Ela
fechou a porta do quarto. Encostou-se à parede oposta à porta – último apoio na
prelibação da queda. Seus olhos eram espessas águas. Relâmpagos fotografavam o
silêncio em sua boca.
Antes...
–
Você me causa nojo! Não presta pra nada! Não vale nada! – Gritou o marido.
–
Eu realmente não valho nada porque sou casada com um verme, um monstro, um
cretino da sua igualha! – Respondeu ofendida.
O quarto fechado e a lembrança da pancada no rosto.
Quatro paredes azuis que se movimentavam contra seu corpo. Nenhuma janela lhe
era possibilidade. O teto parecia perceber o patético da cena e ria sádico. Havia
o chão e a sensação de abraçá-lo. Os móveis se deformavam como imagens imersas
em profundas águas. Ela também descia às profundezas. Seu vestido estava
envergonhado de cobri-la. O tempo exigia um gesto. O quarto enregelou-se. Ela
não seria nunca mais ela mesma se...
Antes...
– Repita! – Levantou-se o marido que estava sentado
à cabeceira da mesa em que ela e os três filhos jantavam.
– Verme! Monstro! Cre-ti-no! – Explodiu com
desafiadores olhos.
A mão que tocou tantas vezes seu corpo... A mão que
fez juras de amor... A mão que trazia um símbolo de compromisso firmado... A mão revoou na atmosfera gélida da sala de jantar e, como ave de rapina que em um golpe arrebata a presa, cessou o voo em seu rosto. Ela recebeu calada e
esmiuçada e perdida e ferida e destruída a pancada. Os filhos não desviaram o
rosto: “Como olhá-los novamente?” E agora que os cacos da família caíram sobre
si, faria o quê? Precisava de uma ação. Precisava de forças para a ação, mas...
O que fazer quando regida pelos olhos amedrontados dos filhos? O que fazer com
a fúria do marido? O que fazer quando treze anos trituram o rosto de uma mulher
sozinha?
Ao quarto deslocou-se em contígua embarcação.
Tempestade assolou seu sombrio mar. Os raios se repetiam continuamente em seu
rosto, que ardia em fogo. Entre afogar-se e permanecer no chão que lhe faltava,
havia somente medo de que...
Antes...
– Essa carne é de que múmia? Você não presta nem pra
fazer um bife! – Falou o marido de boca cheia.
– Fico impressionada com sua gentileza! – A esposa
ofendida.
– Com você a gente esquece qualquer gentileza! – O
marido de boca cheia.
– Sugestão, meu amor, não coma da carne que “você” me
fez comprar com o pouco dinheiro que restou da farra que você deve ter feito
ontem! Quanto às suas gentilezas de búfalo, dispenso todas elas! – A esposa
muito ofendida.
– Eu detesto essa ironia sua! Coisa de mulher baixa!
Você parece aquelas mulheres que se vendem... – Usou eufemismo
preocupado com a presença inestimável das crianças.
– Eu devo parecer, realmente, com esse tipo de
mulher... A diferença é que faço o mesmo que elas desde que casei, mas faço isso
gratuitamente, por burrice minha! Sou tão baixa que nem pra ser baixa eu
prestei! Mas cuidado: as coisas podem mudar!
– Pensando bem, nem pra isso você ia prestar! Você é
tão ruim que eu acho que ninguém pagaria por seus serviços que, sinceramente,
nunca foram bons! – O marido, com boca cheia, sorriu com escárnio.
– Como eu consigo conviver com uma pessoa como
você?! E peço, por favor, que você pare com essa baixaria diante dos “meus”
filhos. – Disse com sofreguidão e levantando-se. Seus olhos não escondiam as
olheiras da noite mal dormida.
Pancada no rosto na frente dos filhos! Olhou para o
espelho sobre a cômoda. Como confrontar a si mesma em um olhar? O marido nunca
esteve tão dentro dela como naquela noite. Duas almas em um só corpo, dois corpos em uma só alma e uma só carne. Ela
encostou-se na parede e respirou, como se buscasse no mais profundo de si a
possibilidade de permanecer viva. A carne. A carne em fragmentos. A carne sobre
a mesa esperando putrefação. Os olhos das crianças conduziram-na para a
travessia. O mar explodia em seu rosto com relâmpagos e trovoadas.
Antes...
– Baixaria diante dos “seus” filhos? Olha só quem
fala! A pior baixaria é ter que viver com você, sua... – Tentou se conter e
partiu mais um pedaço de carne. Engoliu-a.
– Você parece que está com algum problema, não é?
Pra jogar em mim suas frustrações como você faz, criatura educada, só estando
com problema! Mas o que foi mesmo que aconteceu? O seu patrão percebeu o quanto
você é desonesto, ou foi a sua “outra” que decidiu trocar você por um sujeito
menos idiota? Será que as pragas da sua mãe começaram a cair sobre você, ou os
credores decidiram que você é um irresponsável? Caso tenha um desses problemas,
meu amor, desconte neles e não em mim, eu mesma não tenho nada a ver com sua
vidinha de adolescente!
– Você dá nojo a qualquer um... Só sabe dizer
asneiras... Também, tendo as irmãs e a mãe que tem... Eu poderia esperar o quê?
– A carne na mesa para ainda ser comida: uma boa porção.
– Coma mais carne, meu amor, parece que gosta de
múmia... Coma e não se esqueça de engasgar e morrer sufocado!
– É lógico que gosto de múmia! Eu casei com você,
esqueceu?
– Seu imundo!
– Imunda é você, que me causa nojo só de pra você
olhar! Você não presta pra nada! Não vale nada! – Gritou o marido.
– Eu realmente não valho nada porque sou casada com
um verme, um monstro, um cretino da sua igualha! – Respondeu ofendida.
– Repita! – Levantou-se o marido que estava sentado
à cabeceira da mesa em que ela e os três filhos jantavam.
– Verme! Monstro! Cre-ti-no! – Explodiu com
desafiadores olhos.
Ela não escutou mais nada e, no auge da tempestade,
houve um raio que a atingiu no rosto. Torre ao chão, engoliu a saliva – saliva
transformada em sangue – e arrastou-se para o quarto. No quarto, precisaria
agir, mas... Dos olhos jorraram sombras e medos e angústias e treze anos de
subserviência. O que fazer? Os olhos dos filhos guiariam por quanto tempo sua
embarcação? Foi então que ela... Ela arrastou pelo corredor uma desalinhada
mala e, altiva, finalmente, foi embora para nunca mais.
CARDOSO, Cícero Émerson do Nascimento. A carne. In: Breve estudo sobre corações endurecidos. Maricá - RJ: Ponto da Cultura Editora, 2011. p. 15 - 18.
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