segunda-feira, 28 de agosto de 2017

REFLEXÕES SOBRE 11 DE SETEMBRO - E O CAMPO MAGNÉTICO DA TERRA ESTÁ SENDO QUEIMADO PELO SOL


Ontem li algo sobre o sol: ele está queimando o campo magnético da Terra. Vento solar às toneladas vem em direção ao planeta desde o dia 04 de setembro. Hoje, 11 de setembro, é um dia emblemático. Nesta data, o mundo certamente se recorda do golpe militar aplicado por Pinochet, que exerceu governo ditatorial no Chile por 17 anos. 

Hoje, também, me queima o campo magnético da alma abismo e medo: se cai para sempre nas valas abertas e se tem que engolir a queda com olhar silente. O maior acidente ferroviário de Portugal, ocorrido em 1985, me vem à memória. A meus pés o vento parece brincar de morte. Tanto a viver, mas imprevistos existenciais tolhem nossas mãos de entrecruzadas linhas. E meu campo magnético sucumbe. Teria a ver com o "brasil" e suas impossibilidades? Com a América que se dissipa em furacões e terremoto nestes dias de insanidades e virtuais abrigos?  

Nasceu, em 1885, na Inglaterra, D. H. Lawrence (que eu nunca li). E o sol está queimando o campo magnético da Terra com punhal nos dentes e vermelhos olhos. O "brasil" está perdido, crianças nascem hoje e não sabem ao certo se haverá solução para o nascimento que as oprime. 

Aniversário de Theodor Adorno. O que devemos comemorar, Adorno: o domínio racional da natureza, ou o domínio irracional do homem? Campos de concentração já riram de nós em passado próximo, no entanto valados se despem à espera de novas carícias. Sem soluções, sem vida, sem nada, eu desço. 

De onde me vem este desejo absurdo de chorar sem conseguir nunca? Antero de Quental morreu em dia assim, vislumbrando esperança com duas carícias prateadas ferindo corpo e alma. Antero, irmão, quem nos dará a paz de espírito de que necessitamos para suportar a vida e seus mistérios? 

Carpina, Arcoverde, Cabrobó, Araripina, cidades pernambucanas, estão de feriado (outras cidades no "brasil" também, mas...). Comemoram emancipação, é isto? E seus moradores? Eu conheço um morador de Carpina que se tornou meu amigo: ele comemora que realizações nesta-data-querida? O campo magnético dos meus olhos ardem: escrevi até sangrar as mãos em tela de luz sombria.

Há algum dado a lembrar neste 11 de setembro? Minha memória não menciona nada. Ah! Morreu Jessica Tandy, a mais velha a receber um Óscar. E por falar em Óscar, que remete aos EUA, não foi hoje que Dane Clark morreu? 

Enquanto não consigo chorar, embora o abismo me instigue a isto, escuto Indochina, banda francesa que insiste em dizer, numa canção das minhas preferidas, que La vie est belle. Talvez seja, quem sou para desdizer tal assertiva? Mas o campo magnético de minha alma passa por holocausto, e eu não sei quem é o responsável: a vida, o mundo, o sol? Fecho os olhos, abro-os em seguida: e este gesto não alterou nada no rumo das coisas. Estou caindo, é certo, e minhas mãos estão em carne viva. 

Émerson Cardoso
11/09/2017

domingo, 13 de agosto de 2017

CONTO: "RESSURREIÇÃO NA CHUVA"


“As rãs virão sobre ti, sobre teu povo”. (Êxodo 8: 4)

Nuvens de chumbo ocultam o crepúsculo. Obscurecida praça. Quantas almas podem perecer com o dilúvio que se forma?

Nas sombras da praça tomou forma um vulto que procurou um banco e sentou-se. Era um homem de longa barba, sórdido aspecto. Na ignorância de ser, ele trazia nas mãos um saco tão encardido quanto sua roupa. O muito perambular pelas ruas da cidade rendera-lhe pouco dinheiro naquele dia. Cansado, e com previsão de chuva, passeou a mão no rosto, deixou-a cair. O braço esquerdo estava enrolado em amarelecido pano que purpúrea ferida, de purulentas bordas, ocultava. Era partícipe do clã dos mendigos aos milhões que, em nação desumana, sequer são percebidos como seres capazes de alguma humanidade. Trazia embrulhada em sua mendicância o desejo de ser um grande homem – com que ineficácia movia-se pela existência. O homem-mendigo-fatigado-impotente encostou o encardido corpo no banco da praça e tentou descansar. Quem o discriminaria por tentar repousar seu lúgubre mundo naquela obscura praça? Com olhos que desciam ao chão suspirou.

Surgiu nas sombras outro vulto que aos poucos tomou forma. Procurou um banco, sentou-se. Era uma mulher em corpo de homem, ou era um homem em corpo de mulher? Vestido vermelho, salto alto, bolsa na mão, imensos seios que loiros cabelos cobriam. Tinha cílios postiços, forte maquiagem, anéis e cordões prateados. Tinha unhas avermelhadas e longas. Ao sentar-se, respirou profundamente. Por vezes foi, aquele ser artificialmente construído, objeto de uso de vários homens. De tanto lutar contra a suposta natureza que lhe determinara o sexo, fatigadx estava. Não escolhera. Agora, sentadx em praça obscurecida, não suportava mais o peso que a solidão pode proporcionar aos transgressores da terra. Olhava para si mesmx e sentia-se num cárcere. Era uma mulher, desde sempre, mas estava presx por indevassáveis grades. Segurando com força as grades, gritando com veemência, percebia-se mulher, mas quem teria compaixão de tirá-lx daquele corpo que não lhe pertencia? Até quando carregaria sua letra escarlate? A voz paterna. De tempos em tempos, irrompia a voz paterna e o flagrante: o amigo da escola estava despido em seu quarto quando o pai entrou. Retirou o sexo do amigo da boca e balbuciou pedidos de desculpa. O pai arrastou-x pelos cabelos, esbofeteou seu rosto, tirou sangue de suas costas, em seu pescoço pisou, em seu corpo frágil de meninx desnorteadx cuspiu. E a dor maior: “Em minha casa aberração não quero!” Frias podem ser as avenidas. Naquele instante, no entanto, queria ter querido outro querer. Não arrependimento, porém queria ter podido optar. A cabeça baixou. Mãos cruzadas. Permaneceu na praça com sua desenhada face.

Outro vulto surgiu. Procurou hesitante um banco e sentou-se. Uma moça de saia longa e preta, óculos, cabelos presos, nas mãos um livro, pés em baixa sandália. Gorda. Sentada, contra o peito apertou o livro. Queria, num aperto, morrer – para sempre morrer. Queria nunca mais para casa retornar (engástulo, jaula, cárcere, gaiola, cela, cadeia, masmorra, calabouço, prisão, túmulo). Libertar-se de si mesma queria: morrer seria pleno. Sentia-se feia, pelo mundo rejeitada. Detestava os olhares alheios. Quis, na penumbra, chorar. Lispector nas mãos – o marcador na página em que constava A fuga. E se dieta fizesse? Uma professora de trinta anos e feia e pobre e gorda e míope ainda poderia encontrar o amor? Deus cria os bonitos para que os feios sofram e assim paguem, com a sensação de inferioridade, seus muitos pecados? Sentia o mundo como uma pancada ocular sobre seu muito corpo. Melancolia intermitente invadiu-a. Tateou em si a culpa por sentir-se a mais feia do mundo e permaneceu, arfante, com seu pesar morando ao lado.

Mas vai chover. Árvores dançam sob o vento. Das águas vêm punhais prateados que almejam perfurar desamparados olhos. Quanto à chuva, ela cai torrencialmente.     

O mendigo poderia erguer-se e ir-se embora. Decidiu, no entanto, permanecer. O corpo, gradativamente, ensopava-se de uma chuva tão fria quanto cortante. Era, o mendigo, na ânsia de limpar-se das sujeiras do corpo, um homem em busca de apenas ser. Era fênix ressurgida da poeira das ruas e calçadas. A chuva, austera e barulhenta e intensa, carregava cansaços e angústias. E ele, por alguns segundos, não se sentia mais homem das ruas. Não, o que poderia haver de mendicância em si acabava de descer nas águas. Curada a ferida, vermelhidão e pus não mais.

Ela-ele poderia ter fugido da chuva, ter protegido a maquiagem. Poderia cobrir com as mãos o rosto e proteger sua bolsa. Não quis fugir, dessa vez toleraria as pancadas. Ela-ele, fênix maquiada, tiresiana das avenidas, poderia ressurgir das cores do esmalte, do vermelho do batom, da circunferência dos seios apertados no vestido curto? Poderia ser, dali para sempre, a mulher que sempre quis? Poderia livrar-se, definitivamente, da artificialidade da aparência, dos hormônios em cápsulas? Queria nunca ter sentido do pai o ódio. Se mulher fosse, desde sempre, mas... Ela-ele decidiu, portanto: deixaria o paterno olhar descer nas águas e seria, eternamente, mulher. Sem culpa sem medo sem remorso sem dor: mulher seria. Ela permaneceu sentada, vitoriosa, felicíssima, imersa em profundas águas de uma chuva que eriçava a pele. Não teria mais avenidas a percorrer com sonolência e medo.

A moça que se achava a mais feia e gorda e míope do mundo deixou o livro molhar-se. Abriu as páginas com desprendimento e contemplou, estática, as personagens de Lispector descerem nas águas. Ocorreu-lhe que, se naquele dilúvio não estivesse, estaria deitada, muito limpa, pensando nas discriminações vividas durante o dia. A cama seria aconchegante, porém o frio da chuva, naquele instante, era-lhe um oásis. Olhou-se nas gotículas de chuva que se aglomeravam em suas lentes, depois a chuva levou-as. Sem óculos, sentiu-se livre. A partir dali não precisaria enxergar o mundo. A necessidade de lecionar, a angústia de ser sozinha, o anseio de morrer, tudo estava água abaixo descendo. Agora, era uma ave fênix ressurgida das letras de uma página que poderia ser reescrita, pois, num súbito, nova mulher se fazia. O dilúvio retirava seus medos aos pares e ordenava-os numa arca que não se abriria jamais. Permaneceu sentada enquanto a chuva tateava-a com orgia e frivolidade.

Eu já posso chorar, pois na chuva as lágrimas ficam imperceptíveis. Sem julgamentos, meus olhos podem finalmente deslizar em águas. Eu já posso chorar, eu já posso nascer! – Foi o que disseram para si mesmos.

Quando cessar o dilúvio – será necessário repovoar o mundo. Todos esperarão um ramo que lhes absolva e redistribua vida.  

Cílios, maquiagem, unhas postiças, batom, molhados cabelos. Ela, na penumbra, para o mendigo olhou e refletiu: “Mais um cliente que quer me usar por dinheiro pouco, mas hoje não sou de ninguém mais!” Ao mesmo tempo, olhou para a mulher que estava sentada a certa distância – não a tinha percebido ali. Aquela sim era satisfeita com a vida, ganhou um corpo que sua alma conseguia comportar. Já a moça gorda viu uma mulher jovem e de seios extravagantes num dos bancos à frente e pensou: “Aquela moça a felicidade é: com tão perfeito corpo, que sofrimentos enfrentaria?” O mendigo olhou para as moças e sentiu vergonha de que elas percebessem sua ferida. Era intenso o silêncio que os engolia. Gritos aos arroubos, íntimos, denunciavam a miséria existencial que os aprisionava. Tentaram fugir uns dos outros – talvez não suportassem o fato de que a água da chuva os tinha exposto demais. Tentaram, de repente, fugir como quem sente medo de ser, por impiedosos predadores, devorado. 

Os três, molhados e sob uma chuva que recomeçava, ergueram-se de súbito. Estavam vivos, embora encharcados. Estavam vivos, embora incertos. Saíram ao mesmo tempo de seus respectivos bancos, porém ficaram estupefatos: as gotículas de água da chuva transformavam-se em rãs e sapos que, com barulho, caíam no chão. Imensos, sangrando, abertos olhos, bocas abertas, rãs e sapos. Vísceras expostas, e corpos alquebrados na queda, eles interditaram todas as saídas. 

A tríade marchou enfrentando bilhões de anfíbios agonizantes na obscurecida praça. O mendigo apertou o passo intimidado pela mulher que se equilibrava no salto, e mulher que sentia inveja da mulher gorda que tentava andar sem óculos e que, com destreza, pulava os animais empoçados. A chuva na praça caía sem cessar – contra o chão, novos anuros. Depois, cessou a chuva e a estiagem, para sempre, carregou os três seres ressurgidos das águas. 

E o mundo nunca mais foi o mesmo.

REFERÊNCIA

CARDOSO, Cícero Émerson do Nascimento. Ressurreição na chuva. In: Breve estudo sobre corações endurecidos. Maricá - RJ: Ponto da Cultura, 2011.


CRÔNICA "O CHÁ", DE CLARICE LISPECTOR

 


 As imaginações que assustam. Pensei numa festa – sem bebida, sem comida, festa só de olhar. Até as cadeiras alugadas e trazidas para um terceiro andar vazio da Rua da Alfândega, este seria um bom lugar. Para essa festa eu convidaria todos os amigos e amigas que tive e não tenho mais. Só eles, sem nem sequer os entre-amigos mútuos. Pessoas que vivi, pessoas que me viveram. Mas como é que se volta da Rua da Alfândega ao anoitecer? As calçadas estariam secas e duras, eu sei.
Preferi outra imaginação. Começou misturando carinho, gratidão, raiva; só depois é que se desdobraram duas asas de morcego, como o que vem de longe e vai chegando muito perto; mas também brilhavam as asas. Seria um chá – domingo, Rua do Lavradio – que eu ofereceria a todas as empregadas que já tive na vida. As que esqueci marcariam a ausência com uma cadeira vazia, assim como estão dentro de mim. As outras sentadas, de mãos cruzadas no colo. Mudas – até o momento em que cada uma abrisse a boca e, rediviva, morta-viva, recitasse o que eu me lembro. Quase um chá de senhoras, só que nesse não se falaria de criadas.
– Pois te desejo muita felicidade – levanta-se uma – desejo que você obtenha tudo o que ninguém pode te dar.
– Quando peço uma coisa – ergue-se outra – só sei falar rindo muito e pensam que não estou precisando.
– Gosto de filme de caçada. (E foi tudo o que me ficou de uma pessoa inteira.)
– Trivial, não, senhora. Só sei fazer comida de pobre.
– Quando eu morrer, umas pessoas vão ter saudade de mim. Mas só isso.
– Fico com os olhos cheios de lágrimas quando falo com a senhora, deve ser espiritismo.
– Era um miúdo tão bonito que até me vinha vontade de fazer-lhe mal.
– Pois hoje de madrugada – me diz a italiana – quando eu vinha para cá, as folhas começaram a cair, e a primeira neve também. Um homem na rua disse assim: “É a chuva de ouro e prata”. Fingi que não ouvi, porque, se não tomo cuidado, os homens fazem de mim o que querem.
– Lá vem a lordeza – levanta-se a mais antiga de todas, aquela que só conseguia dar ternura amarga e nos ensinou tão cedo a perdoar crueldade de amor. – A lordeza dormiu bem? A lordeza é de luxo, é cheia de vontades, ela quer isso, ela quer aquilo. A lordeza é branca.
– Eu queria folga nos três dias de carnaval, madame, porque chega de donzelice.
– Comida é questão de sal. Comida é questão de sal. Comida é questão de sal. Lá vem a lordeza: te desejo que obtenhas tudo o que ninguém pode te dar, só isso quando eu morrer. Foi então que o homem disse que a chuva era de ouro, o que ninguém pode te dar. A menos que tenhas medo de ficar toda de pé no escuro, banhada de ouro, só na escuridão, mas só na escuridão. A lordeza é de luxo pobre: folhas ou a primeira neve. Ter o sal do que se come, não fazer mal ao que é bonito, não rir na hora de pedir e nunca fingir que não se ouviu quando alguém disser: esta, mulher, esta é a chuva de ouro e prata. Sim.



LISPECTOR, Clarice. O chá. In: ANDRADE, Carlos Drummond de [et al]. Elenco de cronistas modernos. 21. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005. 

RESENHA: "UM SOPRO DE VIDA", DE CLARICE LISPECTOR




Escrito ao mesmo tempo em que o livro A hora da estrela, que foi publicado em 1977 – ano em Clarice Lispector faleceu –, Um sopro de vida (Pulsações) está dividido em três partes: 1) O sonho acordado é que é a realidade, 2) Como tornar tudo um sonho acordado? e 3) Livro de Ângela.

Um sopro de vida foi apresentado ao público em 1978, em publicação póstuma, e traz à tona, assim como em A hora da estrela, a relação entre um autor (desta feita, não nomeado) e sua personagem (cujo nome já havia aparecido no conto A partida de trem).

Na epígrafe do livro, dispomos de citações do Antigo Testamento, no caso o livro de Gênesis. Também deparamo-nos com citações de Nietzsche, de Andréa Azulay e da própria Clarice Lispector.

Em seu primeiro parágrafo, o autor (1999, p. 13) – instância narrativa criada por Clarice Lispector – elabora uma espécie de prefácio em que aponta as direções a que acorrerá ao longo de sua escrita: “ISTO NÃO É UM LAMENTO, é um grito de ave de rapina. Irisada e intranquila. O beijo no rosto do morto”. Em seguida, em sua explanação sobre o ato de escrever, que nos remete ao tom metalinguístico recorrente na obra de Clarice Lispector, e também de intensa perscrutação, o autor (1999, p. 15) afirma:

Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto – e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente. Mas é um vazio terrivelmente perigoso: dele arranco sangue.

Ângela Pralini é apresentada já nesse suposto prefácio. O autor (1999, p. 19) diz: “Escolhi a mim e ao meu personagem – Ângela Pralini – e para que talvez através de nós eu possa entender essa falta de definição da vida”.
  
A propósito, surgem intensas especulações existenciais tão ao estilo de Clarice Lispector. Palavras como vida, morte, liberdade, felicidade, verdade, mentira e realidade vêm à tona e tomam maior proporção à medida que o autor passa a discorrer sobre sua escrita e sobre a criação de sua personagem.

Neste sentido, na primeira parte é possível observar que o autor, bem aos moldes do texto teatral, coloca o nome Ângela em destaque e elabora algumas informações sobre ela – o que é atípico é que, embora tratando-se da descrição de uma personagem ficcional, o autor a apresenta a partir de seu comprimento, largura, profundidade sempre relacionando-a consigo mesmo. Em seguida, ele (1999, p. 27) explica como a concebeu: “TIVE UM SONHO NÍTIDO inexplicável: sonhei que brincava com o meu reflexo. Mas meu reflexo não estava num espelho, mas refletia uma outra pessoa que não eu”.

Daí em diante, o autor elabora suas explanações até que resolve dar voz à Ângela que, mais uma vez, como percebemos nos textos teatrais, tem seu discurso enunciado a partir da indicação de seu nome que surge, concomitantemente ao nome do autor, em caixa alta.

Este recurso, que também nos remete ao estilo dos textos filosóficos de Platão, em que suas ideias são apresentadas a partir de diálogos, faz com que percebamos a personagem se descortinar de modo gradativo até que, libertando-se das limitações impostas pela visão do autor, ela ganha voz e, consequentemente, seu próprio livro. Temos, com isso, uma reflexão sobre a condição da personagem que chega a tão alto grau de intensidade interior que ultrapassa os limites da visão do autor que a engendra.

Segue-se, na segunda parte, que é a mais curta do livro, e sempre com ênfase na especulação metalinguística, uma reflexão do autor sobre o quanto poderia ser grandioso, para seu livro, se ele fosse capaz de criar acontecimentos que representassem um “estrondo” ou, como subentendemos, um clímax que desse ao texto status de narrativa aos moldes tradicionais. O autor discorre sobre a necessidade de tais acontecimentos, no entanto não faz concessões às exigências que estabelece para si mesmo: sua criação segue transgredindo os ditames estipulados, provavelmente, por concepções mais tradicionais sobre a narrativa e seus componentes.

Na terceira parte, intitulada O Livro de Ângela, deparamo-nos com a ‘criação da criação’, uma vez que o autor perde o controle sobre sua personagem e ela passa a construir sua narrativa ou, como ela denomina, seu “romance das coisas”. De fato, ela desenvolve uma espécie de catalogação de coisas, de objetos que a instigam, que a desafiam – ocasião em que ela, numa curiosa retomada de textos anteriores, menciona textos como O ovo e a galinha e Sveglia. Ressalte-se, nesse jogo catalográfico, a explanação sobre joias, que vai desde a observação liricamente construída sobre pedras preciosas até a elevação do caco de vidro, que ganha status e é colocado ao lado das joias. Poltrona, relógio, vitrola, casa, borboleta, carro, lata de lixo, dentre outros, são algumas das “coisas” sobre as quais ela discorre para, mais adiante, fazer emergir temas universais que tornam sua reflexão uma incursão filosófica de amplas proporções.

Ao fim, Ângela traz à tona, dentre outros temas, dois dos mais intensos: a morte e Deus. Sobre a morte, dentre outras especulações neste sentido, ela afirma (1999, p. 128): “Às vezes, só para me sentir vivendo, penso na morte”. E ela elabora questionamentos metafísicos quando se indaga (1999, p. 128): “Será que depois da morte começa a abstração?”

Quanto a Deus, ela diz em dois momentos, na tentativa de defini-lo, que (1999, p. 128): “Deus não é o princípio e não é o fim. É sempre o meio” e “Deus é como ouvir música: repleta o ser”. Inúmeras reflexões sobre Deus se seguem a esta, a ponto de Ângela realizar, em momento de intenso lirismo na obra, uma oração:  

Meu Deus, me dê coragem de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites, todos vazios de Tua presença. Me dê a coragem de considerar esse vazio como uma plenitude. Faça com que eu seja a Tua amante humilde, entrelaçada a Ti em êxtase. Faça com que eu possa falar com este vazio tremendo e receber como resposta o amor materno que nutre e embala. Faça com que eu tenha a coragem de Te amar, sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo. Faça com que a solidão não me destrua. Faça com que minha solidão me sirva de companhia. Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar. Faça com que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo. Receba em teus braços o meu pecado de pensar.
(LISPECTOR, 1999, p. 151 – 152)
           
 Encerramos essa resenha com a oração feita por Ângela Pralini que, em sua conversa com Deus, em prosa-poética de alto teor místico, recorre à espiritualidade em sua busca de existir em plenitude. Essa busca se manifesta, no âmbito da narrativa, pela desorganização da linguagem e pela desconstrução da narrativa. Muito é subvertido nessa obra e a personagem, que termina por sobressair-se ao autor, vivencia incompletude, esvaziamento e não-ditos que reverberam intensamente no plano da linguagem. Um sopro de vida trata-se, em vários aspectos, de um dos romances mais densos e admiráveis de Clarice Lispector.   

REFERÊNCIAS:

LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida (Pulsações). Rio de Janeiro: Rocco, 1999.