Convidaria para uma festa as minhas
professoras do Ensino Fundamental e Médio, que estariam diante de mim com o que
consegui resguardar delas. O que diria a elas? Que foram relevantes para minha
vida? Que as estimava com devoção?
Na surpresa do reencontro, ririam
as simpáticas. As mais sérias permaneceriam em silêncio. Eu passearia a vista
pelo ambiente e começaria a identificá-las. Não atentaria para a ordem em que elas
apareceram em minha vida.
Em sobressalto, aquela que apertou
minha mão, levando-me aos curativos quando me feri na escola, respondeu: “Não,
eu nunca vou te esquecer!” Era o último dia de aula quando a pergunta foi
feita. Ela permaneceu comigo, para sempre, através de sua letra que imito até
hoje.
A primeira que nos impediu de
chamá-la de Tia, ensinou à turma duas canções inesquecíveis. A primeira, trilha
sonora do filme A noviça rebelde, ensina as notas musicais. A segunda,
meu Deus, traz em sua melodia a face inteira dessa professora: “Já podeis da
pátria, filhos, ver contente a mãe gentil...” Ela atirou-se da janela de um
hospital psiquiátrico. Lecionava em três turnos e era um ser humano com uma
vida pessoal. Eu fui para seu velório. Diante dela, eu fiquei em profundo
silêncio.
Outra, de muitos cabelos e pouca
sensibilidade nas palavras, me acusou de rir demais. Talvez ela não tenha
entendido que, para não morrer, diante de uma vida indigna, rir era tudo o que
eu tinha.
Outra professora, muito humana, sorriu
com minha promessa: eu disse que um dia, ao reencontrá-la, iria dizer:
“Professora, eu também sou Professor!” Ela me deixava ajudá-la com as provas na
hora da correção e dizia que já havia conhecido quase todas as capitais do
Nordeste. Eu, em minhas viagens para capitais, sempre me lembrei de me
perguntar: “Ela já veio aqui?”
Uma professora, após a morte do
pai, vestida de luto, com muita angústia no fundo dos óculos espessos, entrou
na sala, sentou-se à mesa e permaneceu calada, sofrida, estática. O que nunca saiu de minha mente foi a
capacidade que essa professora teve de dizer tanto em silêncio tão cortante.
Outra, muito loira, vaidosa,
esotérica, preocupada em combinar as cores das roupas com as cores dos
acessórios, disse em sala de aula que a empregada lhe havia perguntado se dava
para fritar ovo em micro-ondas. Ela gargalhou sem refletir que poderia haver
alunos ali cujas mães (iguais à minha) também poderiam ser empregadas
domésticas.
Duas outras professoras eu as quero
lembrar a partir da simplicidade e simpatia delas. Uma era baixinha, usava
óculos, tinha um cabelo amarrado com rigor e lecionava como se estivesse
declamando. Eu amava escutá-la. A outra, também baixinha, fazia a turma se
movimentar, pois surgia sempre com um trabalho novo para ser apresentado em
sala. Todas as vezes que escuto a palavra Greenwich
essa professora me vem inteira.
Tive uma professora que me
emprestava livros. Lembro que o primeiro livro que ela me emprestou foi Amor
de perdição, de Camilo Castelo Branco. Eu lhe perguntei, ainda no Ensino
Fundamental: “O que eu devo fazer se eu também quiser ser Professor?” Ela
disse: “Faça Letras!” E eu iniciei uma larga marcha, desde esse dia, em busca
do curso para o qual nasci.
Por falar em literatura, tive uma
professora que era insana na aparência e apaixonada por essa área do
conhecimento que tanto amo. Ela portava uma garrafa azul em todas as aulas e os
meus colegas de turma, os mais irreverentes, diziam que a garrafa estava cheia
de uma “poção mágica” que explicava seu aspecto alucinado. A ela mostrei meus
primeiros contos. Recebi dela o melhor em estímulos.
Outra professora passou uma
produção textual que iniciava: “Naquele dia, eu me sentia diferente, pois...” E
eu completei: “...era meu aniversário”. No texto, coloquei as sensibilidades de
minha alma confusa de adolescente. A professora escreveu na folha de redação
palavras tão humanas, e depois me procurou e ensinou, com um gesto, o que uma
professora deve ser e fazer diante da existência anônima de um aluno
angustiado.
Uma professora de História, em
certa aula, para controlar a turma, contou sobre as dificuldades que viveu e as
lutas que empreendeu para superar as limitações da vida. Em certo ponto, ela
começou a chorar sem controle. A turma silenciou diante de seu testemunho
comovido e eu, que não era dado a abraços, me levantei e a abracei.
Minhas professoras de Matemática
foram poucas. Uma tinha um sotaque carioca irreverente. Com ela aprendi a
desenhar formas geométricas. A outra ensinava, com propriedade, os números que
eu detestei a vida toda. Seu método tornava a Matemática uma marcha difícil
para mim, porém tão aprazível, pois seu tom de voz e pacificidade eram
admiráveis.
Tive uma professora que ministrava
aula olhando só para mim. Havia algo forte que eu admirava nessa professora,
mas eu nunca soube dizer exatamente o quê. O que eu admirava nela, Deus, seus
olhos verdes e incisivos, ou sua beleza e inteligência tão peculiares?
Certa professora, esta muito
sóbria, racional e de vasto conhecimento, tinha a melhor das posturas. Era respeitável,
competente, exigente e de um tom de voz perfeito. No mundo, uma profissional
como ela é uma raridade. Foi essa senhora discreta e fina quem me fez o maior
elogio que um dia recebi, e receberei, na vida: “Você é um grande ser humano!”
Eu luto todos os dias para estar à altura do elogio. Creio que, em verdade, o
grande ser humano nesta história é ela, de voz inconfundível que eu escuto como
se tivesse gravado cada sílaba pronunciada.
Lembro-me afetuosamente da
professora que passou um estudo sobre o poema de Manuel Bandeira: Poema
tirado de uma notícia de jornal. Lembro-me de sua voz dizendo: “João
Gostoso”. E os seus lábios ficavam excessivamente arredondados. Escrevi um
poema, dei-lhe de presente e ela guardou com carinho. Sua serenidade é
inesquecível.
Ainda hoje reflito sobre o modo de
ser de uma professora que eu conheci. Ela mostrava nos olhos uma espécie de
fuga. Ela desejava, mas o quê? Demonstrava medo, insatisfação, silêncio, mas às
vezes ria com riso discreto. Quem era aquele ser humano fantasiado de
professora? Quais eram suas feridas existenciais?
Pois bem, antes de parar de falar
delas, das professoras da minha vida, devo me lembrar da primeira professora
que me ensinou sem estar em sala de aula. Ela morava num cubículo e ministrava
aulas para os meninos da vizinhança. Ela era tão triste, sozinha, abandonada...
Depois dela, me veio a escola com
as duas primeiras professoras oficiais de minha vida. A primeira, que ficou
pouco tempo, tinha cabelos curtos, óculos presos por um fio prateado e
seriedade extrema. A segunda, que acolheu a turma em seguida, com os cabelos
sempre assanhados, trazia revistas em quadrinhos e as espalhava sobre a mesa,
para minha felicidade de leitor iniciante.
Estive em sala de aula com várias
professoras. As tradicionais, carrascas, foram poucas. As marcantes, humanas,
foram muitas. Embora eu tenha querido citar todas, talvez tenha me esquecido de
alguma, o que não quer dizer que todas não sejam significativas. Agora, por
exemplo, me veio a imagem da única professora que me forçou a realizar Educação
Física. Eu ia à igreja pela manhã e ela, ao me ver passar com a farda da
escola, me raptou e disse: “Primeiro a obrigação, depois a devoção!” Até ela,
que só vi uma vez, ficou para sempre em mim através deste lugar-comum.
Queria nessa festa dizer às minhas
professoras o quanto a vida foi difícil. Estudar, sem estímulo em casa, e
sofrendo toda sorte de bullying, não é coisa tranquila de se
vivenciar. No auge das dificuldades, no entanto, sempre houve uma delas que me
dizia como superar as limitações. Elas me davam forças até quando silenciavam.
No pátio da memória, vou revendo as
faces afixadas nas paredes do que sou. A imagem de cada uma delas compõe a alma
que tenho construído. Ficará em mim, enquanto houver memória, a existência
profunda dessas mulheres que me ensinaram sobre a vida. Com umas, aprendi como
ser um profissional exemplar. Com outras, aprendi como reivindicar meus
direitos, como superar os momentos de conflito, como ser gente, como utilizar a
palavra para entender e enfrentar o mundo.
Por falar em palavras, as que
escrevo passam a ter peso de chumbo, porque estão perpassadas por um tempo que
não volta. Não sei onde encontrar minhas professoras para uma demonstração de
afeto. Não sei se estão bem. Não sei de suas vidas ou mortes. Não sei. Eu as
quero felizes sempre.
Maravilhoso e emocionante. Você, Émerson, se tornou um Grande ser humano.
ResponderExcluirObrigado pela leitura, gentileza e elogio! Espero ser humano, no melhor sentido do termo, um dia. Abraço!
ExcluirQue sensibilidade nesse texto! Aliás essa é uma marca registrada sua. Mas na delicadeza do tema, nas lembranças emergidas à memória... Não tem como a gente não se sensibilizar com tudo isso! Automaticamente, as lembranças também vão me invadindo. Não é mais um texto só seu, passa a ser de nós todos, leitores!
ResponderExcluirObrigado pelas palavras tão gentis! Sua leitura dos meus textos me deixa gratificado! Abraço!
ExcluirÉ de uma sutileza. Gostaria, em outros tempos, de ter sido sua professora ou pelo menos alguma auxiliar notável, só para respingar trechos desse agradecimento em mim.
ResponderExcluirObrigado pela leitura e gentileza das palavras! Abraço!
ExcluirC'est très beau, mon petit!
ResponderExcluirVocê é um ser humano incrível e deve ser um professor maravilhoso!
Kissus :*
Obrigado pela leitura e palavras gentis, Sara!
ExcluirQue lindooo !
ExcluirQue bom que você gostou, Hilda! Obrigado pela leitura! Abraço!
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