Ao realizarmos uma análise sobre a história do continente africano é
possível constatar a realidade crítica a que se submeteram os nativos desse
continente em decorrência das ações, muitas vezes desumanas, dos invasores
europeus. Essas invasões às terras africanas começaram em meados do século XV
com o intuito, dentre outros fatores, de expansão de novos mercados comerciais.
Assim, os europeus estabeleceram seus domínios nos litorais da África e, com isso, foram implantando princípios de colonização pautados na
exploração efetiva dos bens existentes nas terras “descobertas” e na
destituição dos valores identitários dos povos que nelas habitavam.
Surgiram inúmeros problemas a partir da expansão
colonialista na África, dentre eles: a forte desorganização das atividades produtivas,
a diminuição absurda da população devido à escravização, as alianças entre europeus
e classes dirigentes africanas, a criação de fronteiras políticas artificiais
causadoras de guerras interétnicas e tribais, além da instituição de
inferioridade racial.
Esses fatores construíram a imagem dos países africanos que a grande
mídia apresenta na contemporaneidade. Foram responsáveis, também, pela
desvalorização dos princípios morais constituídos por algumas comunidades
nativas que, no início da colonização, não se percebiam vilipendiadas pelos
interesses capitalistas dos invasores europeus. Desse modo, o poderio
colonialista se apoderou da África e implantou a cultura europeia determinada por
acessos de tirania e despotismo.
Muitos países na África sofreram essas invasões perpetradas pelos
expansionistas alemães, franceses, ingleses, holandeses, dentre outros.
Portugal, pioneiramente, foi um dos países desejosos de propagar a “arte” da
expansão de seu poderio em novas terras.
Angola foi uma dessas terras “conquistadas” pela expansão lusitana e,
como demais países, sofreu os impactos da tirania dos colonizadores. Desbravada
em 1484, o expansionismo português estabeleceu uma aliança com o reinado
existente na terra angolana. Na segunda metade do século XVI os portugueses
apropriaram-se, definitivamente, de Angola. A colonização no país se consolidou,
no interior, a partir do século XIX e os cursos fluviais foram determinantes
para que isso ocorresse. Após séculos de domínio, só em meados de 1960 a
população angolana deixou de agir passivamente diante do domínio luso e
demonstrou força e luta tendo como exemplo a independência conquistada em
outros países da África.
Como um dos meios reivindicativos utilizados por Angola surge, nas primeiras
décadas dos anos 60, um movimento revolucionário organizado pelo "ABC – Diário
de Angola": o I Encontro de Escritores de Angola, realizado em Lubango de 19 a 27
de janeiro de 1963, com trinta e três participantes. Ganhou repercussão também,
nesse período, o "Prêmio Literário Maria José Abrantes da Motta Veiga", atribuído
anualmente em Luanda. E os últimos anos da década de 50, e início da década de
60, foram caracterizados por vasta agitação política perpetrada pelo MPLA –
Movimento Pela Libertação de Angola. Muitos adeptos desse movimento político foram presos – dentre eles escritores que representaram a produção literária engajada que, por meio da arte, exprimiam as perspectivas
ideológicas que poderiam mudar a realidade sociocultural do povo angolano.
Sobre esse acontecimento é marcante a data de 4 de fevereiro de 1961,
data que lembra o assalto às prisões de Luanda pelo MPLA. Os manifestantes
buscavam libertar os militantes do partido presos há algum tempo. A independência política desse país aconteceu alguns anos depois em 11 de novembro de 1975.
Nesse contexto, se insere a figura emblemática de Agostinho Neto. Nascido
em Angola, em 17 de setembro de 1922, foi o primeiro presidente desse país sendo
um dos cidadãos mais engajados na luta pela independência de sua terra. Como poeta,
desenvolveu obras voltadas para processos ideológicos que apresentavam
instigantes construções reivindicativas numa espécie de “grito” intelectual em
prol das mudanças que Angola precisava vivenciar.
Agostinho Neto foi o Primeiro Presidente de Angola |
Sua obra é constituída de ideais de renovação e insatisfação mediante a
realidade social, política e econômica a que se submetia o povo angolano ante o domínio português e, em
suas camadas profundas, expõe o “grito” sublimado através da arte da palavra
que expressa, além do grito, a força subsidiadora de um fazer político
intrinsecamente ligado ao fazer poético construído a partir de revoltante
postura de não mais submissão ante o sistema explorador imposto, durante
séculos, pelos colonizadores.
Com base nesses dados, é possível observar os vieses interpretativos da
obra de Agostinho Neto e construir inferências diversas acerca de sua produção
literária. Presente na obra Sagrada Esperança (1974), apresentaremos a seguir o poema Adeus à hora da largada que, dentre outras possibilidades interpretativas, nos dimensiona a necessidade de insubmissão do povo angolano através de uma voz lírica que, tendo a terra como uma suposta interlocutora, expressa suas insatisfações e reivindicações.
Esse poema é dotado de um clamor emitido por uma voz lírica que constrói imagens contundentes e que, como se para sensibilizar o povo e instigá-lo à luta, exibe as feridas existenciais dos filhos de Angola sem qualquer temor ante a denúncia presente em seus versos angustiados. A voz lírica invoca diversas vezes sua "Mãe", o que nos possibilita considerar o vocábulo "Mãe" como uma metáfora empregada no texto para associar a terra africana à figura singela de uma "Mãe" que, após dar a luz ao filho e criá-lo, precisasse, enfim, de sua proteção, coragem e luta. A voz lírica personifica a dor de um povo cuja terra em tudo fora explorada, vilipendiada e, em busca de seus
valores identitários ultrajados pela presença do branco português, convoca o povo à necessidade de mudança.
Muito poderíamos falar sobre esse poema, mas isso fica para outra ocasião, pois agora se faz necessário que nós o leiamos:
ADEUS À HORA DA LARGADA
Minha Mãe
(todas as mães negras
cujos filhos partiram)
tu me ensinaste a esperar
como esperaste nas horas difíceis
Mas a vida matou em mim essa mística esperança
Eu já não espero
sou aquele por quem se espera
Sou eu minha Mãe
a esperança somos nós
os teus filhos partidos para uma fé que alimenta a vida
Hoje
somos as crianças nuas das sanzalas do mato
os garotos sem escola a jogar a bola de trapos
nos areais ao meio-dia
somos nós mesmos
os contratados a queimar vidas nos cafezais
os homens negros ignorantes
que devem respeitar o homem branco
e temer o rico
somos os teus filhos
dos bairros de pretos
além aonde não chega a luz elétrica
os homens bêbedos a cair
abandonados ao ritmo dum batuque de morte
teus filhos
com fome
com sede
com vergonha de te chamarmos Mãe
com medo de atravessar as ruas
com medo dos homens
nós mesmos
Amanhã
entoaremos hinos à liberdade
quando comemorarmos
a data da abolição desta escravatura
Nós vamos em busca de luz
os teus filhos Mãe
(todas as mães negras
cujos filhos partiram)
Vão em busca de vida.
(Agostinho Neto)
TEXTO: ÉMERSON CARDOSO
ALGUMAS OBRAS QUE DISCORREM SOBRE O ASSUNTO:
ARNAUT, Luiz
& LOPES, Ana Mônica. História da
África: uma introdução. Belo Horizonte; Crisálida, 2005.
DANTAS, Elisalva
Madruga e at all. Textos poéticos
africanos de língua portuguesa e afro-brasileiros. João Pessoa: Ideia,
2007.
LARANJEIRAS,
Pires. Literaturas africanas de
expressão portuguesa. Lisboa: Universidade Aberta, 1995.
CONSULTE TAMBÉM:
FUNDAÇÃO AGOSTINHO NETO DISPONÍVEL EM: http://www.agostinhoneto.org
Bandeira Nacional de Angola |
OBS.: SE ALGUÉM QUISER UM POUCO MAIS SOBRE A OBRA DE AGOSTINHO NETO, LEIA MEU ARTIGO "A ARTE DA PALAVRA E, NA PALAVRA, O GRITO: ANÁLISE DE QUITANDEIRA, DE AGOSTINHO NETO" PUBLICADO EM: http://periodicos.urca.br/ojs/index.php/MigREN/article/view/348
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