sexta-feira, 1 de novembro de 2013

ELSA & FRED COM ANITA & MARCELLO: UM REENCONTRO NA FONTANA DI TREVI


CARDOSO, Cícero Émerson do Nascimento. Elsa e Fred com Anita e Marcello: um reencontro na Fontana de Trevi. Revista Sétima de Cinema, n. 06, p. 06 - 07, out. 2013. 

Da primeira vez que assisti ao filme “Elsa & Fred” (2007), de Marcos Carnevale, foi impossível não desejar conhecer também “A doce vida” (1960), de Fellini.
            Um homem solitário, previsível, hipocondríaco, abalado pela morte recente da esposa, e sob “cuidados” de uma filha controladora, muda-se para um prédio em que se torna vizinho de uma mulher: expansiva, imprevisível, mentirosa, caloteira, aventureira e, sobretudo, que sabe viver. Por serem idosos, ambos poderiam se deixar prender pelas rédeas da idade que parecia querer tolhê-los, no entanto Elsa (China Zorrilla) despreza qualquer limitação e alimenta um sonho: viver a cena antológica do filme “A doce vida” protagonizada por Anita Ekberg e Marcello Mastroiani na “Fontana di Trevi”.
            No clássico de Fellini, Anita Ekberg dá vida a Sylvia, uma das três mulheres que povoam a vida do jornalista Marcello Rubini – vivido por Marcello Mastroiani. Sylvia é uma estrela hollywoodiana que ostenta beleza e vivacidade e, numa das cenas mais belas do filme, bem como do cinema universal, Sylvia entra na “Fontana di Trevi” (que para os italianos é o símbolo da vida e da beleza) e convida Marcello Rubini a acompanhá-la em sua aventura erótica, ao que ele obedece.
            E por falar em erotismo, o filme “Elsa e Fred”, de modo sutil, e não menos singelo, também discorre sobre a externação do erotismo vivido pelas personagens evocas no título. Refiro-me não ao erotismo como este tem sido propagado pelo senso comum, mas pelo erotismo conforme nos apresenta Bataille (1987) que, ao discorrer sobre o assunto, propõe três concepções a esse respeito (erotismo dos corpos, erotismo dos corações e erotismo sagrado) de modo que a concepção que nos possibilita pensar a relação do par romântico do filme “Elsa e Fred” é o erotismo, sobretudo, dos corações. A esse respeito Bataille (ibidem, p. 15) afirma:
O erotismo dos corpos tem de qualquer maneira algo de pesado, sinistro. Ele guarda a descontinuidade individual, e isto é sempre um pouco no sentido de um egoísmo cínico. O erotismo dos corações é mais livre. Ele se separa, na aparência, da materialidade do erotismo dos corpos, mas dele procede, não passando, com frequência, de um seu aspecto estabilizado pela afeição dos amantes.

Elsa, dada a uma concepção de mundo em que idealizações são possíveis, vivencia finalmente – após envolver Fred em suas fantasias – seu grande sonho. A cena da “Fontana di Trevi”, em “Elsa e Fred”, é recriada de modo lírico e erótico – um “erotismo dos corações”, ressalto. Some-se à cena o fato de que Fred (Manuel Alexandre) resolveu realizar o sonho de sua amada porque ela (embora ela escondesse) poderia morrer em breve em decorrência de sérios problemas de saúde.
            Em “A doce vida” Sylvia é delicada, cativante, jovial e entrega-se ao amor com devoção: deleitar os prazeres da vida era sua prerrogativa existencial. Elsa, por sua vez, identifica-se profundamente com a personagem – embora não seja tão idealizada assim – e deseja tornar-se Sylvia, mesmo que por alguns segundos.  
            A relação entre as obras em destaque parece centrar-se no fato de que há uma bem-sucedida releitura de uma cena específica. Porém, sobretudo se considerarmos os temas abordados em ambas as obras, perceberemos inúmeros elementos que poderiam ampliar nossa percepção a este respeito. 
            Elsa e Sylvia buscam veementemente o prazer e ambas lidam com homens cuja vida, em vários aspectos, denota uma propensão à decadência: Marcello é um escritor frustrado que realiza pequenas reportagens e que assume, por vezes, papel passivo ante as mulheres com as quais viveu casos amorosos e que demonstra certa insegurança diante dos conflitos que o cercam; Fred, por sua vez, é um aposentado hipocondríaco que passou a vida cumprindo regras no trabalho e sendo fiel à vida conjugal e, diante da impulsividade de Elsa, termina por se deixar guiar pelas ideias da pretendente que lhe pareciam absurdas.
            “A doce vida” é um filme amargo, de personagens perdidas em desilusões, angústias e que vivem lacunas relacionais em decorrência, por vezes, da falha de comunicação. Em “Elsa e Fred” é possível perceber uma atmosfera que também se configura como angustiante, no entanto a impulsividade da personagem feminina evocada no título, sua força e propensão à vida ultrapassa essa aparente angústia e todas as personagens terminam por se deixar envolver, direta ou indiretamente, pelas tentativas de “solução” que Elsa – embusteira e nada ortodoxa – propõe.
            Muitos outros elementos poderiam ser apontados nesta perspectiva de ver as obras em destaque pelo viés da comparação. Vale ressaltar que elas discorrem sobre a vida que, para o ser humano, precisa sempre ser dotada de algum sentido: na obra de Fellini encontramos as tensões de uma Roma moderna, mas decadente e, consequentemente, marcada pelos desencontros e pela insubmissa marca da morte; na obra de Carnevale a morte existe, até exageradamente, mas esta não parece, em suma, representar um impedimento para que a vida seja possível de ser deleitada no sentido mais profundo do termo, como nos propõe o trecho da letra da música tema do filme:

HOY PUEDE SER UN GRAN DÍA

Hoy puede ser un gran día
Imposible de recuperar,
Um ejemplar único,
No lo dejes escapar.

Que todo cuanto te rodea
Lo han puesto para ti.
No lo mires desde la ventana
Y siéntate al festín.

Pelea por lo que quieres
Y no desesperes
Si algo no anda bien.
Hoy puede ser un gran día
Y mañana también.

(Joan Manuel Serrat)

REFERÊNCIA:

BATAILLE, George. O erotismo. Trad. Antônio Carlos Viana. Porto Alegre: L&PM, 1987. 




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