sexta-feira, 26 de setembro de 2014

POEMAS DE PAÍSES AFRICANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA


1 - ANGOLA 

CHORO

Ai barco que me levasse
a um Rio que me engolisse
donde eu não mais regressasse
p'ra que mais ninguém me visse!

Ai barco que me levasse
sem vela ou remos, nem leme
p'ra dentro de todo olvido
onde não se ama nem teme.

Ai barco que me levasse
aos tesouros conquistados
por entre esquinas de perigos
dos mil caminhos trilhados.

Ai - onde? - que me levasse
bem dentro de um vendaval...
Barco berço, barco esquife
onde tudo fosse igual:

Ai barco que me levasse
toda estendida em seu fundo!
Nesga de céu a bastar-me
toda a saudade do mundo!

(Ermelinda Pereira Xavier)

2 - MOÇAMBIQUE 

IDENTIDADE

Preciso ser um outro
para ser eu mesmo

Sou grão de rocha
sou o vento que a desgasta
sou pólen sem insecto
e areia sustentando
o sexo das árvores

Existo, assim, onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
receando a esperança do futuro

No mundo que combato
morro
no mundo porque luto
nasço. 

(Mia Couto)

3 - CABO VERDE

CRIOULO

Há em ti a chama que arde com inquietação
e o lume íntimo, escondido, dos restolhos,
- que é o calor que tem mais duração.
A terra onde nasceste deu-te a coragem e a resignação.
Deu-te a fome nas estiagens dolorosas.
Deu-te a dor para que nela
sofrendo, fosses mais humano. 
Deu-te a provar da sua taça o agri-doce da compreensão,
e a humildade que nasce do desengano...
E deu-te esta esperança desenganada 
em cada um dos dias que virão
e esta alegria guardada
para a manhã esperada
em vão...

(Manuel Lopes)
4 - GUINÉ-BISSAU

REGRESSO

Mamãe Velha, venha ouvir comigo
o bater da chuva lá no seu portão
É um bater amigo
que vibra dentro do meu coração.

A chuva amiga, Mamãe Velha, a chuva, 
que há tanto tempo não batia assim...
Ouvi dizer que a Cidade-Velha,
- a ilha toda -
Em poucos dias já virou jardim...

Dizem que o campo se cobriu de verde,
da cor mais bela, porque é a cor da esp'rança.
Que a terra, agora, é mesmo Cabo Verde.
- É a tempestade que virou bonança...

Venha comigo, Mamãe Velha, venha, 
Recobre a força e chegue-se ao portão.
A chuva amiga já falou mantenha
E bate dentro do meu coração!

(Amilcar Cabral)

5 - SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE

ROÇA

A noite sangra
no mato, 
ferida por uma aguda lança
de cólera.
A madrugada sangra
de outro modo: 
é o sino da alvorada
que desperta o terreiro.
É o feitor que começa
a destinar as tarefas
para mais um dia de trabalho.

A manhã sangra ainda:
salsas a bananeira
com um machim de pratas;
capinas o mato
com um machim de raiva;
abres o coco
com um machim de esperança;
cortas o cacho de andim
com um machim de certeza.

E à tarde regressas
à senzala;
a noite esculpe
os seus lábios frios
na tua pele.
E sonhas na distância
uma vida mais livre,
que o teu gesto
há-de realizar.

(Manuela Margarido)

POEMAS COLHIDOS NO LIVRO:

DANTAS, Elisalva Madruga (org.) Textos poéticos africanos de língua portuguesa e Afro-brasileiros. João Pessoa: Ideia, 2007. 

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