sábado, 26 de dezembro de 2015

CRÔNICA: "NATAL, SOLITÁRIO NATAL".


As pessoas temem a solidão. E até é compreensível. Eu decidi fazer, este ano, um exercício: decidi ficar sozinho neste natal de 2015. Moro num bairro de estudantes na cidade de João Pessoa – PB, no entanto meus familiares, e maior parte dos amigos, estão no Ceará. Permaneci sozinho com a intenção de ler, escrever, pensar. Também realizei algumas tarefas. Recorri com certa reserva aos recursos eletrônicos que me possibilitaram alguma comunicação. Acrescentei a isto o ato de acordar, alimentar-me, andar um pouco, ouvir canções que ampliassem a alma...

Esta decisão, obviamente, é cômoda, porque bastaria uma passagem comprada e eu teria gente com quem passar o feriado natalino! Mas e se não houvesse condição para comprar a passagem, se não houvesse familiar ou amigo a quem encontrar? Estar sozinho, neste caso, seria uma tragédia existencial dolorosa demais!

Quando saí de casa, na noite de natal, para descansar a mente, vi pouquíssimas pessoas pelas ruas. Bairro de estudante fica vazio em período de recesso da universidade, sobretudo em dia de feriado tão bem reputado nacionalmente. Além disto, a maior parte deles deve ter viajado porque tinha esta opção – assim espero!

Como disse, foi possível ver pessoas pelas ruas. Numa parada do ônibus, por exemplo, uma idosa entrava em si mesma com seu fixo olhar à espera de um transporte público que a conduziria para um destino, tomara Deus, menos obscuro que aquele ponto solitário em que ela estava a ruminar a solidão. Numa esquina, mais à frente, um rapaz tentava vender frutas aos poucos carros que atravessavam a avenida principal do bairro – com que disposição ele se erguia da calçada quando o sinal fechava para ouvir nãos que se repetiam por meio de gestos ou sons de vozes distanciadas. Recostada a um poste, no meio de um dos quarteirões, uma moça passeava uma das mãos pelos cabelos. Ela me olhou temerosa, afinal eu era um dos poucos viventes a andar naquela hora – e era cedo da noite  em sua direção, depois baixou a vista para nunca mais erguê-la sob meu olhar que a devassou discretamente até que por ela passei. Um idoso sujo, desgrenhado, barbudo, espargia impropérios contra outro idoso que ria de alguma coisa – ambos pareciam alcoolizados – de frente a uma agência bancária. E só.

Choveu na noite anterior, o dia nublou sem águas, a noite de natal foi um tanto fria. Os estabelecimentos comerciais estavam livres da opressão cotidiana a que seus funcionários são submetidos. Meu passeio desolador findou quando cheguei à iluminada Praça da Paz. Realmente, a paz reinava ali – ao menos aparentemente. Havia pouca gente espalhada em seus espaços. Chamou minha atenção uma moça e um rapaz que tão próximos estavam um do corpo do outro, num abraço, que fiquei perplexo: ainda há singeleza no mundo! Depois, duas crianças corriam sob vigilância do pai abobalhado e da mãe ensimesmada que os vislumbrava afastada. O pai, meu Deus, como era cúmplice na simplicidade excedente de seus filhos risonhos! E este pai, que desprezava meu olhar discreto, porém perscrutador, abraçou o filho com amor sincero e o beijou na testa. A filha, enciumada, certamente, exigiu dele o mesmo gesto e ele, obediente como um adulto frágil, abraçou a ciumenta dando-lhe mil beijos que fizeram rir a criança e a mãe que distante os observava.

Não suportei flagrar tanto amor. Fugi depressa, antes que a luz me ofuscasse e meu silêncio se transformasse em súplica. Vinha um ônibus, entrei... Um homem me desejou boa noite com bondade no tom de voz. O motorista tinha os olhos cansados. Um rapaz escutava, de olhos fechados e assanhados cabelos, indiferente ao movimento do coletivo, alguma canção que eu desconhecerei por toda uma eternidade. Desci do transporte, andei um pouco, sob efeito de escuro e silêncio, e agradeci a Deus por ter chegado intacto em casa. Tenho dúvida: cheguei intacto?

Depois, comi restos do almoço, escrevi um pouco, tomei um banho triste e tentei dormir. As pessoas temem a solidão – palavra mais linda da língua portuguesa, para mim –, porque a solidão tem peso de chumbo. Estar só pode ser entrar demais em si mesmo e, sinceramente, neste mundo superficial, e de felizes natais desejados de modo tão automatizado, olhar para si mesmo, e descobrir-se a olhar para os outros, pode assustar. Eis uma experiência que me enriqueceu, certamente. Mas não quero me acostumar demais com esse exercício, pois devemos aproveitar as pessoas que temos, e amamos, enquanto elas podem ser amadas. E foi assim.


Émerson Cardoso
26/12/15  

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