Fonte: Divulgação do Centro Cultural do Cariri
Engana-se quem pensa que Metendo a boca, título instigante e provocativo do monólogo do ator Ricardo Tabosa (que ele dirige em parceria com a talentosa diretora Elisa Porto), entrega de forma explícita sua proposta temática. Leia esse título, enfatizo, com vistas a observá-lo com toda a força polissêmica que ele concentra em suas camadas profundas e prepare-se, pois Rafael Martins cria um texto dramático de apuro estético incomensurável.
Minha afirmação parte de duas experiências vivenciadas ao assistir a essa peça no sábado e no domingo, dias 12 e 13 de julho de 2025, no Centro Cultural do Cariri. A primeira experiência diz respeito ao entusiasmo de ver um ator em perceptível domínio do seu ofício. A segunda tem a ver com a identificação imediata e comovedora com o texto de Rafael Martins (as temáticas exploradas ao longo da peça me proporcionaram uma experiência catártica de amplas proporções).
Para me remeter ao primeiro ponto, que tem a ver com o entusiasmo que Ricardo Tabosa me despertou, preciso dizer o seguinte: esse ator traz vivacidade ao monólogo (ele é incansável, mantém o fôlego e cria profundidade na relação com o público) e domina as técnicas inerentes à dramaturgia (do gesto ao olhar, da entonação das palavras às camadas profundas do texto a que dá vida, tudo nele reverbera a capacidade de fazer explodir no corpo, em contínuo movimento, a complexidade humana com intensidade, domínio técnico e consistência). Em verdade, o espetáculo em seu todo, do figurino à direção, passando pelo texto dramático e pelo ator que o mimetizou, merece elogios.
Para me remeter ao segundo ponto, voltado para minha identificação com as temáticas exploradas no texto, preciso considerar o seguinte: envolto em uma leitura equivocada do título, eu entrei no teatro como se estivesse certo de que assistiria a uma peça repleta de componentes eróticos e momentos cômicos (claro que teria sido bom encontrar isso também!). Não digo que não houve, a propósito, momento para o erótico (o figurino não me deixa mentir!) e para o cômico (sinto que Ricardo Tabosa passeia com maestria pelo universo delicado do cômico), mas esse espetáculo, cujo emprego de recursos audiovisuais acontece com criatividade, apuro e pertinência, é construído com uma densa proposta: há metalinguagem (o jogo teatral se descortina, em vários momentos, com alusões aos componentes constitutivos da peça), há denúncia de casos de homofobia (sem cair no mero didatismo tão em voga em se tratando do tema), há crítica social (o uso de ironia é bem empregado ao trazer, dentre outros aspectos, reflexões semânticas em torno do termo "jeitinho"), há uso criativo de estruturas linguísticas locais (a cena cômica em que existe uma voz representada pelo microfone vazio demonstra isso) e há memória (um ponto alto na peça está nesse componente sobre o qual falarei mais enfaticamente).
Para mim, a memória se caracteriza, direta ou indiretamente, como um ponto alto da peça. Ela volta à década de 1980, era de domínio do programa infantil apresentado por Xuxa, e rememora um dos desenhos animados mais famosos exibidos no programa: She-Ra. Na peça, o episódio A perda da voz é mencionado e estabelece uma perfeita relação com as questões discutidas no enredo. No episódio, a feiticeira Sombria, aliada do grande vilão Hordak, cria um feitiço que consiste em capturar a voz das pessoas. She-Ra, a bela, forte e misteriosa heroína, age no sentido de salvá-las — e consegue fazê-lo. No final do episódio, Geninho tece comentários acerca da liberdade de expressão.
A peça alude, ainda, ao fato de que: 1) She-Ra é uma personagem feminina cujo figurino sensual e cujos cabelos volumosos "atiçam", no melhor sentido, o imaginário das crianças (e as crianças LGBTs, por exemplo, poderiam ter nessa imagem um universo rico de possibilidades de expressão); 2) She-Ra detém caracteres femininos e detém a capacidade de defender-se e de ajudar, heroína que é, as pessoas necessitadas; 3) Xuxa, que também estimula a imaginação infantil com seus figurinos, tem uma canção intitulada She-Ra (1986), isto é, assim como outras canções interpretadas pela apresentadora, era muito comum ouvi-la em festas de aniversário infantil. Essas e outras imagens surgem com maestria no texto. Ele conduz quem o escuta a uma viagem no tempo entre dolorosa e complexa, sobretudo se quem o escuta for uma pessoa que, igual a mim, foi criança no final da década de 1980 e no início da década de 1990.
Devo confessar que, tendo vivido cenas parecidas com as que foram relatadas, a comoção foi inevitável. Quando Ricardo Tabosa, em cena, coloca um banco à direita do palco, falando da criança que foi agredida, reprimida e xingada, era eu (ou minha infância destruída em casa e na escola?) quem estava sentado lá. A solidão da criança que tem um "jeitinho", que não é heteronormativa, é muito bem representada na peça. Esse componente explora o universo da memória, com suas vivências dolorosas, mas passíveis de serem revisitadas e reconfiguradas, de modo que ter visto isso em cena me levou a uma experiência catártica como poucas vezes pude vivenciar assistindo a uma peça.
Para encerrar, certo de que esse breve comentário não alcança em absoluto a complexidade do espetáculo Metendo a boca, preciso dizer da alegria vivida pelo Cariri neste mês de julho de 2025. Em Juazeiro do Norte-CE, no CCBNB-Cariri, a peça foi apresentada em duas sessões. No Crato, no Centro Cultural do Cariri, a peça também foi apresentada em duas sessões (eu assisti as duas e participei da atividade formativa A desmontagem: workshop sobre a construção do espetáculo). Torço para que esse monólogo volte muitas vezes por aqui, pois ele é arte em seu sentido pleno e precisa chegar a mais pessoas. Afirmo, sem hesitações, que esse foi o melhor espetáculo teatral apresentado no CCBNB-Cariri e no Centro Cultural do Cariri que eu assisti neste ano de 2025.
Enfim, como foi gratificante ouvir minha voz sair da bolha pela voz de Ricardo Tabosa, que nos proporcionou experiências lírico-catárticas e mostrou o quão necessário é construir espaços para entrarmos em contato com o que há de melhor em teatro e liberdade de expressão.
Meter a boca no trombone (isto é, falar!) pode nos salvar em vários sentidos. Eu, portanto, vou Metendo a boca no mundo para dizer: assistam a esse monólogo notável e vivam essa experiência libertadora!
Émerson Cardoso
13/07/2025