A obra Quem
tem medo de Górki & outros contos, de Ângela Calou, apresenta contos cuja
principal marca é a construção de personagens delineadas por acessos de conflitos
psicológicos intensos. Estes conflitos, que surgem a partir de contextos
diversos em que as personagens estão inseridas, criam no leitor o desejo de
adentrar a trama narrativa e ser partícipe do universo que a autora tece
criativamente.
O
livro, que também apresenta um trabalho primoroso de capa e design gráfico,
rendeu à autora o Prêmio Moreira Campos
de Contos do ano de 2010, e é composto por 22 contos. Com prefácio de Tércia
Montenegro, apresentação de Pedro Salgueiro e posfácio d’O Poeta de Meia-Tigela, essa obra, aclamada sobretudo pela originalidade do estilo,
aponta para um talento que dificilmente arrefecerá, tamanho se mostra em suas peculiaridades.
Tércia Montenegro, a propósito dessa obra, afirmou
que foi fisgada logo pelo primeiro conto que leu: Alameda do Castelo nº 1824. Eu, no entanto, me senti fisgado, desde a minha primeira leitura, pelo conto: Joana
no dia de seu avesso. A personagem evocada no título, cujo nome e “ações”
poderiam nos remeter à santa do hagiológio católico Joana D’Arc – santa que foi
considerada louca, condenada à morte e, posteriormente, canonizada como virgem
mártir pela mesma igreja que a vitimou –, pareceu-me intrigante já no primeiro
contato. Se não bastasse a propensão a ser cerceada por um universo
falocêntrico que poderia subalternizá-la em sua condição de mulher, Joana “enlouquece”
e é confinada em um hospital psiquiátrico. Mais uma vez o vínculo com o
hagiológio surge na imagem mais que lírica da possível morte de Joana que, como
nos apresenta a autora, ateou fogo ao próprio corpo (CALOU, 2011, p. 28): “Foi então
que, numa Sexta-feira da Paixão, Joana, a louca, [...] sentiu um frio sem
precedentes e, para aquecer-se, ao perceber já não haver ali mais nada a ser queimado,
ateou, distraidamente, fogo ao próprio corpo”. Suicídio, ou acidente, já que
foi distraidamente que Joana, a louca, atirara fogo ao próprio corpo?
Outro
conto que suscita dúvidas: teria Antoine sido morto literalmente, ou seria uma
metáfora criativa de um narrador que precisava libertar-se de um sentimento
patético que o vinculava a este? E se morrera de fato, teria Antoine fingido que
estava morto apenas para, ao retornar, meter medo em quem tentara matá-lo? E se
o retorno de Antoine não for senão fruto de uma consciência atormentada que o
ressuscitou dos mortos para atirar contra si mesma a punição por não mais
comportar, silenciosamente, a culpa por um gesto de necessária libertação?
Enquanto
Antoine volta, Claus vai embora. E mais um mistério nos é atirado contra o
rosto: aonde foi esta personagem controversa? E como não fosse suficiente esta
indagação, surge uma nova: e se Claus não tiver existido? Eis a pergunta que o
narrador faz a si mesmo para, em seguida, tentar convencer-se de que esta
personagem de fato existira (ibidem,
p. 29 – 30): “Penso [...] ser muito razoável que tenha existido, pois em um
canto atrás das roupas escondo um papelzinho com sua assinatura [...]”.
E
em outros janeiros – mês que aparece com obsessão em vários contos da autora e que
nos possibilita a hipótese de relacioná-lo à ideia de que, sendo o primeiro mês
do ano, seria também representativo de um possível recomeço, de uma aparente iniciação
– surgem outras personagens complexas que merecem ser analisadas em seus psicologismos.
Devo
lembrar que, ao desenvolver alguns contos com o foco narrativo autodiegético, a autora consegue desenvolver o fluxo de consciência que a
aproxima dos contistas intimistas que repensaram o gênero conto – gênero cujas abordagens
teóricas não definitivas ainda se esforçam para conceituar, delimitar, sempre
com insucesso, como se tem constatado.
Para
mim, dentre as personagens, valor incalculável atribuo – claro que Joana ainda
é a minha preferida! – à personagem Beethoven do conto Quase uma fantasia. A pergunta que norteia as incursões sobre esta
personagem ecoará por muito tempo em minha mente (ibidem,
p. 47): “É que Beethoven foi aos poucos ensurdecendo ou foi o mundo quem de
repente emudeceu?” Parece que outras perguntas poderiam existir paralelas a esta, instigadas pela ideia que surge nas entrelinhas
do texto, dentre as quais destaco a seguinte: o homem aos poucos perdeu o
sentido ante a existência que sequer lhe foi dada escolher, ou foi o mundo que
não mais o possibilitou pensar sobre si mesmo massacrando-o com uma existência
vazia e inexpressiva?
Além dessas reflexões que os contos que compõem essa obra nos instigam, as personagens Hilde,
Céu, Dóris, Rosa Mauveira, Cabelo do Cão, Amábile, Querubim, dentre outras, foram idealizadas e concretizaram-se por meio de
uma linguagem trabalhada que torna o texto lírico e inovador. O tom irônico, as
metáforas, as gradações, as aliterações doam teor de prosa-poética ao texto.
Um exemplo rápido – para não dizer que não
exemplifiquei nada a que aludi neste ponto desta breve apresentação – salta aos olhos no conto
Antoine voltou a pé. Refiro-me à metáfora que é
construída por meio de uma aliteração mais-que-bem-trabalhada (ibidem, p. 19): “Ocorre-me, porém, a
cruel possibilidade da dúvida, a faca cega do engano afiada na pele, na
ausência de pedra-pome”. A propósito da ironia, um exemplo perfeito poderia ser
localizado no conto Joana em dia de seu avesso (ibidem, p. 27): “Quando
passou a vestir roupas avessadas foi convidada a vesti-las adequadamente ou
retirar-se do restaurante na cadência doce dos empurrões”.
Mais que recomendável, esta obra deve figurar
como um exemplo de que o conto pode ser ressignificado quando a mão que o
empreende sabe o que faz por estar movida pelo talento, marca mais que perceptível
na obra de Ângela Calou. Diferente do narrador do conto que intitula a obra,
que diz (ibidem, p. 44): “Eu tenho
medo de Górki e nunca, nunca vou tomá-lo em minhas mãos”, devo dizer, parafraseando-o,
desta feita referindo-me ao livro dessa contista minha conterrânea, que: eu não tenho medo do Eu tenho
medo de Górki & outros contos e sempre vou tomá-lo em minhas
mãos para reviver suas personagens.
Por fim, devo dizer que Ângela Calou, nascida em
Juazeiro do Norte – CE, além de poetisa e contista, é Graduada em Filosofia
pela Universidade Federal do Ceará – UFC – e Mestra em Filosofia pela
Universidade Federal da Paraíba – UFPB.
Texto de: Émerson Cardoso
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