas quanto mais se esconde algo, mais isso tende a se explicitar. Viram meu copo e o frasco de remédio na minha mão. Não posso fazer nada! O psiquiatra sugeriu que eu o utilizasse em caso de crise ansiosa. Não vejo ocasião mais propícia para tomá-lo. A primeira gota, tomei "para ter o argumento" (vide "Resposta ao tempo" e entenderá a referência). A segunda, tomei por covardia (achei melhor tomar para não ter crise de falta de ar e dar vexame). A terceira, tomei para conseguir manter os chakras alinhados, porque esses bandidos foram desalinhados ainda no Aeroporto de Juazeiro do Norte, quando uma funcionária da Gol agiu de forma descortês e com pressão psicológica causando desconforto para mim e para outra senhora (ela ouviu algumas respostas coerentes, amáveis e polidas, mas não isentas do meu Marte em Escorpião: uma ferroada só e o problema foi resolvido da melhor forma). Sou tímido e calmo, porém indisposto a faltas de educação. Tive que agir. A quarta, tomei porque a natureza pediu (quando não podemos alterar o rumo das coisas, a existência é assim, recorremos a subterfúgios). A quinta, e última gota (porque com menos do que isso eu não me responsabilizaria por meus atos tresloucados dentro desse presente de grego de asas), tomei porque viver exige coragem, e a minha coragem tem sido roubada de mim desde a infância-angustiante-infância. Assim, o jeito foi arrefecer no orgulho e tomá-lo com resignação. Em verdade, pouco importa o recurso a que acorremos se isso nos leva a algo que nos faria aproveitar melhor as experiências. Se isso não atenta contra a dignidade de ninguém, nem contra a minha, por que não?
Agora, lá vem um rapaz e uma moça mais brancos do que a asa do avião. Estou em dúvida sobre o que tomarei. Queria mesmo era chá calmante (camomila, cidreira, erva doce, alecrim etc.). Na ausência de chá, porque esse povo não sabe o que é o bom da vida, resignado aceitarei um suco (eles servem sucos industrializados, ó céus!).
Parei o texto para esperá-los. Desisti de esperar, uma vez que nessa espera terminei olhando a janela à direita. Deus do céu! Azul e branco por todos os lados, igual ao manto de Nossa Senhora das Dores, padroeira de Juazeiro do Norte. Confesso que me veio a vontade de pedir para ela amenizar o trauma.
Chegou o suco. Acabei de tomar o suco. O salgadinho guardei na mochila. Nunca se sabe da urgência de alimento que ele aplacará futuramente. Como tomei o suco muito rápido (a boca seca de nervosismo), a moça, simpática, me ofereceu mais um copo. Não aceitei. Suco industrializado me causa sensação de culpa. Queria mesmo era uns dez salgadinhos iguais aos que ela distribuiu (taurinos tendem à gula, portanto não me condene).
Voltei ao texto para pensar um pouco sobre o caos de estar nos ares. Sim, por Deus, estou sem qualquer chão que me dê ao menos a falsa segurança de ter para onde correr. Sensação de vazio aos pés, de não ter por quem gritar, de estar definitivamente condenado ao desamparo e ao desabrigo. Bem, isso não me é novidade. Apenas acrescentei a essas sensações amplamente vivenciadas um fato escalafobético: não há terra abaixo ou dos lados. Para chegar a ela, teria que aterrissar ou cair. A segunda opção, sinceramente, não é das mais amigáveis.
Cruzei as pernas e (que horror!) derrubei o copo com resquícios de suco. Detesto coisa doce nas mãos, mas não há água ao alcance. O jeito é me resignar. O suco ousou sujar minha mochila tão bem lavada. Que tragédia não grega em pleno voo, Senhor! O pior foi o olhar condescedente do rapaz ao lado, o que tem olhos claros e sapatos marrons, que além de me olhar na bagunça de derramar o suco, não aceitou o lanche (para me humilhar, por certo, eu que não resisti ao simplório alimento servido e o aceitei com veemência). O pior foi quando guardei o salgadinho na mochila e nossos olhos se encontraram. Eu o olhei para ver se ele estava olhando o que eu iria fazer. Sim, ele estava olhando e eu o olhei no exato momento em que ele estava me olhando. Encontro de olhares. Vergonha barulhenta de um, julgamento silencioso do outro.
Lá vem a dupla de loiros novamente. Eles recolheram copos e guarnadapos. Aproveitei para olhar à direita e vi terra. Ainda distante dos meus pés saudosistas, mas a vislumbrei, sim, com frio no estômago e vontade de fechar os olhos.
O rapaz ao lado se remexeu umas três vezes, igual galinha quando quer pôr adjutórios (é assim que eu chamo "ovo"). Ri sozinho dentro da máscara. Máscaras são salvações pluridimensionais. Se ele soubesse do teor desse texto, hein. Eu estaria ferrado.
À frente, esqueci de dizer, há um rapaz que conheço de vista. Ele anda com os cabelos super assanhados e de óculos escuros. Ele tem sido super amigável com a moça ao lado dele, que tem uma criança que odeia silêncio e está no mundo dos jogos virtuais (com barulhos e mais barulhos) desde que o bendito avião achou por bem virar tuiuiú (quem assiste "Pantanal" entenderá a referência).
Comecei a pensar numa coisa: parece que não tenho mais o que escrever. Mal pensei nisso e o avião começou com a famigerada turbulência amedrontadora de almas mais propensas ao grito. Eu, agora sob efeito de "Rivotril", nada senti. Estou anestesiado. Aí, enquanto escrevia, nos bancos de trás surgiu um casal com discurso do tipo: aqui tem mais espaço, aqui é melhor etc. Melhor mesmo, em verdade, seria estar em terra firme, não acha?
Agora, depois de tudo isso, meus dedos enregelados começaram a doer. Vou ter que parar a escrita. Depois, se a minha compulsão de escrever me incitar, retomarei o texto. Se não, vou me despedindo. Em São Paulo voltarei a conversar sobre essa minha viagem que começa agora, mas já me rendeu aventuras incomensuráveis.
13.07.2022
SÃO PAULO: DE AÇÃO E DE CONCRETO
Quando o avião tocou o solo da primeira cidade que pisei fora do Nordeste, "Wave" (seguida de "Garota de Ipanema") tocava em som instrumental. Bossa Nova para comprovar que ainda se está vivo é de uma sofisticação sem precedentes.
Ao chegar, não foi difícil me perceber envolto em atmosfera de expectativas. Queria encontrar gente amiga, porque cidade corresponde ao nicho de amizades construídas em torno dela.
A alma, ainda confrangida, voltou ao corpo somente quando pisei em terra firme. Tive crise de riso enquanto andava pelos corredores do aeroporto (a máscara me salvou de não parecer lunático?). Insegurança e nervosismo sempre fazem de mim um parque de diversões.
Depois, andei pelas ruas e avenidas, cheguei ao hotel, encontrei a poeta Jovina Benigno (minha conterrânea jovial e espirituosa) e organizei meus pertences no quarto com janela para o cinza de um prédio (cinza é minha cor preferida, hein!).
À noite, com frio agradável, fui ao lançamento do meu livro de contos na "Ria Livraria". Pessoas do mundo virtual se materializaram diante dos olhos.
Conversa vai, riso vem, a noite fria de São Paulo se converteu em acolhida e em realização concreta de um desejo que pensei não ter coragem de realizar.
Estou em São Paulo. Desde que coloquei o pé aqui, Tom Zé canta em meu ouvido "São São Paulo". Na infância, essa cidade era luxo sempre ao alcance dos outros. Na adolescência, era perigo que não me instigava. Hoje, na adultez-não-consolidada, é desafio possível e proposta de alegre fuga.
Impossível não me lembrar de um ponto, ao olhar para São Paulo em sua concretude: acorreram a essa cidade, no passado, tantos conterrâneos meus em busca de melhores dias. A "Nova Califórnia", hoje, mudou de "status". Ela comporta valores, mas já não é riqueza à vista.
São Paulo, devo confessar, assusta à primeira vista. Apesar do susto, ela amplia nosso mundo com seu movimento que não cessa. Aí me questiono: é bonito tudo isso? A pergunta é retórica, porque, sim, há beleza em tudo, basta olhar nas minúcias.
13.07.2022
MUSEU DA LÍNGUA PORTUGUESA E PINACOTECA
O "Museu da Língua Portuguesa" dispõe de amplo material audiovisual. Gostei de conhecê-lo, mas não posso dizer que ele me deixou a maior das impressões. Impacto mesmo tive ao entrar na "Pinacoteca".
Após subir degraus, atravessar passadiços e salões, finalmente vivenciei o primeiro impacto da visita: dirigindo-me a uma ponte estava, logo à direita, na parte baixa, a escultura "Musa Impassível", que Brecheret realizou em homenagem a Francisca Júlia. Esta poeta parnasiana, uma das minha preferidas, criou dois sonetos intitulados "Musa Impassível" (este se tornou um epíteto da autora).
Estava à minha direita, aos meus pés, a escultura que sonhava conhecer. Como estava sozinho, recorri a uma moça que realizou algumas fotografias para mim. Ficaram exatamente como eu as queria. Uma delas me apresenta sentado aos pés da "Musa Impassível": bela, lírica e singular.
Em seguida, vivenciei outro impacto: numa das salas estava o quadro "Antropofagia", de Tarsila do Amaral. Ver essa obra me causou sensações ainda difíceis de mensurar. Primeiro, fiquei perplexo. Depois, veio-me a incredulidade. Em seguida, alegria mal disfarçada, estupefação e deslumbramento. Vivi minutos de completa imersão. A alma estava em alegria tão ampla que palavras não poderiam expressá-la.
Após essa experiência, vieram tantas outras. Obras artísticas somente tateadas nas páginas dos livros estavam ao alcance do olhar. Dizer como me senti não constituiria tarefa fácil, pois fiquei arrebatado.
Além dessa obra de Tarsila do Amaral, outras foram distribuídas nos diversos salões do prédio. Assim, me deparei com obras de: Portinari, Anita Malfatti, Di Cavalcante, Cícero Dias, Sérvulo Esmeraldo, Adriana Varejão (cuja obra estava em exposição das mais lindas), Brecheret, Rodin (sim, Auguste Rodin), além de tantas outras grandezas artísticas, estavam próximas de mim.
Obras grandiosas do Brasil e do mundo para contemplar em tão pouco tempo, Deus, foi um crime. Eu ficaria um dia inteiro passeando pelos salões e galerias.
Depois de um dos mais marcantes acontecimentos de minha vida de professor-escritor (cuja alma aprendeu a amar devotadamente a arte), tive que ir embora.
Agora, exaurido pelas muitas emoções vividas, devo dizer que estou realizado. Há tanto a conhecer ainda em São Paulo, mas ficará para outro dia. Sim, porque irei embora já planejando viagem de retorno.
15.07.2022
Émerson Cardoso
17.07.2022