sábado, 23 de julho de 2022

A CONTEMPLAÇÃO DAS COISAS DIVINAS



Na crônica Um dia só para chorar (que consta no livro Anjos, buracos, pedras e moinhos), de Betania Moura, ela trata de uma mulher que decidiu não ir ao trabalho para ter um dia só para dedicar-se à arte de chorar. Eu que não choro há séculos, porque se o faço me sinto vulnerável, tive também o meu dia.

A propósito, no "Provocações", Antônio Abujamra costumava perguntar a alguns entrevistados: "Você chora?" A pergunta enveredava, por vezes, para outra questão: a contemplação do belo comove a ponto de levá-lo às lágrimas?

Eu responderia a Abujamra, se ele me perguntasse, que sim. Sim, porque diante das obras "Os retirantes" e "Criança morta", de Portinari, me veio um choro comovido sem explicação e difícil de refrear.

Imagens vistas e revistas nos livros didáticos estavam diante de mim. Líricas e profundas, elas estavam de tal modo aproximadas que todo o choro guardado (seja por perdas, mortes, frustrações e outras dores) transbordou. 

Tentei não chorar tanto, afinal estava acompanhado. Acho que não derramaria lágrimas perto de pessoas conhecidas, então aproveitei um momento no qual fiquei sozinho. Falando assim até parece que meu choro foi algo planejado, mas não foi.

O ato de chorar me foi impregnado como vulnerabilidade. Procurei a vida inteira conter a emoção diante de tudo. Não gostaria de ser assim, afinal a vida também dispõe de seus momentos de sofreguidão, passionalidade e afeto transbordantes. Por que não? 

Então, sem conseguir segurar o gesto, chorei. Sim, o fiz por amor ao belo presente nas duas obras potentes de Portinari. Pelas tonalidades, pelo expressionismo latente, por ver a temática da seca irromper dessas obras, fui às lágrimas. Com o desejo de ocultar, com medo de que as pessoas vissem, o choro me veio inevitável. Sentimento pode ser represa que explode, como ficou perceptível na ocasião, de forma inevitável. Isso, principalmente, diante do belo. 

Bem, depois de Portinari me emocionar profundamente, precisei me recompor para ver outras obras. Estavam lá pinturas de Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Lasar Segal, Van Gogh, Goya, Monet, Rafael, dentre outros grandes nomes da pintura. Em êxtase as vislumbrei. Perplexo as acolhi. Se não caí diante delas, foi porque força sequer tive para a queda. 

Por fim, ao sair do MASP, onde essas obras estão resguardadas, agradeci à existência pelo privilégio de poder ver a arte no que há de forte e belo. Saí renovado, afinal deixei lá todo o peso de chumbo que só o choro consegue arrefecer. Viver tem disso.

Émerson Cardoso

14.07.2022






2 comentários:

  1. Esse choro é inevitável e faz bem. Lava a alma.

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    1. As experiências de fruição da arte nos aprofundam tanto! Foi uma experiência maravilhosa! Abraço!

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