NOTAS SOBRE CONTRA
BANZO[1],
DE KARLA JAQUELINE VIEIRA ALVES
Se para onde eu for
Estarei sempre comigo
Como posso ser a caça
Que feito caçador persigo?
(Paradoxo, de Karla Jaqueline Vieira
Alves)
O livro Contra
Banzo, de Karla Jaqueline Vieira Alves, foi publicado, em 2023, pela
editora Aldeia de Palavras. Ele dispõe de cinco partes que reúnem 78
poemas (são 79, em verdade, se considerarmos o poema que antecede a primeira
parte do livro) com reflexões que incidem sobre as mais diversas temáticas: racismo,
empoderamento feminino, condição sócio-histórica da mulher (sobretudo
singularizada por ser negra), crítica social em várias perspectivas e incursões
filosóficas diversas. O livro foi publicado com apoio da Secretaria da Cultura
do Estado do Ceará, através do XII Edital de Incentivo às Artes, e dispõe de QRCode
para acesso ao audiolivro.
Karla Jaqueline
Vieira Alves (2023, p. 12) opta pelo gênero lírico, para a expressão de sua
subjetividade, e diz que a poesia é “uma maneira de não morrer, de não
desistir, de continuar vivendo”. Além disso, ela realiza explanação sobre
experiências e motivações que a levaram a realizar o projeto que resultou no
livro. Nesse sentido, devemos considerar a seguinte afirmação:
Como uma escritura das
consequências nocivas deste sistema sociocultural e econômico, esta é uma obra
que amplia e expõe os conflitos existenciais de uma mulher preta, pobre e
nordestina numa sociedade machista, racista e classista, em busca de superar o
colonialismo mental que condiciona esta mulher a viver entre os muros do
patriarcado capitalista e racializado, sistema que divide e hierarquiza a
sociedade brasileira como forma de “organização” social. Esta busca por superar
tal alienação exige antes o reconhecimento desta condição, gerando um conflito
entre o individual e o coletivo (Alves, 2023, p. 09).
A autora delineia,
nesse trecho, os componentes constitutivos de sua subjetividade. Sua produção
literária está comprometida com um olhar atento às discussões em torno das
minorias sociais das quais ela participa reconhecendo-se como uma mulher cuja
poesia se pretende transgressora dos infindáveis ditames socioculturais,
socioeconômicos e sócio-históricos que visaram, por séculos, o cerceamento da
mulher, sobretudo quando ela se expressa e manifesta sua poesia construída em
torno do reconhecimento de que é “mulher preta, pobre e nordestina”.
Na primeira parte
do livro, cujo título é Cativeiro – a indústria da fome, são
apresentados poemas instigantes pela criticidade e pela abordagem corajosa de
temas indigestos a quem ainda compreende o mundo baseado em concepções conservadoras
e moralistas. Além disso, a autora reafirma sua força literária com a
construção criativa de imagens. Podemos constatar isso, por exemplo, através da
intensidade do jogo metafórico criado pela autora no primeiro poema da primeira
parte: De-Cadente:
Do pouco fôlego que ainda resta
Tudo é sol ao meu redor e dentro
míngua
Preciso de um peito seguro para
descansar...
A noite guarda labirintos...
(Alves,
2023, p. 20)
Segue-se a esse texto
uma jornada poemática que, em Necrópolis, fala de reagir ao mundo
adoecido e adoecedor que leva os “povos afro-ameríndios” a sofrerem, ainda na
atualidade, os efeitos nocivos da colonização. Em Complexo de Gepeto, temos
a denúncia ao patriarcado: “Super homem do Real não quer abrir mão / Da sua
linda mulher de estimação”. Essa mesma discussão, especialmente direcionada
para a realidade da mulher singularizada por ser preta, isto é, propensa a
sofrer dupla manifestação de preconceito (a misoginia e o racismo), surge nos
textos: A mulher buceta, Noite Sertaneja, Uterina, Mães e Filhas,
Matéria-prima e Santa Madalena.
Em Santa Madalena,
encontramos (além da menção à figura bíblica que o imaginário cristão associa à
mulher cuja vida de prostituição não impedira Cristo de defendê-la contra a
hipocrisia dos homens) um questionamento em torno da mulher e seus amores: quem
poderia julgar uma mulher por ter se apaixonado, por ter acreditado nas
possibilidades de amor recíproco, por ter se tornado feroz a ponto de fazer
valer, na força do ódio, sua passionalidade? O poema, seja no título, seja no
corpo do texto, aponta para esse universo retirado do contexto bíblico: “Quem
não tiver pecado atire a primeira pedra”. Assim, temos:
Aquela que nunca foi usada
Que atire a primeira pedra
E ouse julgar como tola
A Mulher transformada em fera
Por saber que o amor alheio
Não passou de uma grande espera.
(Alves, 2023, p. 29)
Comprometida a
tratar amplamente do racismo, a autora produz um poema notável como: Ventre
do ocidente. Neste texto, ela propõe os versos:
O mundo finge não ver
E zombando parecem louvar
A canção que insiste em dizer:
Navios Negreiros que vão
Navios Negreiros que foram
Navios Negreiros que voltam...
(Alves,
2023, p. 27)
Os poemas Seixo,
Mães e Filhas, Pesadelo e Tão grave quanto não ser são intensos em
lirismo (talvez os mais líricos da primeira parte), como percebemos nos versos
que retiramos do texto Tão grave quanto não ser: “É o barulho da chuva
confessando à nuvem que a terra não lhe quis...”
Estabelecendo um
fio temático relacionado à crítica ao racismo, grave problema a ser resolvido na
sociedade brasileira, a autora discorre sobre a condição da “mulher preta”
frente à realidade que tenta subalternizá-la, como constatamos no poema A
paixão nacional. Além disso, é possível localizar os seguintes temas nos
poemas: Negráfica (diáspora africana), Bloco negro (violência
contra corpos negros), Família tradicional brasileira (a instituição
família com ironia e criticidade), Matéria-prima (crítica ao olhar de
coisificação em torno do corpo feminino preto) e Mães e Filhas (um olhar
terno sobre ancestralidade e amor maternal).
Em suma, temos, na
primeira parte do livro, uma poesia confessional, antipatriarcal, transgressora
e rebelada manifestando-se a partir de um olhar crítico-reflexivo que analisa,
sem trégua, um país complexo que não dignifica a vida de quem traz no corpo e
na alma a condição de pertencer a minorias sociais marcadas pela necessidade
histórica de resistência.
Na
segunda parte de Contra Banzo, intitulada Fuga – o espelho negativo,
a autora apresenta textos que não arrefecem na busca de expandir seu
horizonte crítico. Isso também se aplica ao poema Salvo conduto
(salvo-conduto, em contexto jurídico, tem por finalidade a proteção da
liberdade de locomoção e a proteção dos direitos), um dos mais curtos do livro,
temos ponderações sobre o silenciamento forçado e o direito ao grito
historicamente cerceado.
Na sequência, vêm
os poemas: Rascunho (um dos mais expressivos e bem arquitetados do
livro, sobretudo porque discorre sobre a complexidade da alma humana em meio
aos conflitos do direcionar-se para o outro) e Casulo (que metaforiza o
processo de desenvolvimento da voz poética — esta cujas asas crescem em
silêncio, mas que não hesita em se rebelar quando afirma “o sul sou eu”). Esse poema
é repleto de imagens simbólicas que remetem à resistência e à esperança de
encontrar novos caminhos existenciais. Os versos finais apontam para a acuidade
estética configuradora desse texto:
Mas enquanto ainda é hoje
E faz tempo que o é
O sol teima em não nascer
Dançarei insana pela lua
Até que venha o amanhecer...
(Alves, 2023, p. 49)
Em Ancestrália e
Mães Negras estão presentes, respectivamente, o feminino ancestral, representado
pela imagem das avós gestadas no mágico das terras africanas, e pela imagem das
mães em suas perdas, lutas e dores.
No poema Candeias,
cujo título evoca a romaria de Nossa Senhora das Candeias (a primeira das três
principais romarias que ocorrem na cidade de Juazeiro do Norte), localizamos um
olhar crítico em torno do que a autora afirma serem colonizadores que retornam para
ludibriarem e adestrarem o povo através de “deuses de vidro multicoloridos”.
Em Dívida de
liberdade, há menção ao livro Quarto de despejo: diário de uma favelada,
de Carolina Maria de Jesus, no verso: “Nesse quarto de despejo...” A voz lírica
denuncia os aprisionamentos sociais sofridos pela pessoa negra, principalmente
quando se é mulher em contexto lastreado pelo patriarcado. Além desses temas, também
presentes nos textos Escombros, Preta que Pariu, Extrato Fera,
prepondera o desejo intermitente de ser e viver livre (mais de um século após a
Abolição da Escravatura, e a luta contra o racismo ainda continua necessária na
sociedade brasileira).
Emblemático nesse
âmbito de discussões, merece destaque o poema Ser mulher. Nele, o lirismo
está contido no discurso dedicado à apresentação de imagens do campo semântico
do que é líquido: águas, sangue, suor, lágrimas, marés da Lua, dentre outras.
Essas imagens conduzem a uma simbologia maior: a imagem da mulher sagrada que
encontra o amor por si mesma. Isso fica nítido nos versos: “De partida e de
chegada / Me findo re-sentida na partida / Chego renascente e para sempre auto
amada”.
Integram essa
parte do livro os poemas: Oração ao vento (a busca pela liberdade
metaforizada no desejo de ganhar asas), Fruto do amor (há um
interlocutor a quem a voz lírica direciona seu afeto, o uso de verbos no
imperativo e um trecho que se repete, como um refrão, intensificam a expressividade
dos sentimentos) e O voo da saudade (o desejo de voar para que se possa
vislumbrar os olhos do ser amado).
Fica perceptível
que essa parte do livro apresenta vários vocábulos que aludem ao campo
semântico da liberdade, que se torna sua temática central (apesar da
diversidade de temas existentes nela).
Na terceira parte,
intitulada Quilombo – a busca pela imagem, o primeiro poema, De volta
pra mim, direciona a reflexão para uma voz lírica afeita a renascer apesar
dos “medos” aprisionadores dessa “Eu-Mulher” disposta ao autoconhecimento e ao
movimento da vida, porquanto: “Ficar parada não adiantaria”.
Nessa mesma linha
de reflexões, é possível destacar: Autoimagem (debate acerca da
ancestralidade na figura da avó e na menção à África), Reflexos (iniciado
com alusão a dois nomes de personalidades femininas negras relevantes demais
para serem esquecidas: Maria de Araújo, a beata que protagonizou o denominado Milagre
da Hóstia, fato importante para a construção identitária de Juazeiro do
Norte, e a heroína Preta Tia Simoa[3] cuja luta contra a
escravidão a conduziu a mobilizar jangadeiros contra o tráfico de pessoas
negras) e Ave Mar (espécie de oração que invoca proteção para não “cair
em fálicas mãos de Pensamento duro” e para reconhecer as próprias “virtudes”).
O lirismo dessa
parte do livro está intensificado em poemas como: Raiz (o amor
construindo-se entre “pétalas de ipês” e “aromas de laranjas”), Coragem
(cuja repetição de estrofes remete a uma espécie de refrão que faz apologia à
complexa arte de não ter medo de ser livre, como apontam os versos: “Sou a
vontade da chuva de ser Mar...”), O voo da borboleta (dos mais bem
construídos do livro, esse poema apresenta imagens que remetem à intensa leveza
das águas e à necessidade da voz lírica de encontrar-se consigo mesma: “Quando
a saudade de mim mesma era tanta / Percebi o deserto do meu imenso jardim”).
Ser mulher,
sobretudo caracterizada por ser negra, conforme a autora pontua nesse momento
de sua obra, é desconstruir a imagem imposta pelas várias forças que atuam na
sociedade, historicamente, e construir novos horizontes imagéticos nos quais
seja possível afirmar-se, libertar-se, ser quem realmente se é — e não aquilo que
os discursos determinam — e, principalmente, ser capaz de amar a si mesma, sem
medos ou amarras.
A quarta parte,
intitulada O fundo do poço – da repetição à diferença, é introduzida
pelo poema Nut, que propõe imagens poéticas intensificadas pela musicalidade
dos versos. Esse texto prenuncia o momento do livro no qual localizamos quantidade
significativa de textos impregnados de apuro estético.
O texto Sete
saias coloridas, por exemplo, se enquadra perfeitamente no gênero poemático
romance e, com isso, cria beleza formal atrelada à tensão temática,
tendo em vista que o texto trata de questões complexas como: feridas subjetivas
da infância e abuso sexual contra criança.
Merece destaque,
ainda, a expressividade dos textos: A pele de Oxum (poema lírico de
amplos recursos imagéticos e de singeleza infantil, enquanto evoca a figura de
Oxum, isto é, orixá das águas doces, das cachoeiras, da fertilidade e do ouro
reluzente etc.) e Divino balé de OYÁ
(que traz outra figura feminina da crença de matriz africana em poema dos
mais esteticamente trabalhados do livro).
É pertinente
dizer, a propósito, que Divino balé de OYÁ apresenta sinestesias
construídas em torno de imagens semânticas vinculadas aos ventos e a suas
formas de manifestação. A voz lírica faz recomendações para que as ações dos ventos
sejam observadas, pois elas dançam em torno do corpo e agem sobre os grãos de
areia da montanha. Nesse sentido, o texto apresenta vocábulos alusivos à
leveza: sinfonia, dança, pássaro, voo, redemoinho, brisa, sopro, dentre outros.
Ao mesmo tempo, essa leveza contraria a intensidade invariavelmente relacionada
à Oyá (orixá regente do fogo, dos raios e dos ventos antecedentes das
tempestades). Esse poema é repleto de musicalidade e de lirismo, como é
observado no trecho:
Repare na
ação do vento
Levando
tudo
Grão por
grão
E quando
no vazio eu fiquei sem chão
Um sopro
de vida me moveu
E leve me
levou em seu invisível espiral
Para me
ensinar como dançar o balé de minha própria [canção
Fez de
mim um ser de sua própria substância e criação
Após
remover uma a uma
As pedras
que pesavam sobre o meu coração.
(Alves, 2023, p. 130)
Outro poema que
traz o universo da crença de matriz africana é Sankofa. O título evoca o
termo africano que significa: retornar ao passado para colher saberes e valores
capazes de conduzir o ser humano para um futuro mais digno. Ele expõe, ainda,
duas imagens: pretos velhos (representativos da: ancestralidade, sabedoria e cura
espiritual) e erês (representativos da: infância, possibilidades de futuro e leveza
espiritual). É nítido o debate que o texto propõe, também, acerca da finitude
do corpo, que é pó, e da necessidade de encaminhar-se para a sabedoria capaz de
ampliar o espírito.
Existem poemas
que, com sutileza, trazem o componente erótico. Neste caso, com a perspectiva
simbólica da pulsão de vida que conduz a voz lírica para experiências
sensoriais no mundo, como é perceptível em: Louvor ao Tempo (cujo teor
erótico se realiza na representação do Tempo personificado em uma figura
masculina que “atravessas as noites”) e Casa do alto (cujas sutilezas
eróticas surgem na metáfora do amor em gozo, conforme se percebe na imagem das
nuvens).
Também é significativo,
na busca estética da autora, o texto Balé. Com olhar crítico e certa
ironia, ele tem relação de intertextualidade com o Poema de sete faces,
de Carlos Drummond de Andrade, e também com o texto Com licença poética,
de Adélia Prado, como é perceptível no trecho:
O anjo torto com o dedo tão reto
Apontou
E com três grandes pedras na mão
Cada qual com seu teor de opressão
Prontas para pôr em cima da cabeça
dela
O anjo da esperteza inglória
anunciou:
— Vais ser escrava.
(Alves, 2023, p.
101)
A resposta da voz
lírica à ordem do “anjo da esperteza inglória” é emblemática, porquanto ela não
está disposta a submeter-se às determinações opressivas desse anjo torto cujo
dedo reto e inquisidor deseja subjugá-la:
— Sai fora, autoproclamado Senhor
Em meu coração só brota semente de
Amor
Carrega tu mesmo as pedras de tua
autoria
Que eu nasci para ser livre e
semear poesia.
(Alves, 2023,
p. 102)
Os debates em
torno do ser mulher negra, em uma sociedade racista, atravessam a produção
lírica da autora. Ela problematiza a realidade social brasileira e está
comprometida em utilizar como conteúdo de sua obra: o racismo estrutural que
perpassa socio-historicamente o Brasil, o racismo singularizado pela
experiência da mulher negra (que sofre ainda mais quando se vê diante do
patriarcado e suas reverberações), a busca pela liberdade de expressão, a
exigência pela valorização cultural afro-brasileira e a reivindicação em torno
da criação de políticas públicas que providenciem a construção de leis e a
concretização de direitos necessários à dignidade da pessoa negra.
Nessa perspectiva,
essas e tantas outras temáticas são encontradas em: Entretantos (repleto
de um tom de afirmação da negritude marcada pela seguinte revelação: “Entre os
negociantes / Eu sou a negra ciente / Um neuro acidente / A corroer a imunidade
ocidental”), Eu negra (reivindicação feminista que coloca em pauta o
“útero universal” e a coragem de afirmar o ser-mulher-negra), Dandara (evocação
da heroína quilombola Dandara dos Palmares, que preferiu morrer a submeter-se à
escravização e tornou-se símbolo de resistência, além da retomada de imagens
líricas como a comparação da voz lírica com: as “Flores-Fênix-Astrais”, “Pomba
Preta da paz que Gira” e “Fêmea Vulcânica”), Mensagem da meia noite
(texto repleto de verbos conjugados no modo imperativo dizendo à mulher que não
se mate, não se culpe, não se puna, não se cale, não se negue, pois o mais
relevante seria encandear seu próprio mundo e querer-se, como a voz lírica
propõe: “Não se traia, Mulher / Não se traia”).
O mesmo aspecto
temático é retomado em um dos poemas mais bem realizados do livro: Preta que
pariu (II). Ele merece destaque pelo fato de que faz críticas ao discurso
patriarcalista que, reproduzido hegemonicamente, atribui à mulher: ora o
aprisionamento fatalista do espaço doméstico, ora a necessidade de ser uma
“guerreira”. A autora faz-nos pensar em algo relevante: adjetivar uma mulher de
“guerreira” pode ser uma trapaça discursiva, tendo em vista que, por trás do
suposto elogio ou falso estímulo, está incutida uma exigência: o sujeito
feminino está atravessado pela obrigatoriedade de ser perfeita, de manter-se
firme, forte e em constante disposição para os enfrentamentos da vida, como se
a mulher tivesse sempre que dar “conta da demanda” e não precisasse “de tempo
de cura”.
De modo direto ou
indireto, o discurso que combate o racismo e tece críticas sociais aparece nos
poemas: Terra prometida (no qual se localizam os versos: “O meu Quilombo
é essa paz que me habita / E a linguagem que minha ancestralidade utiliza”), Território
livre (na ânsia por liberdade, a voz lírica afirma: “E solto o grito de
independência / Sufocado por séculos de culpa e outras ilusões / Liberto-me, eu
Terra livre de tantas tensões”) e As cercas de lá, as cercas de cá (a voz
lírica trata de questões sociais e constrói versos potentes como os que dizem: “Haverás
de pagar por tua cegueira / Causada pelo brilho de capital grandeza / Que se
ergue em nome da civilização”.
Componentes
líricos vinculados à natureza surgem nos poemas: O tempo da rosa (o
tempo é tematizado como algo que possibilita cura), Olhos abertos (no
título está a metáfora para a capacidade de autopercepção e de autoconhecimento,
e que traz a imagem da rosa opondo-se, desta feita, à imagem presente no poema O
tempo da rosa, quando se indaga: “Quanto estrume sustenta o perfume da rosa?”),
Beira Mar (apresenta vocábulos como água, esperança, fé e crença da vida),
Transitória (poema-travessia com versos que se repetem: “Metade é água
que vai / Metade é porto que fica”), Estrela (movimento que assume a
coragem diante da vida manifestando-se em desafios de “luz” e de “escuridão”) e
O farol e o barco (faz alusão a levezas como as imagens que envolvem:
criança, rosa, lua, da estrela e noite).
Merece atenção,
ainda, o poema Da raiz às asas. Nele, a voz lírica reporta-se ao coração
em uma espécie de prece-diálogo no qual prepondera um embate discursivo entre
razão e emoção.
Para
concluir essa parte, o texto Retrato de Família pode ser considerado um poema-síntese
do livro, tendo em vista que, das imagens nele apresentadas, irrompem todas as
outras: casa grande, senzala, hierarquia familiar pautada no poder do patriarcado,
escravidão, racismo, infância traumatizada, coisificação do corpo feminino,
violência física e verbal contra a mulher, opressão nas relações, crítica
social em decorrência das desigualdades sociais historicamente constituídas, solidão
da mulher (intensificada quando essa mulher é negra e de classe social não
privilegiada), luta contra preconceitos raciais, necessidade de resolver a
dicotomia existencial (desistir das lutas da vida ou prosseguir com o peso de ter
que, eternamente, resistir?) e construção de si mesma através da interiorização
e da busca do autoconhecimento.
Emblemático na
conclusão dessa parte do livro, o poema A despedida apresenta cinco
versos e poderia, perfeitamente, ser denominado um miniconto:
Já na despedida a pérola pergunta
pra concha:
— É possível uma sereia criar asas?
E a concha respondeu:
— É possível um grão de areia
tornar-se pérola?
Então os rios despejaram seus
lamentos nos braços do Mar.
(Alves, 2023, p. 131)
A quinta e última
parte do livro, intitulada Oceano – além do limite, é marcadamente
filosófica. Isso fica nítido em poemas como: Espelho negativo (a
descoberta do corpo e da subjetividade), Repetição e diferença (poema
curto, realizado em quatro versos, que se questiona a respeito do que há de
igual em si), Vontade de potência (o título evoca o termo, criado por
Nietzsche, que consiste na capacidade que a vontade tem de concretizar-se em
consonância com outras forças atuantes na construção ontológica do ser), Entre
o fim e o sim (a palavra surge envolta nas dicotomias do ser: proximidade e
distância, não e sim, idas e retornos) e Labirinto (perder-se no “mundo
branco”, um labirinto de subjugações, exige ações contra a “grande engrenagem
que movimenta o servo a servir”).
Ainda nessa
perspectiva, o poema Que nem Átomo aponta a busca existencial de uma voz
lírica que bate na porta do quarto “vazio da verdade” percebendo o quão difícil
pode ser manter o equilíbrio “e não olhar para trás”. O que estaria detrás da
porta? A indagação da voz lírica (contida no verso “Cadê o amor?”) indica-nos
que ela estava em busca do amor, mas quem teria imposto isso: “Paredes erguidas
por quem? / Pela fé de minha imaginação?” Diante do nada, tendo em vista que o
quarto não tem parede, chão ou qualquer “ponto de referência”, ela constata:
“Estou livre para construção”. Renova-se o caminho, portanto, pois no
esvaziamento e no nada há espaço para construir-se.
É pertinente considerar
que o poema Quando Um quer ser o Todo é uma paródia definitivamente bem
realizada do Pelo Sinal, isto é, a oração que antecede demais orações católicas.
Nesse mesmo contexto, Filha prodígio aparece como um poema que encerra o
livro e evoca no título, de forma irônica, a parábola bíblica do filho pródigo.
Nele, a voz lírica alude ao retorno para casa que, nas camadas profundas do
texto, remete à necessidade de retorno para dentro de si mesma.
São instigantes os
debates presente nos textos: Jardim da memória (poema curto que opta pela
memória não como um “cemitério” que deveria ser abandonado, mas como um “jardim
imenso” ao alcance das mãos para que as experiências vividas possibilitem novos
caminhos) e Dejavú (discorre sobre o tema da memória que, nesse
poema-pílula, aparece como algo que cria e move a “História” e, também,
apresenta-se como o “Elo que une ou fragmenta essa corrente”.
Para finalizar
essa parte, no texto Sertão vira Mar é possível localizar a
personificação do amor, conforme é observado nos versos: “Já que não posso te
ver / Ouça o que eu tenho a dizer”. A voz lírica, por sua vez, expressa sua
comoção diante da possibilidade de chegada do amor que seria concretizado após
os empecilhos inerentes e, por fim, ela comenta: “E quando acabei de chorar / O
Sertão / Já era Mar...” Com isso, a expressão proferida por Antônio Conselheiro
é ressignificada por meio de uma hipérbole que encerra o poema.
No final do livro,
a autora produz um ensaio intitulado Síndrome Senhorial, isto é, uma espécie
de epílogo que sintetiza, por meio do texto em prosa, as visões tecidas pela
autora, ao longo do livro, em textos poéticos. A autora conceitua essa síndrome
da seguinte forma:
Sendo um transtorno que acomete a
branquitude afetada pelo sentido de superioridade valorativa a ela atribuída,
essa síndrome pode gerar distorções de percepção, de pensamento, do senso de
identidade, de emoções e de comportamento provocando, inclusive, delírios e
alucinações de superioridade criando a necessidade de sua manutenção através de
privilégios e de teorias absurdas que os justifiquem (Alves, 2023, p. 149).
Em
busca de compreender as problemáticas inerentes a essa síndrome, que pode levar
a pessoa negra a sentir auto-ódio de si mesmo, a vivenciar o “complexo
antinarciso (se negar a ver, aceitar e/ou contemplar sua própria face)”, o excesso
de autocontrole, a reclusão e a culpa, a
autora (Alves, 2023, p. 150) elabora estudo no qual propõe que esse sistema
deve ser interrompido, sobretudo por meio de um compromisso social que envolve
a sociedade e suas instituições.
Karla Jaqueline
Vieira Alves nasceu em Juazeiro do Norte–CE, é mãe, escritora e poeta insubmissa,
anticolonial e libertária. Mulher Preta do Cariri cearense, é graduada em
História, pela Universidade Regional do Cariri–URCA, pesquisadora e palestrante
sobre a história e a memória da população negra no Ceará, com foco na história
das mulheres pretas, a exemplo de sua pesquisa iniciada em 2013 sobre a
história da Preta Tia Simoa. Além disso, é membro fundadora do Coletivo de
Mulheres Negras do Cariri Pretas Simoa, criado em 2013, e é criadora do
Projeto de Escuta: Preta, me conta tua história de amor, destinado a
mulheres pretas. Já atuou como produtora e agente cultural, com trabalho
voltado para a cultura popular das periferias do Cariri cearense. Tem poema
publicado na obra Poetas negras brasileiras: uma antologia, organizada
por Jarid Arraes, em 2021, e no livro Juazeiro tem artistas, Juazeiro tem
poesia: manifesto poético, organizado por Émerson Cardoso, em 2024.
Publicou, em 2023, seu livro de estreia: Contra Banzo. Essa obra foi
realizada por meio de recursos do XII Edital de Incentivo às Artes da
SECULT–CE.
[1] ALVES, Karla
Jaqueline Vieira. Contra Banzo. Brasília: Aldeia de Palavras; Fortaleza:
Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, 2023.
[2] A propósito, Karla Jaqueline Vieira Alves é Membro Fundadora do Coletivo de Mulheres Negras do Cariri Pretas Simoa, criado em 2013, e concedeu entrevista a Jarid Arraes sobre o assunto. Cf. ARRAES, Jarid. Preta Simoa e a Abolição no Ceará: uma história de esquecimento. 2014. Disponível em: https://www.geledes.org.br/preta-simoa-e-abolicao-ceara-uma-historia-de-esquecimento-por-jarid-arraes/. Acesso em: 17 set. 2024.
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