domingo, 10 de julho de 2016

RESENHA CRÍTICA: "CANIBALISMO DE OUTONO", DE ARTURO GOUVEIA


Você e eu somos acúmulos deliberados e casuais de sílabas. E elas só existem se alguém nos ler. É aí que estamos condenados à degradação.
(AG, O Obscuro, p. 117)

Salvador Dalí apresentou sua obra Canibalismo de Outono ao mundo em 1936. Nesta obra, percebemos, dentre outros pontos, a presença de um casal cujas cabeças interligam-se, aparentemente, por meio de um beijo, ao mesmo tempo em que a mulher segura garfo e faca, com os quais se alimenta do corpo do homem que, por sua vez, segura uma colher com a qual também pretende alimentar-se da mulher.
       O título da pintura de Dalí é retomado, também sua essência temática, na primeira obra romanesca de Arturo Gouveia publicada no primeiro semestre de 2016, pela editora Iluminuras. Dividido em duas partes (I – A RAIZ DO ARGUMENTO e II – AS FOLHAS DISPERSAS), este romance apresenta um narrador autodiegético que tem como interlocutor uma juíza a quem ele se reporta através do pronome de tratamento “Meritíssima”. Este narrador, denominado Próspero Miranda, confessa seu crime – crime tão cruel quanto bem articulado – e apresenta as razões que o motivaram a conceber tão passionalmente seu desejo de vingança.
O romance inicia, desse modo, com a narração de momentos especiais vividos entre ele e sua amada, como percebemos no trecho (2016, p. 07)[1]: “No dia em que o Papa morreu, eu tive uma experiência de amor inconfundível. Eu e a Italiana vínhamos de Roma, de um concerto internacional de barítonos e um curso de regência, e nos envolvemos na cama da forma mais suave”. O narrador é um proeminente músico que adota uma órfã chamada Karol, que ele também chama de Italiana, e por quem, com o tempo, apaixona-se – sendo prontamente correspondido.
 Acontece que, quando Próspero Miranda, a despeito de críticas, introduzira a filha adotiva numa apresentação para a qual estava ensaiando, e a esperava para o segundo ensaio da Litania n. 4, de Francesco Durante, ela não apareceu. Depois, somos informados de que a moça (p. 09) “foi encontrada morta no carro dos gêmeos, cortada, trucidada de espancamentos, quase todo o corpo com hematomas e sinais de estupro e resistência”.
Foram acusados do crime os gêmeos Tila e Vói, de dezessete anos, que, apoiados pelo status do pai, conseguem ser absolvidos, sobretudo porque dispunham do álibi perfeito: uma foto na qual eles estavam, na mesma noite do crime, com garotas na boate de propriedade de seu pai.
A partir deste fato, e de outros que o leitor precisa recorrer ao instigante enredo para compreender, Próspero Miranda decide realizar um ato de vingança que seja, em todos os sentidos, excepcional. Ele deseja, por meio disto, expurgar sua frustração ante a impunidade que possibilita aos gêmeos ter uma vida normal após ele ter sido dilacerado, psicologicamente, ao saber da morte de sua amada.
A vingança, como poucas vezes vislumbramos na Literatura Brasileira, aparece com intensidade nessa obra. O narrador, a respeito de seu projeto de vingança, afirma (p. 13): “Meu plano era relativamente digressivo e previsível, como uma literatura de mau gosto que não vai direto ao desfecho. Mas isso multiplicava meu ódio como ninguém podia prever. E foi aí, um ano após a morte do Papa, que Tila e Vói chegaram no inferno”.
A propósito, do ponto de vista onomástico, o nome do narrador-protagonista nos remete à obra shakespeariana A tempestade. Próspero, duque de Milão, é confinado por traições políticas numa ilha, com sua filha Miranda, e utiliza-se de vasto conhecimento e de magia para realizar um ato de vingança contra seus traidores. Neste sentido, a relação intertextual presente nos nomes é mais que evidente e amplia as possibilidades de interpretação desse livro, sobretudo se considerarmos a temática da vingança – temática central de ambos.
Devemos mencionar, também, a proximidade sonora dos nomes dos gêmeos Vói e Tila com o sobrenome do Papa João Paulo II (Karol Józef Wojtyla), cuja morte é mencionada enfaticamente no livro. Atentemos, ainda, para o fato de que a filha adotiva de Próspero, a quem ele devota amor intenso, chama-se Karol, ou seja, o primeiro nome do líder religioso.
Ressaltemos que, além desses aspectos, Arturo Gouveia comprova a ideia de Bakhtin, que pensa o romance como uma forma proteica que pode assimilar, em si, diversos gêneros. Percebemos, neste sentido, que Canibalismo de Outono apresenta capítulos que se assemelham estruturalmente, por exemplo, aos textos do gênero dramático. Neles, há a indicação do nome da personagem seguida de sua fala, o que pode remeter também ao formato de diálogo típico de textos clássicos como os de Platão e Aristóteles. Há, ainda: partitura, entrevista, inúmeros minicontos e sonetos, que são de uma criatividade imensurável, também carta, como a que é direcionada a Hannah Arendt, com onze pontos que são breves comentários sobre seu conceito de banalidade do mal.
Do ponto de vista da linguagem, a incapacidade de comunicação dos gêmeos, que são aparentemente incapazes de comunicar-se sem espargir contra o interlocutor uma palavra obscena e vulgar, é ridicularizada pela erudição de Próspero Miranda e de outras personagens fascinantes que o narrador apresenta: o PINTOR – Salvador Dalí –, AG – o Obscuro –, Górgona-Húmus – a destruidora de rostos – e o Mentor – também retomado pelo pronome ELE.
Há capítulos em que percebemos o fluxo de consciência da personagem de modo tão intenso que desaparecem os sinais de pontuação e algumas palavras – surgem, em contrapartida, sinais gráficos aleatórios, pontilhados, parágrafos formados apenas por cinco linhas sem qualquer pontuação, dentre outras marcas textuais que parecem acompanhar os conflitos e divagações psicológicas do narrador-personagem. Há um capítulo, nesta perspectiva, intitulado ENCONTRO ACELERADO – III (DÓ), em que a frase “não seja puta de Benjamin Franklin” é repetida excessivamente, sendo intercalada com parágrafos em que o narrador retoma, apenas em alguns trechos, sua narração, e com sonetos, e minicontos, de notável vigor poético.
         Precisamos dar ênfase, para além da vingança de Próspero, que constitui o enredo por excelência do livro e já nos dimensiona, pela fabulação, seu valor estético, a pelo menos três acontecimentos marcantes: 1) o capítulo ENCONTRO ACELERADO – I (em que o narrador encontra-se com personalidades como AG – o Obscuro), 2) o capítulo ENCONTRO ACELERADO – II (em que o narrador visita Górgona-Húmus na Penitenciária Feminina localizada no Paço dos Abutres) e 3) o capítulo ENCONTRO ACELERADO IV (em que o narrador encontra-se na Itália com o Mentor, mais precisamente o diabo, e com ESQUILO  e ELI).
            Consideramos, diga-se de passagem, que Canibalismo de Outono pode inserir-se na tradição de textos literários que se remetem a pactos diabólicos. Neste caso, o Mentor, que se opõe a Próspero, tenta desencorajá-lo, por meio de argumentos bem delineados, a desistir de sua vingança – seus argumentos, no entanto, não são aceitos.
            A erudição dos diálogos, o alto grau de reflexão apresentado nos discursos das personagens, a menção a obras e nomes da música erudita, a menção a autores proeminentes da Literatura Universal e da Filosofia, assim como a construção narrativa que traz seus tons de bizarrice e de absurdo, bem como a construção psicológica de suas personagens que, algumas delas, margeiam o grotesco, tornam este livro uma experiência romanesca mais-que-bem-sucedida.
            Entre o amor erótico em sua manifestação mais singela, e o despertar da crueldade humana que nasce, por vezes, da incapacidade de ser indiferente a injustiças, Canibalismo de Outono nos apresenta um protagonista complexo, cruel e vingativo, mas que nos incita a pensar sobre a condição humana em suas mais vastas potencialidades – sobretudo em sua capacidade de amar, de sentir solidão e de sentir-se impotente ante a dor da perda.  
Este romance nos causa impacto, nos atemoriza, nos causa estranhamento, ao mesmo tempo em que nos leva a indagar, enternecidos, sobre o que de fato ocorreu no enredo: os acontecimentos são reais, ou não passam de devaneios de uma mente fustigada pela crueldade de tipos como os gêmeos Vói e Tila? O esboço de romance apresentado por AG, o Obscuro, é a resposta para o que perscrutamos? Isto tira nossa paz. Mas, a propósito da paz, para concluir, transcrevo uma das muitas frases que me tocaram profundamente neste livro (p. 191): “O pior dos infernos é ser cúmplice de uma paz aparente”.         
Arturo Gouveia é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada, é professor titular da Universidade Federal da Paraíba e escreveu, dentre outras obras: No inferno (1988), O mal absoluto (1996), A farsa do milênio (1997), A arte do breve (2003), O Evangelho Segundo Lúcifer (2007) e Santíssimas trevas (2008).
Cícero Émerson do Nascimento Cardoso



[1] GOUVEIA, Arturo. Canibalismo de Outono. São Paulo: Iluminuras, 2016.

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