sábado, 12 de julho de 2025

RICARDO TABOSA EM "METENDO A BOCA": UMA EXPERIÊNCIA CATÁRTICO-LÍRICA

 
Fonte: Divulgação do Centro Cultural do Cariri


Engana-se quem pensa que Metendo a boca, título instigante e provocativo do monólogo do ator Ricardo Tabosa (que ele dirige em parceria com a talentosa diretora Elisa Porto), entrega de forma explícita sua proposta temática. Leia esse título, enfatizo, com vistas a observá-lo com toda a força polissêmica que ele concentra em suas camadas profundas e prepare-se, pois Rafael Martins cria um texto dramático de apuro estético incomensurável.  

Minha afirmação parte de duas experiências vivenciadas ao assistir a essa peça no sábado e no domingo, dias 12 e 13 de julho de 2025, no Centro Cultural do Cariri. A primeira experiência diz respeito ao entusiasmo de ver um ator em perceptível domínio do seu ofício. A segunda tem a ver com a identificação imediata e comovedora com o texto de Rafael Martins (as temáticas exploradas ao longo da peça me proporcionaram uma experiência catártica de amplas proporções).

Para me remeter ao primeiro ponto, que tem a ver com o entusiasmo que Ricardo Tabosa me despertou, preciso dizer o seguinte: esse ator traz vivacidade ao monólogo (ele é incansável, mantém o fôlego e cria profundidade na relação com o público) e domina as técnicas inerentes à dramaturgia (do gesto ao olhar, da entonação das palavras às camadas profundas do texto a que dá vida, tudo nele reverbera a capacidade de fazer explodir no corpo, em contínuo movimento, a complexidade humana com intensidade, domínio técnico e consistência). Em verdade, o espetáculo em seu todo, do figurino à direção, passando pelo texto dramático e pelo ator que o mimetizou, merece elogios.

Para me remeter ao segundo ponto, voltado para minha identificação com as temáticas exploradas no texto, preciso considerar o seguinte: envolto em uma leitura equivocada do título, eu entrei no teatro como se estivesse certo de que assistiria a uma peça repleta de componentes eróticos e momentos cômicos (claro que teria sido bom encontrar isso também!). Não digo que não houve, a propósito, momento para o erótico (o figurino não me deixa mentir!) e para o cômico (sinto que Ricardo Tabosa passeia com maestria pelo universo delicado do cômico), mas esse espetáculo, cujo emprego de recursos audiovisuais acontece com criatividade, apuro e pertinência, é construído com uma densa proposta: há metalinguagem (o jogo teatral se descortina, em vários momentos, com alusões aos componentes constitutivos da peça), há denúncia de casos de homofobia (sem cair no mero didatismo tão em voga em se tratando do tema), há crítica social (o uso de ironia é bem empregado ao trazer, dentre outros aspectos, reflexões semânticas em torno do termo "jeitinho"), há uso criativo de estruturas linguísticas locais (a cena cômica em que existe uma voz representada pelo microfone vazio demonstra isso) e há memória (um ponto alto na peça está nesse componente sobre o qual falarei mais enfaticamente). 

Para mim, a memória se caracteriza, direta ou indiretamente, como um ponto alto da peça. Ela volta à década de 1980, era de domínio do programa infantil apresentado por Xuxa, e rememora um dos desenhos animados mais famosos exibidos no programa: She-Ra. Na peça, o episódio A perda da voz é mencionado e estabelece uma perfeita relação com as questões discutidas no enredo. No episódio, a feiticeira Sombria, aliada do grande vilão Hordak, cria um feitiço que consiste em capturar a voz das pessoas. She-Ra, a bela, forte e misteriosa heroína, age no sentido de salvá-las — e consegue fazê-lo. No final do episódio, Geninho tece comentários acerca da liberdade de expressão.

A peça alude, ainda, ao fato de que: 1) She-Ra é uma personagem feminina cujo figurino sensual e cujos cabelos volumosos "atiçam", no melhor sentido, o imaginário das crianças (e as crianças LGBTs, por exemplo, poderiam ter nessa imagem um universo rico de possibilidades de expressão); 2) She-Ra detém caracteres femininos e detém a capacidade de defender-se e de ajudar, heroína que é, as pessoas necessitadas; 3) Xuxa, que também estimula a imaginação infantil com seus figurinos, tem uma canção intitulada She-Ra (1986), isto é, assim como outras canções interpretadas pela apresentadora, era muito comum ouvi-la em festas de aniversário infantil. Essas e outras imagens surgem com maestria no texto. Ele conduz quem o escuta a uma viagem no tempo entre dolorosa e complexa, sobretudo se quem o escuta for uma pessoa que, igual a mim, foi criança no final da década de 1980 e no início da década de 1990. 

Devo confessar que, tendo vivido cenas parecidas com as que foram relatadas, a comoção foi inevitável. Quando Ricardo Tabosa, em cena, coloca um banco à direita do palco, falando da criança que foi agredida, reprimida e xingada, era eu (ou minha infância destruída em casa e na escola?) quem estava sentado lá. A solidão da criança que tem um "jeitinho", que não é heteronormativa, é muito bem representada na peça. Esse componente explora o universo da memória, com suas vivências dolorosas, mas passíveis de serem revisitadas e reconfiguradas, de modo que ter visto isso em cena me levou a uma experiência catártica como poucas vezes pude vivenciar assistindo a uma peça. 

Para encerrar, certo de que esse breve comentário não alcança em absoluto a complexidade do espetáculo Metendo a boca, preciso dizer da alegria vivida pelo Cariri neste mês de julho de 2025. Em Juazeiro do Norte-CE, no CCBNB-Cariri, a peça foi apresentada em duas sessões. No Crato, no Centro Cultural do Cariri, a peça também foi apresentada em duas sessões (eu assisti as duas e participei da atividade formativa A desmontagem: workshop sobre a construção do espetáculo). Torço para que esse monólogo volte muitas vezes por aqui, pois ele é arte em seu sentido pleno e precisa chegar a mais pessoas. Afirmo, sem hesitações, que esse foi o melhor espetáculo teatral apresentado no CCBNB-Cariri e no Centro Cultural do Cariri que eu assisti neste ano de 2025. 

Enfim, como foi gratificante ouvir minha voz sair da bolha pela voz de Ricardo Tabosa, que nos proporcionou experiências lírico-catárticas e mostrou o quão necessário é construir espaços para entrarmos em contato com o que há de melhor em teatro e liberdade de expressão. 

Meter a boca no trombone (isto é, falar!) pode nos salvar em vários sentidos. Eu, portanto, vou Metendo a boca no mundo para dizer: assistam a esse monólogo notável e vivam essa experiência libertadora! 

Émerson Cardoso

13/07/2025








segunda-feira, 7 de julho de 2025

LIVRO: "ENSAIOS SOBRE GÊNEROS DIGITAIS"

Com imensa alegria, compartilhamos o livro Ensaios sobre Gêneros Digitais. Este livro dispõe de ensaios que apresentam estudos voltados para apontamentos em torno de Gêneros Digitais (principalmente no contexto de ensino de Língua Portuguesa) e para explanação de demais debates alusivos à Educação Digital.

Esses ensaios resultam de reflexões propostas, em sua maioria, no âmbito das atividades do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência–PIBID, com atuação na Escola de Ensino Médio Governador Adauto Bezerra. O PIBID está vinculado à Universidade Regional do Cariri–URCA e conta com apoio institucional da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoas de Nível Superior–CAPES, o que possibilita o desenvolvimento das pesquisas aqui  apresentadas, assim como outras atividades relevantes para a experiência docente dos bolsistas e supervisores envolvidos no projeto.    

Esta coletânea é resultado da Oficina de Ensaio Acadêmico, que foi ministrada por mim e envolveu a participação de estudantes do PIBID e de docentes da EEM Governador Adauto Bezerra. A experiência da oficina propiciou a realização de debates sobre produção acadêmica e a construção dos ensaios aqui compartilhados.

Sendo assim, esperamos que a leitura dos ensaios que se seguem seja uma experiência de amplas aprendizagens, assim como foi de amplas aprendizagem, para os autores e as autoras, o exercício de produzi-los. Partimos da ideia de que conhecimento adquirido deve ser sempre compartilhado. Por isso, compartilhamos esses ensaios construídos com o objetivo de instigar reflexões e de proporcionar debates plurais dentro e fora do âmbito escolar. 

Boa leitura!


Acesse nosso livro, 

gratuitamente

no link:

Ensaios sobre Gêneros Digitais



quarta-feira, 18 de junho de 2025

MARTELO AGALOPADO: "TEMPESTADE TAMBÉM ACABA UM DIA"







 

TRILOGIA DO CARIRI CEARENSE: PEÇA TEATRAL "A REVOLTA DE ANTONINA"


Antígona, a insubmissa filha de Édipo, serviu de inspiração para que eu criasse Antonina — a sonoridade do nome e os fatos que constituem o enredo da peça evidenciam isso. Diferente da jovem grega, Antonina é uma sertaneja nordestina, viúva, sem familiares próximos, que acaba de perder um filho e depara-se com a tirania de um coronel que a impede de sepultá-lo. Três pontos nortearam minha escrita:

1) Decidi escrever essa peça em continuidade a uma ideia que tive de discorrer sobre o Cariri cearense em três obras realizadas nos três gêneros literários: lírico, dramático e narrativo;

2) Antonina é uma personagem feminina que, como tantas outras mulheres nordestinas fadadas a viverem sozinhas, pelas circunstâncias da vida, traz em si a força de resistir em meio a um espaço que exige da mulher, por vezes, força física, condição sine qua non para manutenção de sua sobrevivência, e também força psicológica para encontrar em si coragem de enfrentar o poder de certo coronel que manda e desmanda em uma típica localidade do Cariri cearense;

3) Antonina é uma personagem que reúne as mulheres fortes de minha família. Ela, como toda boa mãe nordestina, atribui ao filho grande valor, porém o destino (ou as ações/reações da vida?) faz com que ela experimente a pior dor que uma mãe poderia experimentar: ver um filho morto. Para sepultá-lo, ela tem que buscar forças para enfrentar a mão de ferro de um coronel tirânico e sádico, vestido em pele de cordeiro.

No mais, espero que Antonina alcance seu objetivo e seja compreendida em suas dores. Espero, para ela, cumplicidade. Lembremo-nos de que ela fala por quem, muitas vezes, não tem voz contra o poderio de gente desalmada.  


Tenha acesso, gratuitamente, à peça no link:

A Revolta de Antonina

terça-feira, 27 de maio de 2025

EXPERIÊNCIAS ESCOLARES EXITOSAS QUE DEIXARÃO SAUDADE

Em 2025, a EEM Governador Adauto Bezerra vivenciou duas experiências escolares exitosas envolvendo a criatividade e o esforço da Prof.ª Ma. Éricka Sobreira[1]: 1) o Projeto práticas corporais de aventuras (que consiste em realizar a tradicional subida ao Horto) e 2) o Projeto 2º Grau em Ação.

Projeto práticas corporais de aventuras consiste em conduzir estudantes do 2º ano do Ensino Médio (a Professora Éricka ministra a disciplina de Educação Física para estudantes dessa série) ao ponto turístico mais relevante da cidade de Juazeiro do Norte-CE. Durante o trajeto, estudantes realizam a caminhada na denominada Rua do Horto (espaço de peregrinação de romeiros que visitam a cidade e que tem se transformado, cada vez mais, em lugar para atividades físicas). A caminhada termina no ponto mais alto da cidade, local em que está localizada a imagem do Padre Cícero Romão Batista.




Ao propor essa atividade, a Professora Éricka promove atividade de Educação Física, mas também contribui para que estudantes vivenciem uma experiência de contato com: 1) a história da cidade, 2) o ponto turístico dos mais visitados do Nordeste, 3) um dos espaços de preservação do Geopark Araripe e 3) o contato com a realidade sociocultural e sócio-histórica da denominada cidade dos romeiros. Durante a experiência, existe o contexto de interação entre professores e estudantes, o que torna o momento lúdico, interativo e agradável.

Quanto ao Projeto 2º Grau em Ação, que está em sua décima sexta edição, neste ano, ele foi idealizado e realizado, ao longo desses anos, para alcançar a comunidade escolar em seu todo. Com isso, estimula o protagonismo dos estudantes, promove saúde física e bem-estar, cria momentos de interação e, do meu ponto de vista, caracteriza-se por ser de grande relevância para a construção identitária da escola. 



O 2º Grau em Ação é desenvolvido com o envolvimento de estudantes, o que nos possibilita dizer que o protagonismo juvenil é vivenciado na prática. Embora receba apoio da Gestão Escolar e do Corpo Docente, o 2º Grau em Ação é desenvolvido, intensamente, desde o processo de organização até o momento em que tem sua culminância, pelo esforço da Professora Éricka e dos estudantes supervisionados por ela.  

No contexto de sua realização, que ocorreu no dia 21 de maio, foram oferecidos atendimentos diversos: 1) brinquedoteca, 2) teste de glicemia e de outras questões de saúde, 3) aferimento de pressão arterial, 4) tipagem sanguínea, 5) limpeza de pele, 6) massagem, 7) roda de conversa, 8) orientações de saúde física e psicológica, 9) orientação jurídica, 10) oficina de educação financeira, 11) oficina de defesa pessoal, 12) cinema para divulgação da Língua Brasileira de Sinais–LIBRAS etc.

As turmas da 2ª Série do Ensino Médio são, novamente, as envolvidas no Projeto. Elas são articuladas, com apoio da idealizadora do projeto, e organizam-se com o objetivo de tornar possível o evento. Enquanto as ações são realizadas, a comunidade escolar espalha-se nos corredores, nos pátios e nas salas de aulas reorganizadas para os atendimentos.

Essa edição do Projeto 2º Grau em Ação, em especial, se realizou envolta na seguinte sensação: ela fecha um ciclo, com chave de ouro, pois a Professora Éricka completará, neste ano, o tempo de que necessitava para cumprir sua missão em nossa escola. 

Enquanto as atividades do 2º Grau em Ação aconteciam, pensei que esse projeto foi significativo demais para o desenvolvimento da escola, porque propagou saberes, proporcionou interações, bem-estar comunitário e, sobretudo, construiu memórias afetivas.

Desde sua fundação, em 1977, a EEM Governador Adauto Bezerra contou com muitos profissionais que contribuíram para torná-la uma escola de referência. A Professora Éricka também faz parte desse grupo dedicado que merece reconhecimento. Ela também olhou para a escola com dedicação, mesmo quando os desafios que se impõem no âmbito educacional foram adversos a seu desejo de tornar a escola um lugar de amplas possibilidades.  

Como a vida é de impermanências, a sensação que temos, por vezes, é a de que tudo passa rápido demais. Desse modo, pode parecer que não conseguimos realizar os projetos idealizados, mas a Professora Éricka pode se alegrar, porque em sua vida profissional (seja em sala de aula, seja fora dela) conseguiu realizar grandes feitos (a prova disso são esses dois projetos, dentre os vários que ela realizou, que mostram o quão bem-sucedida ela foi). 

O tempo parece levar tudo sem considerar, quando ele passa, o quão frágeis nós somos. O tempo já não levou dezesseis anos desse evento que tanto amplia a experiência de nossa escola? Quando se vai, ele tende a querer apagar os cenários nos quais vivemos, mas ainda nos é dado guardar memórias. 

Esses projetos ficarão em nossas memórias, certamente, também o exemplo de dedicação e de envolvimento da Professora Éricka, que teve a coragem de transformar uma ideia em realidade. 

Agora, enquanto escrevo, parece justo dizer da alegria que sinto por ter visto em nossa Escola, por três vezes, o Projeto práticas corporais de aventuras e o Projeto 2º Grau em Ação ganharem vida. Nós que compartilhamos do afeto por nossa escola, repleta de boas memórias construídas, apesar dos desafios do cotidiano, só temos a agradecer à Professora Éricka. Ela é consciente de sua função social e, por ser uma profissional admirável (seja pela firmeza de caráter, seja pela dedicação ao trabalho), não se permitiu (e não se permite) passar pela escola sem torná-la um lugar digno e acolhedor, repleto de aprendizagens e de interações, o que nos ensina uma grande lição: é preciso ter coragem para enfrentar os desafios e concretizar nossos ideais.    

Para encerrar, gostaria de dizer que a Professora Éricka é bisneta de uma figura histórica importante de nossa cidade: o comerciante Aureliano Pereira da Silva[2]. Ele foi o romeiro alagoano a quem o Padre Cícero vaticinou que seria pai de 36 filhos que contribuiriam para o desenvolvimento de Juazeiro do Norte. Sendo assim, a Professora Éricka está de parabéns, pois pode comemorar por ter cumprido, por suas contribuições na Educação, a profecia do Padre Cícero, que disse que os descendentes de seu bisavô contribuiriam para o desenvolvimento de nossa cidade. 

Que o legado dessa Professora notável nunca seja esquecido!

Émerson Cardoso

28/05/2025



[1] Éricka Maria Pereira Sobreira de Araújo é graduada em Educação Física, tem especialização em Planejamento e Políticas Educacionais e em Gestão Escolar. Professora de Educação Física com ampla experiência, com atuação no Ensino Fundamental, no Ensino Médio e no Ensino Superior, ela é mestra em Saúde da Criança e do Adolescente e tem diversas várias práticas de projetos em suas atividades docentes.

[2] A história de Aureliano Pereira da Silva foi contada no romance O Padre e o Romeiro, de Geraldo Menezes Barbosa. Ele também é retratado à mesa o Padre Cícero no Museu Vivo localizado no Horto.

 





segunda-feira, 5 de maio de 2025

A PEÇA "SERTÃO CONFEDERADO" ENCANTA O CARIRI

          

Foto: sintafce.org.br

No dia 02 de maio de 2025, às 19h, o escritor Mailson Furtado realizou, na Biblioteca Pública Municipal do Crato, o lançamento do livro Sertão Confederado. Nacionalmente conhecido por sua trajetória literária no âmbito da poesia, o autor também é um dramaturgo notável, sobretudo se considerarmos a obra mencionada, que foi construído em colaboração com o Grupo Criar de Teatro, Cia Prisma de Artes e Herê Aquino.

 

No dia seguinte ao lançamento do livro, às 20h, os dois grupos teatrais apresentaram, no Teatro Adalberto Vamozi, a peça Sertão Confederado. Como é evocado no título, a obra discorre sobre o movimento político ocorrido no Nordeste do Brasil, há 200 anos, denominado Confederação do Equador.

 

Quando o público entra, é recebido por duas imagens: uma visual e uma sonora. A imagem visual se dá pela apresentação da personagem Ana Triste, que escreve, sentada em uma cadeira postada sobre um móvel de madeira, com caderno e pena nas mãos — uma espécie de diário ou livro de memória? O espectador constata, desde o início, que ela será a narradora da ação da peça. A imagem sonora, por sua vez, se dá ao som do violão que conduz os espectadores (como se fossem levados a viajar por um túnel do tempo) à atmosfera que remete ao contexto histórico explanado na peça.  

 

Essas duas imagens, simbolicamente, prevalecerão no enredo. A narrativa de Ana Triste, entre intensa e introspectiva, é o fio condutor da ação dramática. A música, onipresente no espetáculo, reforça a pretensão do texto de envolver o público, sobretudo emocionalmente, quanto aos eventos políticos do Brasil após a independência.  

 

Explicitado o contexto histórico da peça, ela faz um recorte: trata da presença (em tudo relevante) do Ceará nesse movimento, que envolveu vários estados do Nordeste, contra o governo brasileiro do início do século XIX — um governo lastreado pela monarquia. Desse modo, o elenco se move pelo palco em cenário minimalista (com falas, cantos ou danças), dando vida às figuras históricas cujos nomes são conhecidos (mas  ainda não suficientemente reconhecidos) pela efetiva participação na Confederação do Equador.

 

Esse recorte é muito bem delineado no texto dramático, de autoria de Mailson Furtado (que dá vida ao herói Tristão Gonçalves de Araripe e também oferece ao espetáculo seu conhecimento musical), uma vez que a dramaturgia apoia-se em apurada pesquisa histórica e cultural. Os diversos conteúdos colhidos são transformados em componentes de ação capazes de envolver o público. Nesse sentido, em meio à explanação de aspectos históricos, políticos e memorialísticos, o autor acerta na linguagem empregada, uma vez que articula: 1) a retórica dos discursos políticos e eclesiásticos com criatividade, 2) o lirismo do discurso de Ana Triste (que é melancólico, mas transgressor e provocativo, de modo que ela transgride tempo e espaço em sua narrativa repleta de prolepses analepses) e 3) o prosaico nos discursos, sobretudo, de personagens secundárias em contexto cômicos etc.

 

Algo a ser considerado, também, nessa perspectiva, é o uso de fugas cômicas no plano da ação e da linguagem que, sem descaracterizar o tom sério e de contornos trágicos predominantes no texto, consegue incitar ao riso em vários momentos. O texto mostra, na superfície e em suas camadas profundas, a presença da configuração trágica. Apesar disso, se permite a atos de comicidade em momentos pontuais — o que o torna dinâmico e instigante.

 

Além disso, outro aspecto notável da peça é o uso de componentes das tradições orais. Isso fica nítido, principalmente, quando canções e danças concentram, em suas melodias e coreografias, valores que remetem à cultura popular. As composições exibidas e as coreografias apresentadas tornam a peça lúdica, ágil, expressiva e lírica. A plateia interage, em vários momentos, com o elenco. Nas coreografias, não é difícil localizar menções ao reisado, maneiro-pau, coco de roda etc.

 

Sendo essa a apresentação de estreia, é notório o potencial dessa obra, que conseguiu expor o contexto histórico-político sem cair em didatismos impertinentes, linearidades acríticas ou clichês narrativos. Ao contrário disso, os recursos dramatúrgicos, utilizados com originalidade, tornam a experiência de adentrar o universo complexo da Confederação do Equador algo prazeroso.

 

A propósito, a peça é dirigida pela experiente e criativa Herê Aquino, que faz um trabalho notável em torno do texto dramático de Mailson Furtado. Quanto à cenografia, certamente em nítido diálogo com a diretora, Chico Henrique opta pela criação de um cenário conciso, objetivo e prático na transição de cenas. Por exemplo, o móvel sobre o qual Ana Triste se apresenta sentada, no início e no desenvolvimento da ação da peça, transforma-se em diversos outros itens — de mesa utilizada para reunião de Bárbara de Alencar com seus adeptos, a barco utilizado por Thomas Cochrane, esse móvel concentra surpresas que funcionam perfeitamente a serviço da dramaturgia.

 

Aspecto notável no espetáculo é o elenco e a caracterização primorosa das personagens. Estamos diante de dois grupos teatrais com atores e atrizes que dão vida a personalidades históricas marcadas por dois ângulos de visão: o propagado pela oficialidade histórica e o propagado pelo imaginário.

 

Com base nisso, são retomadas: 1) figuras femininas como Bárbara de Alencar (Luisete Carvalho), a matriarca cujas ideias tornaram-na a primeira presa política do país, e Ana Triste (Yane Cordeiro), a fiel esposa que se enlutou, para sempre, depois da morte do marido amado; e 2) figuras masculinas como Tristão Gonçalves Araripe (Mailson Furtado), líder do movimento no Ceará, Pereira Filgueiras (Raimundo Moreira), comandante das armas, e José Martiniano Pereira de Alencar (Maycon Wiliam), dentre outras personalidades relevantes da Confederação do Equador.  

 

Merece nota o fato de que os/as artistas se revezam na interpretação de uma mesma personagem, também assumem outras atividades no desenvolvimento da ação — especialmente no trabalho com a música, que é um dos pontos altos do espetáculo. Embora ocorra essa amplitude de funções, o elenco as realiza com leveza e fluidez, criando harmonia cênica.

 

As personagens são compostas, com maestria, pelos dois grupos teatrais unidos para realização dessa obra. Reforçam a caracterização delas excelente trabalho de figurino, cabelo e maquiagem. O figurino, criado por Chico Henrique e Ivanio Sousa, é significativo para a dramaturgia: no figurino permanente, prevalecem tons claros com  uso de vermelho e amarelo. Quando uma personagem surge na cena, ela é representada, também, pelo figurino que muda: é possível reconhecer a transição das personagens por meio da sobreposição de vestimentas. Além disso, é pertinente observar o azul, principalmente nas vestimentas masculinas.   

 

Na peça, existem momentos emblemáticos: 1] a cena da marcha (momento em que há uma apresentação de música e dança com coreografia remetendo à marcha dos revolucionários); 2] a cena da mesa de reunião (espécie de santa ceia de rebelados?) na qual Bárbara de Alencar tem destaque; 3] a cena do diálogo entre Pereira Filgueiras e o Governador Sampaio que, por meio de recursos cômicos (com espaço para um jogo metalinguístico), é realizado com auxílio de um mensageiro (Gal Saldanha) capaz de transgredir tempo e espaço para levar e trazer as correspondências dos dois políticos; 4] a cena da chegada de Thomas Cochrane (Maycon Wiliam) com o ajudante (Gal Saldanha), que é dos momentos mais cômicos da peça (Gal Saldanha e Maycon Wiliam estão excelentes na cena); 5] a cena em que ocorre o breve monólogo de Ana Triste ante a morte de Tristão Gonçalves (nesse momento, Yane Cordeiro emprega forte carga dramática e leva o espectador à comoção); 6] a cena em que Tristão Gonçalves é assassinado e levado em cortejo (deixando Ana Triste desolada).

 

Essas e tantas outras cenas são dignas de notas. Em verdade, é pertinente dizer: a peça em seu todo é rica em forma e conteúdo, é criativa em sua maneira de apresentar a Confederação do Equador, é dinâmica em sua predisposição a alternar o que é trágico e cômico; é harmônica em sua composição dramática; é consciente em sua articulação dos recursos dramáticos a serviço de contar uma história esteticamente constituída; é uma obra de arte, porquanto concentra itens indispensáveis ao que é artístico.

 

Sertão Confederado é uma experiência teatral intensa em vários aspectos, pois ela é atual em suas reflexões políticas, históricas e memorialísticas, também é rica pelo texto dramático e pelas atuações. Música, dança, canto e atuações tornam essa obra uma profusão de lirismo, dinamismo e vida.

 

REFERÊNCIAS:

 

FURTADO, Mailson. Sertão confederado. Varjota: Edições CriAr/Edições Fundação SINTAF, 2025.

 

Émerson Cardoso

03/05/2025

segunda-feira, 21 de abril de 2025

TRILOGIA PARA O CARIRI CEARENSE: ROMANCE "O CASARÃO SEM JANELAS"


Um escritor inseguro quanto ao seu ofício depara-se com uma cena: há uma velhinha sentada no alpendre de um casarão construído, há anos, no sopé da Chapada do Araripe, floresta que corta, dentre outras cidades, Crato – cidade das mais relevantes do Ceará. 

A partir dessa imagem, o escritor decide contar uma história. Quem construiu o casarão? Por que o construiu sem janelas? Quem era aquela velhinha solitária cujo olhar comovente parecia perder-se em cenário tão desolador? Na tentativa de desvendar o olhar anônimo dessa personagem, o escritor passa a contar a história do casarão, construído sem janelas, e a história de seus habitantes. 

Para contar essa história, o escritor dá voz a algumas personagens para que elas apresentem suas versões dos fatos. Com uma linguagem que tenta reproduzir as idiossincrasias linguísticas da região em que as personagens estão inseridas, surgem os depoimentos de Augusta (a ex-escravizada cujo comportamento ambíguo movimenta consideravelmente a trama) e das irmãs: Maria dos Anjos (dona do casarão e responsável por sua revitalização), Angelita (que, após um casamento conturbado, foge do marido e vai buscar abrigo no casarão da irmã) e Lina (a versão jovem da velhinha que, no início do romance, aparece no alpendre e estimula o escritor a desvendar sua história). 

Outras personagens ganham voz na enredística: uma personagem emudecida que se chama Maria Tacita (suas intervenções são indicadas por meio de pontilhados), o Tempo (que, ao narrar, parece primar por intenso lirismo), o Açude (que narra fatos vinculados, especificamente, à personagem Ana, filha de Angelita), o Silêncio (que, em verdade, é o não-dito da personagem Maria Tacita), a Solidão (que enfatiza a visita de Lina a Juazeiro do Norte, momento em que surge o Padre Cícero) e, por fim, o Casarão (que, considerado maldito pela circunvizinhança, apresenta uma versão elucidativa acerca de sua construção e das pessoas que nele habitam).  

O título da obra metaforiza a condição das personagens femininas que vivem o enredo. A ausência de janelas no casarão representa, nas camadas profundas do texto, a esterilidade a que a visão patriarcal submete a mulher. Vítimas dos mais diversos conflitos existenciais, as personagens desse romance formam uma confraria de sujeitos femininos que tentam, até mesmo contra o tempo e suas devastações, transgredir regras estipuladas socialmente e sobreviver – mesmo quando a morte parece algo inevitável.


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