domingo, 2 de agosto de 2020

CRÔNICA: "A DOLORIDA E NECESSÁRIA ARTE DE ESCREVER"


Eu escrevo há séculos. 

Na escola, eu me lembro de que na 3ª série eu escrevi minha primeira redação (como é forte a lembrança que tenho dela!). Era uma narração que a Professora da letra mais bela que já vi e que eu imito até hoje (Tia Elisângela) sugeriu que a escrevêssemos a partir de uma imagem. Eu escolhi uma imagem da Turma da Mônica (eu aprendi a ler com gibis da Turma da Mônica!) com roupas de festa junina. Havia muita inadequação em meu texto infantil, claro, mas me recordo perfeitamente da sensação de bem-estar que o ato de realizar aquele texto me proporcionou. Também lembro da expectativa que tive para saber qual seria a reação da Professora ao ler meu texto (queria o maior e melhor dos elogios e a Professora correspondeu às expectativas, gentil que era!). 

Depois, prossegui sempre a escrever. 

Eu escrevi, sobretudo, diários. Muitos diários, em verdade, mas os três mais relevantes foram escritos durante os anos de 2001, 2002 e 2003, isto é, anos, respectivamente, nos quais eu fiz meu Ensino Médio, Serviço Militar e vestibular para o Curso de Letras, que mudou minha vida. 

Durante o Ensino Médio fiz inúmeras produções textuais (sempre obtive notas significativas). No Serviço Militar, também, fiz uma produção textual para me tornar Monitor (sim, eu me tornei Monitor, a ponto de ser super elogiado pelo texto que escrevi). Quanto ao vestibular para o Curso de Letras (curso da minha vida), eu obtive a nota máxima na redação dissertativo-argumentativa, para minha alegria e orgulho incalculáveis! 

Voltando para os meus três diários, há neles o contexto político da época (sai Fernando Henrique Cardoso e entra Luiz Inácio Lula da Silva na Presidência), as mudanças que o Brasil vivenciou, a perda de familiares queridos, a primeira vez que usei óculos, a queda das torres gêmeas, uma copa do mundo, a descoberta de sentimentos afetivo-amorosos (com os quais até hoje não sei lidar), a leitura do livro que me fez olhar para o mundo de outra forma (embora tivesse lido muitas obras, sobretudo do Romantismo, li O Quinze e meus olhos se abriram para sempre), ausências familiares, sofrimentos aos arroubos, a relação de proximidade com amigas e amigos que me ficaram na alma para sempre e minha trágica adolescência nada fácil. 

O meu primeiro desejo de escrever um romance me veio antes do Ensino Médio. Lembro que escrevi uma história intitulada Maria dos Anjos (1999), que depois se transformou numa das protagonistas do meu primeiro romance. Antes de pensar em escrevê-lo, eu produzi contos. Foi assim que resolvi juntá-los e transformá-los no romance. Para escrevê-lo, comprei um caderno e fiz tudo em manuscrito. Depois tive que digitalizar e foi nisto que o reescrevi mil vezes. 

Escrever sempre foi algo indispensável em minha vida. 

Começou, creio, na mesma época em que passei a ler. Antes de ler, no entanto, eu fabulava muito. Criava personagens inseridas em enredos nos quais a morte sempre estava em pauta - na infância eu tive contato excessivo com a morte, deve ter sido por isso. 

Eu sempre escrevi e escrevo tanto, meu Deus! Parece uma doença! Se as pessoas soubessem... 

Quanto ao que escrevo, algumas pessoas viram e gostaram, outras não deram muita atenção - devem ter detestado. 

Nessa aventura e desventura: 1) já li texto meu em sala de aula durante a graduação (quando eu era um aluno infantil e inseguro) com direito a aplausos; 2) já vivi a dor de ver um texto de minha autoria ser publicado por outra pessoa que, com esse texto, ganhou um prêmio de contos (causando em mim um dos meus maiores traumas); 3) fui estimulado, por boas amigas, a participar de mostras poéticas que selecionaram textos meus e deram a confiança de que eu precisava para divulgar meus textos, 4) já tenho textos publicados em diversas revistas on-line e impressas, 5) recebi menções honrosas (com direito a recebimento de dinheiro e tudo!) e prêmios; 6) fiz uma performance poética (traumática, devo dizer!); 7) já publiquei livros (para meu arrependimento, claro!) etc. 

Sim, escrevo de tudo: de cordel a soneto, de ode à elegia, de balada a haikai, porque amo escrever poemas em todos os gêneros possíveis. Escrevo, também, fábulas, apólogos, contos, crônicas, memórias, diários, relatos, romances, peças teatrais, trabalhos acadêmicos etc. 

Eu escrevo feito louco, sem conseguir cessar, sem entender por que motivo, sempre e muito. Creio que escrever é um modo de dar sentido à vida, é uma forma de compreender o que sou e sinto. Escrever é a ponte que me leva do desespero à expurgação. Escrever é doer um pouco menos. Escrever é minha vida! 

No que isso vai dar? Pouco me importa! Eu sei que quero e vou continuar escrevendo, é tudo o que me importa! O resto é silêncio - e solidão e ausências! 

Quanto a publicar, meu Deus! Publicar é uma tragédia! Eu sou pobre, não tenho como publicar com os orçamentos que me apresentam. Não sei lidar com as burocracias dos editais e concursos. A verdade é que não sei entrar e enfrentar os jogos que massacram almas no campo literário (refiro-me ao livro As regras da arte, de Bourdieu). Quero paz de espírito e silêncio na alma!  

Quanto a ser lido, o Brasil não tem espaço para amadores! Os clássicos não são lidos, o que os aspirantes ou metidos a escritores iguais a mim poderiam querer? Também há outro problema mais grave: sou de um país que quase não lê, porque não há em nosso cotidiano o hábito da leitura! A Educação atende a um projeto antigo de tornar o trabalhador e a trabalhadora, assim como seus filhos e filhas, incapazes de entender o contexto sôfrego no qual estão inseridos e, por isso, eles são cada vez mais explorados, vilipendiados e tolhidos na possibilidade de acesso à Cultura e à Arte em suas mais amplas manifestações. 

Relendo o texto de Antonio Candido O direito à literatura, recentemente, penso que não estou sozinho ao pensar por esse viés. Além disso, devo dizer que vivo essa realidade na prática: sou Professor. Instigo os estudantes à leitura sempre, no entanto sabemos que é desafiador desenvolver esse tipo de trabalho sem o apoio do "mundo" (quando digo o "mundo", eu me refiro às seguintes instituições e seres: ministério da educação, secretaria de educação, coordenadorias educacionais, diretores escolares, coordenadores pedagógicos, pais de alunos, sociedade, mídia etc.).   

E se me fosse tirado o direito de escrever? Não sei, mas... Creio que eu enlouqueceria. Digo isto, com sinceridade, porque o que organiza minha mente tumultuada é o ato de escrever. Sem a escrita eu entraria em tamanha desorganização da alma que me tornaria louco em pouco tempo. 

Enfim, a dolorida e necessária arte de escrever é o que me salva neste vale de lágrimas! 

Émerson Cardoso

11/08/2020



QUANDO A QUARENTENA AUMENTA A LOUCURA NOSSA JÁ EXISTENTE


Se eu pudesse fabular sobre como seria o meu post mortem, eu iria para o Céu, claro. Eu seria conduzido até lá sem dor - obviamente que morreria dormindo ou sob efeito de anestesia geral. Ao deslocar-me ao Céu, sentiria apenas leveza e paz. 

Se eu pudesse fabular sobre como seria o Céu, eu chegaria com alegria imensa a um lugar tão cheio de paz e luz que o identificaria imediatamente como o Paraíso no qual Deus me aguardaria. À porta do Céu, esperando-me, estariam anjos tocando e cantando Rain and tears (é a canção em língua inglesa que mais amo nesta vida). Eu iria chorar sem problema algum - na Terra fui incapaz de chorar diante de pessoas, mas livre de mim mesmo, e de todas as amarras, eu choraria sem conflitos. 

Após a canção ser tocada, eu entraria acompanhado por um anjo que me apresentaria a São Pedro, o Porteiro do Céu, que me daria algumas instruções: "Aqui, finalmente, não te sentirás mais abandonado ou deslocado ou exilado como te sentiste enquanto estavas na Terra! Podes entrar!"

Mercedes Sosa estava cantando Cuando tengo la tierra, ao lado de alguns grandes cantores e cantoras da América Latina, apenas para recordar o quanto a luta por um espaço na Terra era um desafio para nós pobres. E ela riu para mim, com o olhar intenso, dizendo que estava grata por eu tê-la amado tanto! 

Edith Piaf, agora ridente, esperava-me logo à frente para me dar um abraço! Encontrar Mercedes Sosa e Edith Piaf em questão de minutos no Céu me deixou enlevado. À frente, também com desejos de abraço, Demis Roussos, que me possibilitou a canção que me foi tocada pelos anjos por ocasião de minha entrada, sorriu para mim. Três almas grandiosas me receberam em minha chegada, Deus, eu merecia tanto?

Foi quando ouvi alguém gritar meu nome...

Minha avó paterna, D. Fransquinha, e minha bisavó materna, D. Maria Raquel, estavam sentadas, juntas, esperando por mim em um banco iluminado que ficava em um jardim próximo a um regato. Quanto verde e quanta diversidade de cores nas flores e rosas que por ali pairavam! Ao encontrá-las, foi imenso o abraço! Ficamos horas conversando sobre os familiares que ficaram na Terra, e como eles lidaram com a ausência delas. 

Enquanto conversávamos, Luiz Gonzaga, numa das melhores interpretações da vida, começou a cantar Asa Branca para comemorar meu encontro com minha avó e minha bisavó. As notas dançavam em nosso derredor e as flores riam. Pedi a Luiz Gonzaga, após abraçá-lo, que cantasse e tocasse A triste partida. Ele me atendeu em meu pedido - o Nordeste, que tanto me moldou como ser humano, me veio inteiro em sua capacidade criadora e resistente! 

Minhas avós me conduziram, depois, para um prédio no qual eu deveria entrar sozinho. Elas disseram que nos reencontraríamos em breve. Assim que entrei, vi que estavam sentados, com luzimentos indescritíveis, Santa Clara, São Francisco e Santo Antônio. Eles contavam histórias para um grupo de crianças e jovens. No grupo, vi Danúbia, minha prima que se foi tão jovem, muito envolvida com a história contada pelo Santo. Ela trazia nos cabelos estrelas reluzentes. Aproximei-me dela com timidez e a abracei. São Francisco, sorrindo com uma pureza impossível de imitação, percebeu-me logo. Ele levantou-se e abraçou-me: "Não queria tanto me conhecer, hein! O prazer é todo meu!" Santa Clara e Santo Antônio me abraçaram também! Fiquei suspenso no ar tamanha foi a alegria. 

Uma voz me chamou, polidamente, e São Francisco me orientou a segui-la. Era Santa Luzia que, com Santa Tereza D'Ávila e Santa Teresinha do Menino Jesus, queria me apresentar a Biblioteca Celeste. Mais abraços amorosos e pacificadores me foram dados por elas. Em seguida, feliz, andei pela Biblioteca. São João da Cruz declamava um poema - participava de um sarau com povos de todas as culturas que se preparavam para também declamarem seus respectivos poemas. O próximo seria São Benedito a quem, com discrição, para não atrapalhar o sarau, abracei amavelmente! Quando um poema está a ser declamado não se pode atrapalhar!

Decidi andar um pouco mais pela Biblioteca. Foi quando vi Miguel de Cervantes, Federico García Lorca e Gabriel García Marquez rindo de alguma anedota, sentados em almofadas coloridas. Quando me viram, levantaram-se, abraçaram-me e conduziram-me para uma sala. Lorca me disse: "Há umas figuras ali que esperam por ti!" Corri, curioso, para ver quem me esperava.  

Carolina Maria de Jesus recebeu-me à porta e, rindo, deu-me imenso abraço. Com ela, Antônio Callado, Clarice Lispector, Rachel de Queiroz, Machado de Assis, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Júlia Lopes de Almeida, Osman Lins, Lima Barreto, Manuel Bandeira, Ariano Suassuna, Orides Fontela, Guimarães Rosa, Hilda Hilst, Graciliano Ramos, Francisca Júlia, dentre outros e outras, estavam tomando chá. Eu amo chá e, curiosamente, todos sabiam disso. Havia uma xícara plena, para mim, e uma cadeira pronta para que eu me reunisse ao grupo. Conversamos durante horas, meses ou anos. O tempo conforme o conhecemos na Terra não funciona como no meu Céu.

Gustave Flaubert, depois, apareceu à porta e convidou-me a ir com ele para uma outra sala. Pedi licença aos meus compatriotas e saí. Ele me abraçou com barulho e levou-me a um sarau. Nele, Voltaire, Slvia Plath, Marguerite Yourcenar, Victor Hugo, Emile Zola, Virgínia Woolf, Guy de Maupassant, Emily Dickinson, Honoré de Balzac, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Violette Leduc, Katherine Mansfield, Emily Brontë, Jane Austen, William Shakespeare, dentre outros e outras, esperavam-me com crepes crocantes que eram servidos com uma boa quantidade de tomates regados a azeite e salpicados com orégano. Comi fartamente. Permaneci por horas, meses ou anos naquele espaço.

Depois, Salvador Dalí apareceu à porta e convidou-me para a sala de exposições. Ele e Gustave Doré apresentavam as imagens que desenvolveram sobre A Divina Comédia, de Dante. Dante, diga-se de passagem, fez questão de aparecer para me cumprimentar. Eu não consegui acreditar que seria possível, um dia, ver aquele ser capaz de construir algo tão perfeito querendo, de mim, um cumprimento! Abracei-o com desespero. Homero, Virgílio e Camões conversavam à frente e, rindo-se, também abriram os braços para um abraço fraterno!

Na saída, esperava-me Frida Kahlo. Ela me deu um abraço intenso, sugeriu que, na Bibiloteca, havia cinema de todas as nacionalidades, exposições diversas, concertos maravilhosos, peças teatrais grandiosas e uma sala-quarto só minha. Nela, estariam todos os livros que eu li e amei, e todos os livros que eu desejei ler e não pude ainda. Também estariam lá pinturas, obras cinematográficas, esculturas, músicas etc. Tudo o que faz pulsar meu coração estaria à minha espera. Ela disse, ainda, que eu deveria ficar tranquilo, porque as pessoas que eu mais amei ao longo da existência iriam me encontrar ali, sempre que eu quisesse, e eu também poderia visitar a sala-quarto das pessoas que me amavam quando me fosse feito o convite. Eu lhe perguntei, um tanto tímido, se no Céu a gente poderia encontrar o grande amor da vida. Ela ficou confusa e fez a seguinte pergunta: "Mas o amor da sua vida está na Terra, querido, vocês não se encontraram?" Silenciei. Ela se despediu com um bom álibi: iria para uma roda de conversas com Florbela Espanca, Agustina Bessa-Luís e Sophia de Mello Breyner. Eu estava convidado, caso quissesse ir.

Decidi ficar e sentar numa poltrona de belo designer que encontrei ao lado da cama. De repente, a canção Why worry deslizou na atmosfera. Posteriormente, Don't let me be misunderstood, na voz de Nina Simone, ecoou. Fiquei feliz e comovido. Havia muita coisa a fazer, muita arte e cultura a viver, mas me faltava algo. Uma voz me chamou à porta: era Santa Dulce dos pobres. Corri para abraçá-la. "Meu filho, você viu como a Biblioteca é maravilhosa? Aqui você será eternamente feliz! Antes de viver o que tanto deseja seu coração, no entanto, falta algo, não é!" Ela deve ter intuído, de algum modo, o que eu havia pensado. Saímos de mãos dadas: ela cheirando a rosas, e iluminando todos os espaços pelos quais passávamos, e eu expectante.

Já fora da Biblioteca, passamos por Maysa, Maria Callas, Dalva de Oliveira, Nina Simone, Ângela Maria, Miriam Makeba, Emilinha Borba, Cesária Évora, Carmem Miranda, Dolores Duran, Núbia Lafayete, Ella Fitzgerald, Dalida, Elis Regina, Nara Leão, Clara Nunes, dentre outras, que faziam apresentações com suas canções mais famosas. Quase cessei a marcha para ouvi-las, mas Santa Dulce me aconselhou que eu poderia voltar em outro momento, pois elas reuniam-se para cantar com frequência.

Seguindo Santa Dulce, percebi que ela cessou os passos maravilhada. Foi quando vimos, sentado perto de um riacho, revestido de luz, o ser que parecia me faltar. Era Jesus Cristo! Santa Dulce olhou para mim, apertando-me a mão, e disse: "Prepara-te, menino, agora a vida será preenchida tão completamente que tu não terás mais ausências no coração machucado que trazes da nossa sofrida Terra!" Jesus olhou-me com tanta singeleza, antes que se abrisse a um abraço enternecedor, e acolheu-me com amabilidade infinita. Seus negros braços, finalmente, alcançaram meu corpo ferido. E a vida fez-se plenitude e a paz sorriu para mim. Ao abraçá-lo, senti que três abraços, em um só, me revestiam da mais completa felicidade! Eu renasci!

Depois, Jesus segurou minha mão e convidou-me a ler as obras dos autores e das autoras brasileiras da contemporaneidade. Com um grupo irreverente, debatemos por três séculos peças teatrais, poemas e narrativas que o Brasil tem produzido nos últimos tempos. Fomos lendo os textos em forma de sarau. Dercy Gonçalves quase me matou de rir, com seu humor escrachado, quando decidiu fazer algumas leituras! Elke Maravilha, com riso eterno, declamou divinamente alguns poemas! Eva Todor declamou textos com seu riso e carisma insuperáveis! Depois, com o sarau finalizado, voltei com Santa Dulce para a minha sala-quarto.

A minha sala-quarto foi construída com inúmeras poltronas para os amigos. Em uma das paredes, com molduras prateadas, foram colocadas todas as fotos de minhas professoras e professores mais marcantes. Eu recebi visitas maravilhosas em minha eternidade, mas como o texto que escrevo já está longo demais, vou concluindo. Vou deitar na minha cama, sozinho, para ler um pouco. Depois da leitura, receberei meus escritores e escritoras e compositores e compositoras e cineastas e atores e atrizes preferidos. Quando saírem, receberei meus amigos e amigas e familiares tão queridos. Quando saírem, receberei os Santos e Santas de minha predileção. Posteriormente, assistirei bons filmes. Farei toda essa quantidade imensa, e perfeita, de coisas enquanto espero que o amor da minha vida, que anda pela Terra sem mim desde que nascemos (como Frida Kahlo me revelou), me chegue para que eu possa amar, também, nesta perspectiva do amor erótico. Como nunca soube lidar com isso estando na Terra, por isso terminei me acostumando com a solidão, quem sabe se no Céu eu não conseguiria  repensar meus modos e me permitir um pouco a esse tipo de amor! A culpa, no entanto, não foi minha: e eu lá sabia que no mundo havia alguém capaz de me amar e de merecer o meu amor!

Mas bateram na porta, agora, e meu sonho acordado desvaneceu.

Émerson Cardoso
22/06/2020

E QUANDO A GENTE CANSA? (OU: COMO MANTER A SANIDADE EM TEMPOS DE PANDEMIA?)


No dia em que publico este texto, já morreram 94.130 pessoas no Brasil. São muitas histórias que foram cessadas nesta pandemia. O que assusta, mais do que tudo, é o fato de que a maioria dessas mortes poderia ser evitada se tivéssemos um contexto político mais digno. As mortes têm ocorrido, sobretudo, porque não dispomos da sensibilidade política necessária para revertermos esse quadro trágico. Temos contado, obviamente, com algumas lideranças políticas que tomaram atitudes no sentido de minimizar o efeito devastador desse vírus sobre os brasileiros - é o que nos serve de alento -, mas ainda é pouco. Quero erradicação do vírus, quero a cura, quero que nós pobres da nação estejamos assistidos!

Enquanto isso, tenho tentado realizar minhas atividades intelectuais, mas não tenho conseguido efetivamente. Como fazê-lo quando somos bombardeados por tantos acontecimentos vergonhosos no âmbito da política nacional e por notícias que anunciam mortes diárias? O que mais temos a fazer, agora, é manter a sobriedade, mas tem sido difícil quando nos deparamos com desempregos, violências, mortes cotidianas. Não podemos nos esquecer de que o mal pode ser banalizado com facilidade. As mortes que têm acontecido não podem se tornar acontecimentos corriqueiros que se dão sem que tenhamos pesar pelas inúmeras perdas. 

Nesses dias, tenho pensado muito sobre a vida e sobre a morte. A vida, que me pareceu sempre cansativa, insuportável e trágica, agora, me parece tão tristemente significativa. Eu a quero para mim como nunca a quis. Como se eu percebesse, à beira do precipício somente, que viver é gratificante apesar das implicações que ela traz. Já a morte que tanto me instigava, agora, parece algo mais concreto, de modo que não a suporto perto de mim com seus braços fendidos e seu olhar inquisidor. Não quero a morte dos meus, nem a minha própria, nem do povo brasileiro. Quero esperança de dias melhores, de vida em plenitude. O que é vida em plenitude? Para essa pergunta, cada um pode ter sua própria resposta. Eu, por mim, penso que vida em plenitude é vida que vislumbra o mínimo de dignidade e esperança. E é tudo o que posso dizer sobre a vida.  

Estou cansado. De quê? De ler notícias tristes, de não ver uma luz no final do túnel, de ter que produzir textos e mais textos acadêmicos, de pensar sobre a política do mundo, do Brasil e da minha cidade. Estou cansado de tudo o que o tempo me tem proporcionado. Estou cansado de não dormir, de tentar manter o equilíbrio, de mostrar produção, de realizar mais do que minha alma suporta diariamente. 

Por fim, quero que a vida resista. Que a vida sobreviva, intensa e diversa, com a possibilidade de um mundo novo. Será que eu tenho feito algo a favor desse mundo novo? Será que sou digno da vida e do que ela tem a oferecer? Quanto à morte, estou farto de vê-la por perto - que ela nos dê trégua.

Sabe o que eu mais gostaria para o momento? Eu gostaria de ter em mim o silêncio. Não o silêncio da covardia, dos que aceitam sem resistência mil injustiças, dos que coadunam com o mal do mundo em sua banalidade mais nociva. O silêncio sobre o qual eu falo é o silêncio da alma, do pensamento, do coração, porque tenho falado e gritado e esperneado demais dentro de mim mesmo no auge do medo e da impaciência. Se eu não aprender o silêncio e a força que nasce quando damos espaço a ele, penso que não estarei preparado para o mundo.

Vida, por favor, segure minha mão e vamos à aprendizagem que tanto me queres proporcionar!

Émerson Cardoso
06/07/2020