Você e eu somos
acúmulos deliberados e casuais de sílabas. E elas só existem se alguém nos ler.
É aí que estamos condenados à degradação.
(AG,
O Obscuro, p. 117)
Salvador
Dalí apresentou sua obra Canibalismo de
Outono ao mundo em 1936. Nesta obra, percebemos, dentre outros pontos, a
presença de um casal cujas cabeças interligam-se, aparentemente, por meio de um
beijo, ao mesmo tempo em que a mulher segura garfo e faca, com os quais se
alimenta do corpo do homem que, por sua vez, segura uma colher com a qual
também pretende alimentar-se da mulher.
O título da pintura de Dalí é
retomado, também sua essência temática, na primeira obra romanesca de Arturo
Gouveia publicada no primeiro semestre de 2016, pela editora Iluminuras. Dividido em duas partes (I
– A RAIZ DO ARGUMENTO e II – AS FOLHAS DISPERSAS), este romance apresenta um
narrador autodiegético que tem como interlocutor uma juíza a quem ele se
reporta através do pronome de tratamento “Meritíssima”. Este narrador, denominado
Próspero Miranda, confessa seu crime – crime tão cruel quanto bem articulado –
e apresenta as razões que o motivaram a conceber tão passionalmente seu desejo
de vingança.
O romance inicia, desse modo, com a narração de
momentos especiais vividos entre ele e sua amada, como percebemos no trecho (2016, p. 07)[1]: “No
dia em que o Papa morreu, eu tive uma experiência de amor inconfundível. Eu e a
Italiana vínhamos de Roma, de um concerto internacional de barítonos e um curso
de regência, e nos envolvemos na cama da forma mais suave”. O narrador é um
proeminente músico que adota uma órfã chamada Karol, que ele também chama de
Italiana, e por quem, com o tempo, apaixona-se – sendo prontamente
correspondido.
Acontece que,
quando Próspero Miranda, a despeito de críticas, introduzira a filha adotiva
numa apresentação para a qual estava ensaiando, e a esperava para o segundo ensaio
da Litania n. 4, de Francesco
Durante, ela não apareceu. Depois, somos informados de que a moça (p. 09) “foi
encontrada morta no carro dos gêmeos, cortada, trucidada de espancamentos,
quase todo o corpo com hematomas e sinais de estupro e resistência”.
Foram acusados do crime os gêmeos Tila e Vói, de
dezessete anos, que, apoiados pelo status
do pai, conseguem ser absolvidos, sobretudo porque dispunham do álibi perfeito:
uma foto na qual eles estavam, na mesma noite do crime, com garotas na boate de
propriedade de seu pai.
A partir deste fato, e de outros que o leitor
precisa recorrer ao instigante enredo para compreender, Próspero Miranda decide
realizar um ato de vingança que seja, em todos os sentidos, excepcional. Ele
deseja, por meio disto, expurgar sua frustração ante a impunidade que
possibilita aos gêmeos ter uma vida normal após ele ter sido dilacerado,
psicologicamente, ao saber da morte de sua amada.
A vingança, como poucas vezes vislumbramos na Literatura
Brasileira, aparece com intensidade nessa obra. O narrador, a respeito de seu
projeto de vingança, afirma (p. 13): “Meu plano era relativamente digressivo e
previsível, como uma literatura de mau gosto que não vai direto ao desfecho.
Mas isso multiplicava meu ódio como ninguém podia prever. E foi aí, um ano após
a morte do Papa, que Tila e Vói chegaram no inferno”.
A propósito, do ponto de vista onomástico, o nome do
narrador-protagonista nos remete à obra shakespeariana A tempestade. Próspero, duque de Milão, é confinado por traições
políticas numa ilha, com sua filha Miranda, e utiliza-se de vasto conhecimento
e de magia para realizar um ato de vingança contra seus traidores. Neste
sentido, a relação intertextual presente nos nomes é mais que evidente e amplia
as possibilidades de interpretação desse livro, sobretudo se considerarmos a
temática da vingança – temática central de ambos.
Devemos mencionar, também, a proximidade sonora dos
nomes dos gêmeos Vói e Tila com o sobrenome do Papa João Paulo II (Karol Józef
Wojtyla), cuja morte é mencionada enfaticamente no livro. Atentemos, ainda, para
o fato de que a filha adotiva de Próspero, a quem ele devota amor intenso, chama-se
Karol, ou seja, o primeiro nome do líder religioso.
Ressaltemos que, além desses aspectos, Arturo
Gouveia comprova a ideia de Bakhtin, que pensa o romance como uma forma
proteica que pode assimilar, em si, diversos gêneros. Percebemos, neste
sentido, que Canibalismo de Outono
apresenta capítulos que se assemelham estruturalmente, por exemplo, aos textos
do gênero dramático. Neles, há a indicação do nome da personagem seguida de sua
fala, o que pode remeter também ao formato de diálogo típico de textos
clássicos como os de Platão e Aristóteles. Há, ainda: partitura, entrevista, inúmeros minicontos
e sonetos, que são de uma criatividade imensurável, também carta, como a que é
direcionada a Hannah Arendt, com onze pontos que são breves comentários sobre
seu conceito de banalidade do mal.
Do ponto de vista da linguagem, a incapacidade de
comunicação dos gêmeos, que são aparentemente incapazes de comunicar-se sem
espargir contra o interlocutor uma palavra obscena e vulgar, é ridicularizada
pela erudição de Próspero Miranda e de outras personagens fascinantes que o
narrador apresenta: o PINTOR – Salvador Dalí –, AG – o Obscuro –, Górgona-Húmus
– a destruidora de rostos – e o Mentor – também retomado pelo pronome ELE.
Há capítulos em que percebemos o fluxo de
consciência da personagem de modo tão intenso que desaparecem os sinais de
pontuação e algumas palavras – surgem, em contrapartida, sinais gráficos aleatórios, pontilhados, parágrafos
formados apenas por cinco linhas sem qualquer pontuação, dentre outras marcas
textuais que parecem acompanhar os conflitos e divagações psicológicas do narrador-personagem.
Há um capítulo, nesta perspectiva, intitulado ENCONTRO ACELERADO – III (DÓ), em
que a frase “não seja puta de Benjamin Franklin” é repetida excessivamente, sendo
intercalada com parágrafos em que o narrador retoma, apenas em alguns trechos, sua
narração, e com sonetos, e minicontos, de notável vigor poético.
Precisamos dar ênfase, para além da
vingança de Próspero, que constitui o enredo por excelência do livro e já nos
dimensiona, pela fabulação, seu valor estético, a pelo menos três acontecimentos marcantes: 1) o
capítulo ENCONTRO ACELERADO – I (em que o narrador encontra-se com
personalidades como AG – o Obscuro), 2)
o capítulo ENCONTRO ACELERADO – II (em que o narrador visita Górgona-Húmus na
Penitenciária Feminina localizada no Paço dos Abutres) e 3) o capítulo ENCONTRO ACELERADO IV (em que o narrador encontra-se
na Itália com o Mentor, mais precisamente o diabo, e com ESQUILO e ELI).
Consideramos, diga-se de passagem,
que Canibalismo de Outono pode
inserir-se na tradição de textos literários que se remetem a pactos diabólicos.
Neste caso, o Mentor, que se opõe a Próspero, tenta desencorajá-lo, por meio de
argumentos bem delineados, a desistir de sua vingança – seus argumentos, no
entanto, não são aceitos.
A erudição dos diálogos, o alto grau
de reflexão apresentado nos discursos das personagens, a menção a obras e nomes
da música erudita, a menção a autores proeminentes da Literatura Universal e da
Filosofia, assim como a construção narrativa que traz seus tons de bizarrice e
de absurdo, bem como a construção psicológica de suas personagens que, algumas
delas, margeiam o grotesco, tornam este livro uma experiência romanesca
mais-que-bem-sucedida.
Entre o amor erótico em sua
manifestação mais singela, e o despertar da crueldade humana que nasce, por
vezes, da incapacidade de ser indiferente a injustiças, Canibalismo de Outono nos apresenta um protagonista complexo, cruel
e vingativo, mas que nos incita a pensar sobre a condição humana em suas mais
vastas potencialidades – sobretudo em sua capacidade de amar, de sentir solidão
e de sentir-se impotente ante a dor da perda.
Este romance nos causa impacto, nos atemoriza, nos
causa estranhamento, ao mesmo tempo em que nos leva a indagar, enternecidos, sobre o que de
fato ocorreu no enredo: os acontecimentos são reais, ou não passam de devaneios
de uma mente fustigada pela crueldade de tipos como os gêmeos Vói e Tila? O
esboço de romance apresentado por AG, o Obscuro, é a resposta para o que
perscrutamos? Isto tira nossa paz. Mas, a propósito da paz, para
concluir, transcrevo uma das muitas frases que me tocaram profundamente neste
livro (p. 191): “O pior dos infernos é ser cúmplice de uma paz aparente”.
Arturo Gouveia é doutor em Teoria Literária e
Literatura Comparada, é professor titular da Universidade Federal da Paraíba e
escreveu, dentre outras obras: No inferno
(1988), O mal absoluto (1996), A farsa do milênio (1997), A arte do breve (2003), O Evangelho Segundo Lúcifer (2007) e Santíssimas trevas (2008).
Cícero Émerson do Nascimento Cardoso
Terminei minha leitura. Já estou preparando uma análise dessa obra.
ResponderExcluirPerfeito! Quero ler, hein! Abraço!
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