domingo, 13 de agosto de 2017

RESENHA: "UM SOPRO DE VIDA", DE CLARICE LISPECTOR




Escrito ao mesmo tempo em que o livro A hora da estrela, que foi publicado em 1977 – ano em Clarice Lispector faleceu –, Um sopro de vida (Pulsações) está dividido em três partes: 1) O sonho acordado é que é a realidade, 2) Como tornar tudo um sonho acordado? e 3) Livro de Ângela.

Um sopro de vida foi apresentado ao público em 1978, em publicação póstuma, e traz à tona, assim como em A hora da estrela, a relação entre um autor (desta feita, não nomeado) e sua personagem (cujo nome já havia aparecido no conto A partida de trem).

Na epígrafe do livro, dispomos de citações do Antigo Testamento, no caso o livro de Gênesis. Também deparamo-nos com citações de Nietzsche, de Andréa Azulay e da própria Clarice Lispector.

Em seu primeiro parágrafo, o autor (1999, p. 13) – instância narrativa criada por Clarice Lispector – elabora uma espécie de prefácio em que aponta as direções a que acorrerá ao longo de sua escrita: “ISTO NÃO É UM LAMENTO, é um grito de ave de rapina. Irisada e intranquila. O beijo no rosto do morto”. Em seguida, em sua explanação sobre o ato de escrever, que nos remete ao tom metalinguístico recorrente na obra de Clarice Lispector, e também de intensa perscrutação, o autor (1999, p. 15) afirma:

Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto – e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente. Mas é um vazio terrivelmente perigoso: dele arranco sangue.

Ângela Pralini é apresentada já nesse suposto prefácio. O autor (1999, p. 19) diz: “Escolhi a mim e ao meu personagem – Ângela Pralini – e para que talvez através de nós eu possa entender essa falta de definição da vida”.
  
A propósito, surgem intensas especulações existenciais tão ao estilo de Clarice Lispector. Palavras como vida, morte, liberdade, felicidade, verdade, mentira e realidade vêm à tona e tomam maior proporção à medida que o autor passa a discorrer sobre sua escrita e sobre a criação de sua personagem.

Neste sentido, na primeira parte é possível observar que o autor, bem aos moldes do texto teatral, coloca o nome Ângela em destaque e elabora algumas informações sobre ela – o que é atípico é que, embora tratando-se da descrição de uma personagem ficcional, o autor a apresenta a partir de seu comprimento, largura, profundidade sempre relacionando-a consigo mesmo. Em seguida, ele (1999, p. 27) explica como a concebeu: “TIVE UM SONHO NÍTIDO inexplicável: sonhei que brincava com o meu reflexo. Mas meu reflexo não estava num espelho, mas refletia uma outra pessoa que não eu”.

Daí em diante, o autor elabora suas explanações até que resolve dar voz à Ângela que, mais uma vez, como percebemos nos textos teatrais, tem seu discurso enunciado a partir da indicação de seu nome que surge, concomitantemente ao nome do autor, em caixa alta.

Este recurso, que também nos remete ao estilo dos textos filosóficos de Platão, em que suas ideias são apresentadas a partir de diálogos, faz com que percebamos a personagem se descortinar de modo gradativo até que, libertando-se das limitações impostas pela visão do autor, ela ganha voz e, consequentemente, seu próprio livro. Temos, com isso, uma reflexão sobre a condição da personagem que chega a tão alto grau de intensidade interior que ultrapassa os limites da visão do autor que a engendra.

Segue-se, na segunda parte, que é a mais curta do livro, e sempre com ênfase na especulação metalinguística, uma reflexão do autor sobre o quanto poderia ser grandioso, para seu livro, se ele fosse capaz de criar acontecimentos que representassem um “estrondo” ou, como subentendemos, um clímax que desse ao texto status de narrativa aos moldes tradicionais. O autor discorre sobre a necessidade de tais acontecimentos, no entanto não faz concessões às exigências que estabelece para si mesmo: sua criação segue transgredindo os ditames estipulados, provavelmente, por concepções mais tradicionais sobre a narrativa e seus componentes.

Na terceira parte, intitulada O Livro de Ângela, deparamo-nos com a ‘criação da criação’, uma vez que o autor perde o controle sobre sua personagem e ela passa a construir sua narrativa ou, como ela denomina, seu “romance das coisas”. De fato, ela desenvolve uma espécie de catalogação de coisas, de objetos que a instigam, que a desafiam – ocasião em que ela, numa curiosa retomada de textos anteriores, menciona textos como O ovo e a galinha e Sveglia. Ressalte-se, nesse jogo catalográfico, a explanação sobre joias, que vai desde a observação liricamente construída sobre pedras preciosas até a elevação do caco de vidro, que ganha status e é colocado ao lado das joias. Poltrona, relógio, vitrola, casa, borboleta, carro, lata de lixo, dentre outros, são algumas das “coisas” sobre as quais ela discorre para, mais adiante, fazer emergir temas universais que tornam sua reflexão uma incursão filosófica de amplas proporções.

Ao fim, Ângela traz à tona, dentre outros temas, dois dos mais intensos: a morte e Deus. Sobre a morte, dentre outras especulações neste sentido, ela afirma (1999, p. 128): “Às vezes, só para me sentir vivendo, penso na morte”. E ela elabora questionamentos metafísicos quando se indaga (1999, p. 128): “Será que depois da morte começa a abstração?”

Quanto a Deus, ela diz em dois momentos, na tentativa de defini-lo, que (1999, p. 128): “Deus não é o princípio e não é o fim. É sempre o meio” e “Deus é como ouvir música: repleta o ser”. Inúmeras reflexões sobre Deus se seguem a esta, a ponto de Ângela realizar, em momento de intenso lirismo na obra, uma oração:  

Meu Deus, me dê coragem de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites, todos vazios de Tua presença. Me dê a coragem de considerar esse vazio como uma plenitude. Faça com que eu seja a Tua amante humilde, entrelaçada a Ti em êxtase. Faça com que eu possa falar com este vazio tremendo e receber como resposta o amor materno que nutre e embala. Faça com que eu tenha a coragem de Te amar, sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo. Faça com que a solidão não me destrua. Faça com que minha solidão me sirva de companhia. Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar. Faça com que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo. Receba em teus braços o meu pecado de pensar.
(LISPECTOR, 1999, p. 151 – 152)
           
 Encerramos essa resenha com a oração feita por Ângela Pralini que, em sua conversa com Deus, em prosa-poética de alto teor místico, recorre à espiritualidade em sua busca de existir em plenitude. Essa busca se manifesta, no âmbito da narrativa, pela desorganização da linguagem e pela desconstrução da narrativa. Muito é subvertido nessa obra e a personagem, que termina por sobressair-se ao autor, vivencia incompletude, esvaziamento e não-ditos que reverberam intensamente no plano da linguagem. Um sopro de vida trata-se, em vários aspectos, de um dos romances mais densos e admiráveis de Clarice Lispector.   

REFERÊNCIAS:

LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida (Pulsações). Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

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