sexta-feira, 26 de setembro de 2014

MODERNISMO NO BRASIL (PARTE III)

Medo da senhora 
A escrava pegou a filhinha nascida
Nas costas
E se atirou no Paraíba
Para que a criança não fosse judiada.
(Mário de Andrade)


Poema do beco

Que importa a paisagem,a Glória,a baía, a linha do horizonte?
— O que eu vejo é o beco.
(Manuel Bandeira)

Moça linda bem tratada

Moça linda bem tratada,
Três séculos de família,
Burra como uma porta:
Um amor.

Grã-fino do despudor,
Esporte, ignorância e sexo,
Burro como uma porta:
Um coió.

Mulher gordaça, filó
De ouro por todos os poros
Burra como uma porta:
Paciência...

Plutocrata sem consciência,
Nada porta, terremoto
Que a porta do pobre arromba:
Uma bomba.

(Mário de Andrade)

MODERNISMO NO BRASIL (PARTE II)

MODERNISMO NO BRASIL (PARTE I)

O movimento modernista teve início em São Paulo, com a Semana de Arte Moderna, em 1922. Logo em seguida, expandiu-se por todo o país, renovando a ideia de se fazer literatura. Os autores desse período desejavam expressar-se livremente, privilegiando como tema a realidade brasileira. A linguagem torna-se mais coloquial, semelhante à nossa fala, e afasta-se dos moldes portugueses. 

Os acontecimentos da modernidade passam a receber maior enfoque, sobretudo os que se referem à civilização industrial, com suas máquinas e seu ritmo acelerado de vida, percebido também nas cenas quotidianas. Por diversas vezes, os autores fazem uso do humor em seus textos, introduzindo algo novo na literatura, pois até então o humorismo era considerado de mau-gosto e fora dos padrões estéticos. 

O Modernismo apresentou três fases distintas: 

PRIMEIRA FASE (1922 - 1930): (RUPTURA ESTÉTICA) marcada pela ruptura com as tradições literárias, "poema-piada", profundo nacionalismo, primitivismo, aversão ao passado histórico europeizado;

SEGUNDA FASE (1930 - 19450: (EDIFICADORA E IDEOLÓGICA) caracterizada pela construção de uma literatura renovadora, que origina a ficção nordestina e regional e o romance urbano, psicológico e introspectivo;

TERCEIRA FASE (1945 até a atualidade): (ESTÉTICA E IDEOLÓGICA) caracterizada por uma experiência profunda em termos de aspectos estéticos, além de trazer fortes discussões de caráter ideológico. 


LEITURA: "BARCO SEM RUMO", DE CORA CORALINA

"Partida do navio", de Vladimir Kush

Há muitos anos,
no fim da última guerra,
mais para o ano de 1945,
diziam os jornais de um navio fantasma
percorrendo os mares e procurando um porto.

Sua única identificação:
- drapejava no alto mastro uma bandeira branca.
Levava sua carga humana.
Salvados de guerra e de uma só raça.
Incerto e sem destino,
todos os portos se negaram a recebê-lo.

Acompanhando pelo noticiário do tempo
o drama daquele barco,
mentalmente e emocionalmente 
eu arvorava em cada porto do meu País
uma bandeira de Paz
e escrevia em letras de diamantes:
Desce aqui.
Aceita esta bandeira que te acolhe fraterna e amiga.

Convive com meu povo pobre.
Compreende e procura ser compreendido.
Come com ele o pão da fraternidade
e bebe a água pura da esperança.
Aguarda tempos novos para todos.

Não subestimes nossa ignorância e pobreza.
Aceita com humildade o que te oferecemos:
terra generosa e trabalho fácil.

Reparte com quem te recebe
teu saber milenar,
Judeu, meu irmão. 



TEXTO RETIRADO DO LIVRO:

CORALINA, Cora. Meu livro de cordel. 11. ed. São Paulo: Global, 2002.

POEMAS DE PAÍSES AFRICANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA


1 - ANGOLA 

CHORO

Ai barco que me levasse
a um Rio que me engolisse
donde eu não mais regressasse
p'ra que mais ninguém me visse!

Ai barco que me levasse
sem vela ou remos, nem leme
p'ra dentro de todo olvido
onde não se ama nem teme.

Ai barco que me levasse
aos tesouros conquistados
por entre esquinas de perigos
dos mil caminhos trilhados.

Ai - onde? - que me levasse
bem dentro de um vendaval...
Barco berço, barco esquife
onde tudo fosse igual:

Ai barco que me levasse
toda estendida em seu fundo!
Nesga de céu a bastar-me
toda a saudade do mundo!

(Ermelinda Pereira Xavier)

2 - MOÇAMBIQUE 

IDENTIDADE

Preciso ser um outro
para ser eu mesmo

Sou grão de rocha
sou o vento que a desgasta
sou pólen sem insecto
e areia sustentando
o sexo das árvores

Existo, assim, onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
receando a esperança do futuro

No mundo que combato
morro
no mundo porque luto
nasço. 

(Mia Couto)

3 - CABO VERDE

CRIOULO

Há em ti a chama que arde com inquietação
e o lume íntimo, escondido, dos restolhos,
- que é o calor que tem mais duração.
A terra onde nasceste deu-te a coragem e a resignação.
Deu-te a fome nas estiagens dolorosas.
Deu-te a dor para que nela
sofrendo, fosses mais humano. 
Deu-te a provar da sua taça o agri-doce da compreensão,
e a humildade que nasce do desengano...
E deu-te esta esperança desenganada 
em cada um dos dias que virão
e esta alegria guardada
para a manhã esperada
em vão...

(Manuel Lopes)
4 - GUINÉ-BISSAU

REGRESSO

Mamãe Velha, venha ouvir comigo
o bater da chuva lá no seu portão
É um bater amigo
que vibra dentro do meu coração.

A chuva amiga, Mamãe Velha, a chuva, 
que há tanto tempo não batia assim...
Ouvi dizer que a Cidade-Velha,
- a ilha toda -
Em poucos dias já virou jardim...

Dizem que o campo se cobriu de verde,
da cor mais bela, porque é a cor da esp'rança.
Que a terra, agora, é mesmo Cabo Verde.
- É a tempestade que virou bonança...

Venha comigo, Mamãe Velha, venha, 
Recobre a força e chegue-se ao portão.
A chuva amiga já falou mantenha
E bate dentro do meu coração!

(Amilcar Cabral)

5 - SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE

ROÇA

A noite sangra
no mato, 
ferida por uma aguda lança
de cólera.
A madrugada sangra
de outro modo: 
é o sino da alvorada
que desperta o terreiro.
É o feitor que começa
a destinar as tarefas
para mais um dia de trabalho.

A manhã sangra ainda:
salsas a bananeira
com um machim de pratas;
capinas o mato
com um machim de raiva;
abres o coco
com um machim de esperança;
cortas o cacho de andim
com um machim de certeza.

E à tarde regressas
à senzala;
a noite esculpe
os seus lábios frios
na tua pele.
E sonhas na distância
uma vida mais livre,
que o teu gesto
há-de realizar.

(Manuela Margarido)

POEMAS COLHIDOS NO LIVRO:

DANTAS, Elisalva Madruga (org.) Textos poéticos africanos de língua portuguesa e Afro-brasileiros. João Pessoa: Ideia, 2007. 

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

RESENHA CRÍTICA: TRÍADE DE MÚSICOS TALENTOSOS: SOBRE O CONCERTO "ANDA, JALEO!"


Conheço Federico García Lorca porque ele escreveu a obra em poesia que eu mais estimo na vida: Romanceiro cigano. Confesso que não conhecia a obra musical deste poeta e dramaturgo grandioso da Literatura Universal, também não conhecia a obra de Manuel de Falla e Isaac Albéniz. Foi até bom não conhecer tais obras para ter o privilégio de, através do concerto Anda, Jaleo!, conhecê-las da melhor e mais plena forma possível. 

Como pude constatar, pela brilhante apresentação deste dia 19/09/14, o trio Edd Evangelista (voz), Erik Pronk (violão) e João Victor Figueirêdo (percussão), apresenta um repertório composto por dezesseis músicas que estão divididas em duas partes. Na primeira, temos: Danza de Molinero e Homenaje a Debussy (Manuel de Falla), Las três hojas, Los cuatro muleros, Los Reyes de la baraja, El café de Chinitas, Los mozos de Monléon e Servillanas del Siglo XVIII; na segunda, temos: Asturias - Leyenda (Isaac Albéniz) Las Morillas de Jaén, Romance de Don Boyso, Los peregrinitos, Nana de Sevilla, Zorongo gitano, La Tarara e, finalmente, a canção que dá título ao concerto: Anda, Jaleo! 

Além de um repertório bem escolhido, foi possível perceber, da caracterização dos músicos à escolha pelo cenário (a igreja de São Vicente de Paulo que, com seu aspecto rústico, ampliou a atmosfera encantadora criada durante a apresentação), três músicos geniais capazes de, numa mais que evidente harmonia, dar o melhor de suas artes.

Sendo músicos de currículo notável, foi possível ouvir, e sentir, a beleza e perfeição com que as obras que compõem o concerto foram executadas. Edd Evangelista, tendo na percussão envolvente de João Victor Figueirêdo e no violão impecável de Erik Pronk seus complementos, fez ecoar sua voz mais no íntimo de quem o ouvia do que nas paredes da igreja que tinha o privilégio de recebê-lo com todo o seu talento. Uma tríade de talento incomensurável, sem dúvidas, estes exímios conhecedores da arte musical tornaram possível ao público sair um pouco do cotidiano da vida, do senso comum e abriu espaços para a beleza que a música erudita pode proporcionar a quem a busca em sua grandeza e profundidade. 

Essa tríade encantará a quem não dispõe de conhecimento mais amplo em termos de teoria musical e não deixará de agradar a quem dispõe deste conhecimento, e dele se vale para fazer análises mais rigorosas. Ter comparecido a esse evento, para mim, foi um momento de imersão na singeleza da arte musical numa das mais sóbrias exibições de sua força e forma, e possibilitou-me vislumbrar como o erudito e o popular, à luz de García Lorca, e demais compositores que complementam o repertório, conseguem unir-se para dar vazão a elementos que retomam a tradição de músicas antigas do cancioneiro espanhol no que há de mais lírico, encantador e extraordinário. 

Minha experiência pessoal com o concerto Anda, Jaleo! foi, definitivamente, de encantamento e admiração. Estive, durante toda a apresentação, fora de minhas tramas existenciais e imerso no espaço onírico que esses músicos me proporcionaram. Pela reação do público, que aplaudiu com euforia e comoção, a exibição desta noite, parece-me que eu não fui o único a ficar encantado com o que esses três rapazes realizaram. Vi-me, em todo tempo, enredado pela atmosfera em que García Lorca atira suas personagens e suas vozes líricas. Para ficar apenas com alguns exemplos, Zorongo gitano me fez recordar os poemas do Romanceiro cigano - livro a que devoto minha mais fidedigna estima -, Romance de Don Boyso e Sevillanas del Siglo XVIII me transportaram para a terra que García Lorca tanto enalteceu em suas obras e cuja devoção, de certa forma, o conduziu para uma morte inadmissível. Enfim, ao escutar a última canção apresentada - Anda, Jaleo! - fiquei alegre e triste: alegre por sentir-me privilegiado por ter visto algo tão peculiar, porém triste porque esta foi a última canção apresentada quando, em verdade, eu ficaria horas e horas a escutar o que esses rapazes prepararam com tanta dedicação.

Edd Evangelista (integrante do Grupo Camerista Iamaká e professor de técnica vocal), Erik Pronk (integrante do Grupo Camerista Iamaká e Camerata Filipeia) e João Victor Figueirêdo (Grupo CAMENA de Música Barroca) são músicos profissionais e que têm larga experiência com estudo de música. A quem preza por qualidade, e precisa de arte para sentir-se menos infeliz neste mundo problemático, eis uma excelente opção. Espero que outros concertos sejam idealizados e realizados por essa tríade de músicos talentosos - eu, certamente, farei de tudo para prestigiá-los com minha presença e meus aplausos. 

Texto de: Émerson Cardoso
19/09/14