terça-feira, 12 de julho de 2016

CONTO: "ENTRE MÚSICA E MOSCAS"


(Para ler, indispensavelmente, ao som de L’hymne a l’amour, de Edith Piaf)
  
“Enviarei enxames de moscas sobre ti.” (Êxodo 8: 21)

Um abrigo. No centro do recinto, um refeitório. Gatos rondam os espaços a espargir fezes. Moscas deslizam sobre o ar de incortável espessura. Há um resquício de jardim com roseiras repletas de espinhos e plantas que não verdejam. No todo, há um odor irrevitalizável de fechada gaveta. Mofo. Lentas águas de esgoto a céu aberto. Baratas ocultam-se estrepitosas. Cheiro de talco. Naftalina. Velhice. Abandono. Há pouco, um grito na decadente atmosfera ecoou. Foi assim:

Dona Aurora deitada estava em seu leito – engelhada e com fome sempre. Há dias sem banho. Moscas perspicazes, que sugavam as sujeiras do mundo, queriam sugá-la. Ela, que sofrera duas tromboses, o braço esquerdo movia para livrar-se dos selváticos insetos. Fechou os olhos, abriu-os. O que fazia ali? Onde o dedicado marido? Onde os três filhos? E os amigos tão íntimos? Sobraram-lhe velhice, doença, moscas.

No mesmo quarto, Dona Letícia com dificuldades andava. Ligou o rádio de pilha que ganhou no último dia das mães. Trazia alguma força contra moscas. E o rádio espargiu “L’hymne a l’amour”, de Edith Piaf. Ao escutar a música, Dona Letícia sorriu tristemente. Sua negra pele resplandeceu mais que era resplandecente seu olhar. Escutou a música enlevada. Sem entender palavra, um misto de saudade e persistência fez riacho em seu rosto. Moscas queriam, ousadas, sugar sua única posse: lágrimas-rios a correr silentes.

Dona Clarice saía do banheiro. Sentou-se na cama, para Dona Aurora olhou e deitou-se. Escutou a música de Dona Letícia e viu renascer o homem a quem devotara seu amor. Bonito era. Era bonito. Amou-o, embora doloroso fosse amar homem que traía, humilhava, espancava. Com raiva, certa vez, de ouvir coerências propagadas sobre os telhados, o homem bonito a quem ela devotadamente amara atirou nela uma chaleira que estava no fogo com água a ferver. A pele dos seios nunca mais voltou ao que era. Mas ela o amou, o amava, o amara. Depois que o amado morreu, ela amofinou e este era seu salário. Uma mosca invadiu seu vestido e ela matou-a num aperto do corpo contra a cama.

Dona Aurora tentou falar – não conseguiu. Em que mundo estranho ela... Ela, a mais rica da família, a bem-sucedida, a cujos trajes os outros invejavam, o que estava a fazer ali? Suas posses, adereços, móveis, imóveis, criadagem: onde? Lembrou-se: “Tenho marido rico, tenho dinheiro para toda vida e tenho maravilhosos filhos: o que eu quero mais? Nada peço a Deus. Se ele existe, parece que já me deu tudo... E ele que não se atreva a tomar o que é meu!” Agora, nos poucos movimentos que realizava, uma raiz de revolta e ódio. Odiava moscas. Ela não contava com o exemplo de Jó? E os filhos? Os amigos? O marido morto após a falência? Desesperou-se. Gritava, num sussurro, pelas companheiras de cárcere, ou pela enfermeira negligente, ou por um dos filhos, ou pelo marido, mas...

“Je renierais ma patrie
Je renierais mes amis
     Si tu me le demandais...”

Dona Letícia o rosto enxugou para novamente chorar. Sentiu-se mais-que-sozinha de repente, porque sabia que a música cessaria sem remorsos ao deixá-la ali, naquele cômodo sem saídas. Mas, não sem prenúncios de adeus, a música prosseguia. Tentou acompanhar a melodia cantarolando-a, mas abriu demais a boca e uma mosca a invadiu. Tossiu, tossiu, tossiu... Cuspiu enojada enquanto Piaf espargia no mundo melancolias.

Dona Clarice, gorda no florido vestido que ganhara da silenciosa nora no Natal, deitou-se de vez. Acomodou a cabeça de brancos cabelos, muito penteados, que estavam presos eternamente com auxílio de um rio de vaselina. No ar, cheiro de talco. Talco que ganhara da apática neta que a olhava como se não a quisesse olhar. Nojo, mal-estar, estranhamento no abraço dado. Havia também forte cheiro de abandono.  
           
E o grito se fez carne e habitou entre nós...

Ataque de trombose terceiro para Dona Aurora. Líquido putrefato e acinzentado vomitado por Dona Letícia que trazia em sua essência gorda e espevitada mosca. Ataque fulminante do coração para Dona Clarice.

“Si un jour la vie t’arrache à moi...

Naquela tarde, ao som do rádio de pilha, todos os que podiam, dos demais quartos, foram ver de onde provinha tão compungido grito. Dona Letícia, de pé, abanava as moscas que revoavam sobre os corpos de Dona Aurora e Dona Clarice.

“Nous aurons pour nous l’éternité...”

REFERÊNCIA:

CARDOSO, Cícero Émerson do Nascimento. Entre música e moscas. In: Breve estudo sobre corações endurecidos. Ponto da Cultura: Maricá – RJ, 2011. p. 26 – 28. 

3 comentários:

  1. Seu texto é fantasticamente atraente, Emerson. A descrição detalhada recria o ambiente e traz o leitor à história como se fosse este mais um morador infeliz do abrigo. Projeções sintáticas minuciosamente trabalhadas exigem do leitor a calma e a serenidade para acompanhar a história sem a necessidade da fluidez, comum nos contos modernos.
    Enfim, é o típico texto que nos envolve tanto pela história como pela sua estrutura. É um conto para se ler, aplaudir, reler e refletir. Parabéns!

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    1. Obrigado pelas considerações, Jean! Há muito que melhorar neste meu exercício de criação literária! Um dia, quem sabe, eu alcance algum estilo mais consolidado! Valeu!

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  2. Seu texto é fantasticamente atraente, Emerson. A descrição detalhada recria o ambiente e traz o leitor à história como se fosse este mais um morador infeliz do abrigo. Projeções sintáticas minuciosamente trabalhadas exigem do leitor a calma e a serenidade para acompanhar a história sem a necessidade da fluidez, comum nos contos modernos.
    Enfim, é o típico texto que nos envolve tanto pela história como pela sua estrutura. É um conto para se ler, aplaudir, reler e refletir. Parabéns!

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