Quando uma obra de arte vai às últimas consequências
em sensibilidade e beleza: assim é Pacarrete.
Este é o título do filme de estreia do cineasta Allan Deberton que traz
Marcélia Cartaxo no papel principal.
A personagem evocada no título do filme, uma artista
com diversas facetas (toca piano, desenha e é bailarina), deseja dar de
presente à cidade de Russas – CE, sua terra natal que vai completar 200 anos,
um presente de aniversário: ela quer realizar uma apresentação de balé no palco
principal da festa que a prefeitura promoverá.
A meta da personagem Pacarrete está delineada: ela
deseja oferecer ao povo de sua terra o que ela de melhor tem em si: sua arte.
Tem início, com isto, uma sôfrega jornada para a personagem, pois o que está em
jogo não é somente a ideia de convencer as pessoas da prefeitura, incumbidas de
realizarem a festa, a darem espaço para que sua homenagem seja realizada, mas tentar
mostrar que sua arte não está ultrapassada. Tendo em vista que ela valoriza a música
erudita e o balé clássico, diante de um espaço que acorre a outros valores que
diferem daqueles que ela tem a oferecer, conseguir realizar sua meta torna-se
um imenso desafio.
Marcélia Cartaxo, uma das maiores atrizes do país,
dá vida a Pacarrete com uma atuação singular. Essa personagem tem uma altivez
de alma que entra em choque com o prosaísmo do espaço no qual está inserida.
Disso resulta um descompasso: sua alma está propensa à sensibilidade, à
vivência do que é belo, à criação artística, no entanto ela é tolhida, porque
precisa cuidar de uma irmã doente, lidar com a incompreensão das pessoas e com
a incomunicabilidade nas relações.
Marcélia Cartaxo mostra em sua atuação essas camadas
da personagem com uma maestria que merece todos os elogios. É, sem dúvidas, uma
das maiores atuações já vistas no cinema nacional. Ela vai do teor cômico ao
mais profundo do drama, com lirismo sempre, sem nunca fugir da complexidade da
personagem. Corpo e alma estão entregues à profusão de sentimentos e emoções da
frágil e intensa Pacarrete que, para o povo, é uma louca, mas para o espectador
é uma alma em conflito: o mundo não comporta sua mente repleta de palavras,
ideias e fabulações que só canalizando para a arte a deixariam em paz.
Sem poder realizar-se em sua arte, Pacarrete
transita entre dois modos de expressar-se: por vezes, ela é singela, doce e "chique" (para utilizar um termo francês tão ao gosto dela); por vezes, ela é
agressiva, desbocada, arrogante e teimosa. Aliás, teimosia é o que melhor a
caracteriza – é essa capacidade de teimar que a conduz, obstinadamente, à luta
aparentemente vã contra um mundo que parece não comportá-la. Parafraseando uma
das personagens, o que ela tem a oferecer ao povo, esse povo, infelizmente, não quer e não gosta. Numa comemoração
regada a forró e seus correlatos, seria possível uma apresentação de balé clássico?
Pacarrete não suporta o mundo que a rejeita – talvez por isto sua vontade de ir
para a França. A França para a qual ela quer ir, em verdade, é fruto da
idealização com a qual ela alimenta seu mundo repleto de arte e delicadezas.
Além da imensa Marcélia Cartaxo, contamos com
atuações grandiosas nesse filme. A atriz Zezita Matos é Chiquinha (irmã de
Pacarrete que depende dela por estar presa a uma cadeira de rodas) e a atriz Soia
Lira é Maria (uma mulher muito solícita que trabalha na casa das duas irmãs). Essas
duas atrizes dão vida a personagens delicadas, profundas e líricas. Talentosas
e comprometidas em realizarem trabalhos de relevo, com a presença delas no
filme temos uma tríade feminina que realiza o que há de perfeito e belo numa obra
cinematográfica.
Há uma voz masculina no filme, que é o ator João Miguel.
Ele interpreta o comerciante Miguel que está presente na vida das três
personagens, sobretudo na vida de Pacarrete. Enquanto a cidade a vê como uma
louca, ele a vê com atenção e afeto. Sua grandeza de alma o possibilita entrar
na fabulação de Pacarrete e isso os aproxima, se não numa relação
afetivo-amorosa (que muito a agradaria), numa relação de amizade que se mostra
sincera.
Outras atrizes aparecem com atuações que também merecem
nota como: Samya de Lavor (excelente no papel de “antagonista” de Pacarrete), Débora
Ingrid e Edneia Tutti Quinto. Tudo concorre, nesse filme, para uma atmosfera de
criatividade, dedicação e preparo. O sucesso de crítica e os prêmios recebidos comprovam
que esse trabalho, de fato, foi feito com excelência. Figurino, fotografia,
direção de arte, coreografia e trilha sonora, enfatizo, são irreprocháveis!
A propósito, Allan Deberton, que já havia realizado trabalhos
como Doce de coco (2010), O melhor amigo (2013) e Os olhos de Arthur (2016), dentre muitos
outros, estreia no cinema de longa-metragem com Pacarrete (2019). Allan Deberton é um diretor, roteirista e
produtor inquieto e criativo, com Pacarrete
ele mostra o quanto é promissor em sua carreira. Desde a escolha do elenco até o
olhar atento para o roteiro, também escrito por Natália Maia, André Araújo e Samuel
Brasileiro, esse filme dirigido por ele é realizado com maestria.
A ansiedade para assistir a esse filme foi
compensada, devo dizer, por uma das mais felizes experiências que eu tive como
espectador apaixonado por cinema! Ele entra para o rol dos meus preferidos, aliás
ele entra para o rol dos maiores filmes do país. Podemos nos orgulhar, como
brasileiros que somos, porque apesar dos tempos sombrios que temos vivido,
quando a Educação, a Cultura e as Artes têm sido desvalorizadas por visões que
dialogam com o autoritarismo, nós encontramos gente produzindo arte em seu sentido
mais amplo. Ver Pacarrete foi um
alento para a alma! Precisamos de luz no final dos muitos túneis obscuros nos
quais temos passeado no Brasil, indigestamente, e o filme Pacarrete, com sua mensagem de amor à vida e à arte, é um sol iluminando
a quem tem a oportunidade de vislumbrá-lo. Eu estou feliz, porque estou
inebriado com essa luz! Que esse filme premiado e aclamado ilumine, também, o Brasil e o mundo!
Émerson Cardoso
25/06/2020
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