segunda-feira, 14 de outubro de 2013

CRÔNICA: UM ESPELHO QUE ME ROUBOU DE MIM


Buscava pores de sol em longas marchas e encontrei, perplexo, o mundo em mim por meio do olhar de um cavalo. Perdido em pensamentos me deparei com seu relinchar que mais me absorveu do que me amedrontou. Foi quando fechando os olhos os abri em seguida e o vi: ele, em nublação, bem próximo a mim relinchava. Olhamo-nos perplexos.
            Sob um por de sol em véu de sombras eu vislumbrei um outro-eu que mais me via em pelo e força. Altivo, de longa crina, de lisa cauda, de músculos exatos, de olhar poético em eternos soslaios ele, meu outro-eu, atirou sobre mim sua presença jamais anônima... Aprisionado, nenhum animal poderia parecer tão livre. Eu, tão aparentemente livre, jamais poderia dizer de mim um ser humano livre, porque para ser livre em cavalo deveria me transformar – e eu não tenho a força.
            O cavalo cinza, num segundo em que o sistema solar teimava em não se desfazer, me fitou. O cavalo cinza. Como quem vela o filho convalescente, ele, a nublação dos olhos, me tocou com suas cansadas mãos. Crina ao vento, num murmúrio inaudível ele me tocou. Por certo o medo poderia me transtornar: mas das alturas enfrentei as afrontas sem que a culpa me consumisse.
            Seu olhar me devassou enquanto, sem palavras, eu falava e falava e falava. O vento que assanhou sua crina rasgou em súbito meu olhar. E houve o silêncio: um velho que num poço buscou água sem que a água se deixasse aprisionar. Aves pernoiteiras desfilavam pelo céu em arrebol e eu caía em pontiagudas ânsias: sede de alguma coisa que sequer eu sou, nem sei.
            Olhamo-nos por três segundos? Pés despindo o tempo e mãos tateando o não-viver. Quase o grito cerceou o tão buscado silêncio. Um relinchar me deu mais a mim que eu pudesse compreender: meu olho escuro no espelho de um cinzento olhar. Quem mergulhou primeiro no poço escuro do olhar de quem? Devo ter sido menos corajoso: um cavalo não tem medo de calabouços ou grilhões. 
            Fugindo caí na esperança de nunca mais temer um relinchar em prata. Mas quem não é cavalo sofre mais que o relho no ventre de um mamífero hipomorfo da ordem dos ungulados. Fugi de mim que no espelho do cavalo, em cinza, apertava grades indestrutíveis. E fui embora antes que, ao relinchar, o cavalo me desse mais a mim que eu fosse capaz de suportar. E nunca mais – silêncio profundo – eu o vi.  

14/10/13
Texto de: Émerson  Cardoso

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