quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

LEITURA: "PAPOULAS EM FELTRO NEGRO", DE LYGIA FAGUNDES TELLES


Lygia Fagundes Telles publicou seus primeiros contos no fim da década de 30: Porão e sobrado, de 1938, Praia viva, de 1944, e Cacto vermelho, de 1949, obras das quais ela só reedita alguns textos por dizê-las superadas. A primeira obra de grande repercussão foi o romance Ciranda de pedras, de 1954, e depois desta obra seguiu por uma carreira que legou às letras brasileiras obras de profundidade tanto pela temática abordada, quanto pela técnica narrativa. Sua obra apresenta personagens delineadas a partir de sólida análise psicológica e, neste elenco, surgem mulheres construídas à luz de lembranças deploráveis, frustrações afetivas, solidão e impulsos que, por vezes, resultam em desespero e dor; estas mulheres podem ser senhoras de terceira idade, adolescentes no auge da puberdade, mulheres inescrupulosas, apaixonadas, suicidas, à beira da loucura, senhoras casadas ou mulheres dicotomizadas entre a satisfação dos seus desejos e a incompatibilidade da realidade em que estão inseridas, e trata, também, da homossexualidade feminina. Ou seja, a versatilidade dos tipos que ela cria torna sua obra rica pela construção de personagens que no espaço da narrativa assumem posturas as mais diversas. É por meio delas que Lygia Fagundes Telles intensifica o conhecimento do mundo interior do ser humano, pois realiza impecáveis investigações psicológicas.
Para colocar em pauta a discussão sobre o fazer literário desta autora, e exemplificarmos o grau de densidade que ora atribuímos à sua prosa, apresento abaixo, como proposta de leitura, o conto “Papoulas em feltro negro”, um dos contos da obra "A noite escura e mais eu", publicado em 1995 que traz, em seu enredo, a não sutileza das relações com os seus “não ditos” e os seus “por dizer”. O enredo apresenta um acontecimento simples e, de certa forma, pouco original. Colegas de turma se reúnem, depois de anos, para homenagearem uma velha professora que, para o narrador autodiegético, era uma megera pouco merecedora de comemorações. O conto inicia por meio de um diálogo, via telefone, entre a narradora e sua antiga colega de turma, que se chama Natividade. O telefonema a conduz, sem dificuldades, mas não sem mal-estar, para um retorno ao passado. Nele, se depara, sem muita alegria, com o desprazer de ter conhecido a professora D. Elzira – alvo de sua mais severa aversão. No entanto, a verdade nem sempre pode ser auferida se considerada por apenas um ângulo de visão. Quem de fato é algoz ou vítima nesta história?
Se quiser descobrir, leia:  


PAPOULAS EM FELTRO NEGRO


— Aqui é a Natividade, você ainda se lembra de mim? — ela perguntou. — Fomos colegas de escola, a magrela de cachos!
Afastei um pouco o fone do ouvido, Natividade falava alto e a voz era metálica, Ainda se lembra de mim? Revi a menininha comprida, de cachos úmidos enrolados na vela. No cheiro da memória, uma vaga aragem de urina, ela urinava na cama.
— Eu era a sessenta e sete e você a sessenta e oito. A gente vivia levantando a mão para ir à casinha — eu disse e Natividade começou a rir o antigo riso de anãozinho de floresta.
— Hi, hi, hi!... E tinha outro jeito de fugir da aula?
Não tinha não. A fuga era para a latrina que a gente chamava de casinha, um cubículo com chão de cimento, os quadrados de papel de jornal enfiados num arame preso a um prego e o vaso com o assento de madeira rachado. Ao lado, pendendo da caixa da descarga, a corrente que ninguém puxava. O cheiro era tão forte que eu prendia a respiração até o limite da tosse, tossia tanto que ficava sem ar e então abria a porta e saía espavorida.
— Inventamos uma homenagem à Dona Elzira, lembra dela? — perguntou Natividade. — A nossa professora de aritmética está tão doente, vai morrer logo! Daí essa ideia de reunir as meninas num chá na Confeitaria Vienense, que vai fechar, saiu da moda. Mas lá tem piano, tem violino, já pensou? Fica mais alegre.
Apanhei o cigarro que tombou no tapete, tomei um gole de conhaque e voltei ao telefone pedindo desculpas, tive que fechar a janela. A Dona Elzira?
— Lembro muito bem. Ela me detestava.
Natividade deu uma risadinha e de repente ficou séria. Mas não era possível, ela falara em mim com tanta simpatia, será que eu não estava fazendo confusão com aquela
outra professora de geografia?
— Dona Elzira é inesquecível — eu disse e tapei o bocal do telefone enquanto tossia. Foi há tanto tempo e com que nitidez me lembrava dela. — Então está doente? Me parecia eterna.
Nem gorda nem magra. Nem alta nem baixa, a trança escura dando uma volta no alto da cabeça com a altivez de uma coroa. A voz forte, pesada. A cara redonda, branca
de talco. Saia preta e blusa branca com babadinhos. Meias grossas cor de carne, sapatões fechados, de amarrar. Impressionantes eram aqueles olhos que podiam diminuir e de repente aumentar, nunca eu tinha visto olhos iguais. Na sala atochada de meninas que eram chamadas pelo número de inscrição, era a mim que ela procurava. A sessenta e sete não veio hoje? Estou aqui, eu gemia nesse fundo da sala com a frouxa fieira das atrasadas, das repetentes, enfim, a escória. Vamos, pega o giz e resolva aí esse problema. O giz eu pegava, o toco de giz que ficava rodando entre os dedos suados, o olhar perdido nos números do quadro-negro da minha negra humilhação. Certa manhã a classe inteira se torceu de rir diante da dementada avalanche dos meus cálculos mas Dona Elzira continuou impassível, acompanhando com o olho diminuído o meu miserável raciocínio.
— A pobrezinha mora no inferno velho lá onde Judas perdeu as botas, as botas e as meias! — disse Natividade. — Mas essa nossa pianista eu encontrei fácil.
— Não toco mais, só leciono.
Natividade ficou pensando. Quando desatou a falar, lembrou que já tinha escutado um disco onde eu tocava um clássico mas apareceu um gato e tchum! arranhou o disco. Se a agulha caía nessa valeta, acrescentou e riu, Hi, hi! A pergunta veio inesperada, por acaso eu sofria de asma? É que a irmã caçula tinha uma tosse igual.
 Minha cara se fechou, mas como ela me ouviu tossir? Pois ouviu.
— Tive bronquite quando criança — eu disse e de repente descobri uma coisa curiosa, a simples lembrança infantil me fazia tossir novamente. A tosse da memória. — Mas sarei, esta tosse agora é nervosa, coisa da velhice.
— Mas quem está velha? — protestou Natividade. — Você deve andar pelos cinquenta e poucos, acho que regulamos de idade. Ou não? Somos jovens, meu anjo!
Animada com essa ideia, ela começou um monólogo sobre seus dois casamentos, no primeiro foi felicíssima, um esplendor de marido que morreu jovem, a sorte é que ficaram quatro filhos. Mas na segunda vez, Cristo Rei! Que desastre. Começou a entrar nos detalhes do casamento que chamou de burrada, mas sua voz e seus cachos foram ficando distantes. Próxima estava eu mesma com o uniforme cor de café com leite, escondendo entre os cadernos da escola um rolo de gaze e uma echarpe de seda que minha mãe jogou no lixo e eu recolhi. A ideia me veio em meio de uma aula e foi amadurecendo, alguém já tivera uma ideia igual? Um quarteirão antes de chegar à escola, enrolava a gaze para atadura no pulso direito e depois enfiava o braço na tipoia da echarpe. Antes, olhava em redor, nenhuma testemunha? Carregava a mala na mão esquerda e fazia aquela cara dolorida, Torci o braço num tombo de patins, não posso nem pegar no lápis. Nem no lápis nem no giz. Até chegar a tarde em que arranquei a tipoia e entrei num jogo de bola. Em meio da paixão da partida, o pressentimento, Dona Elzira estava me vendo de alguma das janelas do casarão pardacento. Levantei a cabeça. O sol incendiava os vidros e ainda assim adivinhei em meio do fogaréu da vidraça a sombra cravada em mim.
Agora Natividade falava dos netos. Passei o fone para o outro ouvido, mudei de posição na cadeira e consegui interrompê-la.
— Não, francamente, não tenho nada a ver com esse chá, Dona Elzira me detestava.
— Cristo Rei! mas como você pode ser assim dura, a pobrezinha está com aquela doença na fase final, tem os dias contados, um pé continua aqui e o outro já está no Vale da Morte, não é impressionante? Meu pai, que era crente, dizia uma coisa que nunca esqueci, quando alguém passa de um certo ponto da doença, começa a fazer parte desse outro lado como se já tivesse morrido. O que é uma vantagem, agora ela está mais fortalecida porque vê o que não via antes nas pessoas, nas coisas.
Esfreguei a sola do sapato na marca que o cigarro deixou no tapete. Até na hora da morte essa Dona Elzira se amarrava no poder, ficou uma viva-morta invadindo os outros, todos transparentes, Cristo Rei! era a minha vez de dizer. Tranquilizei Natividade, podia enrolar os cachos, eu iria ao chá. Ela desatou a rir, cortara o cabelo quando mocinha.
— Dê então um lustre nessas ondas. E que o tal violinista toque a “Valsa das Patinadores”.
Quando me estendi no sofá, gemi de puro cansaço, fora o mais arrastado dos telefonemas, uma carga. Tive vontade de cantar com a voz da infância a cantiga de roda do recreio, No alto daquele morro passa o boi, passa a boiada e também passa a moreninha da cabeça encacheada. A encacheada era a Natividade remexendo com uma varinha o fundo lodoso da memória. Mas não sabia que essa lembrança era para mim sofrimento? As quatro operações. As quatro estações. Eu quis tanto ser a Primavera com aquele corpete de papel crepom verde e saiote desabrochado em pétalas, cheguei a ensaiar os primeiros passos no bailado das flores, Dona Elzira foi espiar o ensaio. No dia seguinte fui avisada, outra menina ia entrar no meu lugar. Na Festa das Aves me entusiasmei de novo, a Dona Elzira me pediu para decorar a poesia do pássaro cativo, vou recitar! E quem contou a história do passarinho nas grades foi a Bernadete. Nas vésperas da Festa da Árvore ela quis saber se eu tinha decorado alguma coisa que falasse do verde. Vibrei, sabia de cor a poesia do pinheirinho de Natal, podia começar? Juntei os pés, entrelacei no peito as mãos suadas para não ficar com elas abanando no ar e contei a história do pequeno pinheiro que brilhou tanto naquela noite de festa e depois... Ela tomava sua xícara de café. Ouviu, fez um gesto de aprovação e chegou a sorrir, estava satisfeita. No dia da festa, fui com minha mãe e sentamos na primeira fila porque assim ficaria mais fácil quando eu fosse chamada ao palco. Depois que a Bernadete recitou a poesia das velhas árvores, quando todos se levantaram e a cortininha se fechou, minha mãe me puxou pela mão, Vamos. Na rua, continuou em silêncio e eu também muda, piscando com fúria para segurar as lágrimas que já corriam livremente. Em casa ela me segurou pelos ombros, Mas Dona Elzira disse que você ia recitar? Ela disse isso? Vamos, filha, responda! Desabei no chão, quis falar e minha boca se travou, estava certa do convite mas com minha mãe perguntando eu já não sabia responder.



— Atenção, meninas! — assim ela abria a aula. A gente então parava de conversar e se voltava para vê-la com sua trança e seu talco no alto do estrado. — Atenção!
Eu estava atenta quando entrei na antiga confeitaria com espelhos, toalhas de linho e violinista de cabelos grisalhos, smoking, a se torcer todo enlevado no compasso rodopiante da valsa. Parei atrás de uma coluna e fiquei espiando, lá estava a mesa com um exuberante arranjo de flores. E Dona Elzira na cabeceira. Estava de escuro, a cara meio escondida sob o enorme chapéu preto, mas o que aconteceu? Tinha diminuído tanto assim? Não era uma mulher grande? Deixei-a, queria ver antes as meninas no auge da excitação, juvenis nos seus melhores vestidos. Reconheci Natividade, que ficou loura e gorda, os cabelos curtos formando uma auréola em redor da cara redonda. Reconheci Bernadete, a das poesias. Continuava ossuda e ruiva, mais frequente o tique nervoso que lhe repuxava a face fazendo tremer um pouco a pálpebra direita. Ou a esquerda? Ainda assim me parecia melhor agora, madura e contente com suas pulseiras e casaco brilhoso. Não reconheci as outras duas matronas e nem me interessei em saber, era a vez de Dona Elzira.
Que estivesse velha, isso eu esperava, mas assim tão diminuída? Encolheu demais ou eu a imaginara bem maior lá na sala de aula? E o chapéu, mas que chapéu era aquele? A copa de feltro negro até que era pequena, grande era a aba com um ramo de papoulas de seda postas de lado, umas papoulas desmaiadas, as pontas das hastes tombando para fora.
Guardei os óculos na bolsa e fui indo em direção à mesa, minha movimentação diante dela ainda era em câmera lenta, a fuga começava quando ficava fora do seu alcance.
— Perdão pelo atraso, mas o trânsito — comecei. E de repente me vi repartida em duas, eu e a menina antiga com ar de sonâmbula, estendendo a mão para pegar o giz.
Quando me viu, endireitou os ombros e a cara foi se abrindo numa expressão de surpresa, Ahn, você veio! Natividade levantou-se radiante e indicou-me a cadeira ao lado da homenageada, A nossa pianista! Respondi logo às primeiras perguntas, não estava mais tocando, não tinha marido e não tinha filhos mas de vez em quando até que
passava o meu batom, gracejei. Ninguém ouviu, todas falavam ao mesmo tempo numa aguda vontade de afirmação, Vejam como estamos realizadas e felizes! Riam, trocavam confidências na maior intimidade mas ficavam cerimoniosas quando se dirigiam à Dona Elzira, tão próxima e tão distante com o seu empoeirado chapéu. Esse chapéu devia ter vindo de uma caixa que se abria em dias de casamento, foi madrinha de um deles e desde então ficou sendo o chapéu das festas com a aba ondulada de tão larga, o ramo frouxo de papoulas quase escorregando para o chão. Inclinou-se e tocou na minha mão. Senti seu perfume de violetas.
— Minha aluna predileta.
Encarei-a. Seus olhos pareciam agora mais claros sob uma certa névoa esbranquiçada, mas poderia ser simples efeito de luz.
— Aluna predileta, Dona Elzira? Mas a senhora nunca me aceitou — provoquei num tom divertido.
Ela tomou um gole de chá. Mordiscou um biscoito. Deixou-o na borda do prato e acompanhou com interesse o garçom que me servia uísque. Esperou que eu bebesse e então pousou a mão no meu pulso. Senti uma frialdade diferente nessa pele. Aproximei-me para ouvi-la e de mistura com o perfume me veio dela um outro cheiro obscuro e mais profundo.
Recuei. Seus dentes pareciam ocos como cascas de amêndoas velhas sob o esmalte com manchas esverdeadas.
Levou a mão vacilante até os escassos cabelos brancos cortados na altura da orelha. Teve um ligeiro movimento de faceirice para ajeitá-los melhor sob a aba do chapéu. Tocou com as pontas dos dedos na minha blusa e como se fosse fazer um comentário sobre o tecido, começou a falar, o fato é que eu era uma menina muito complicada. Muito difícil.
— Difícil?
Ela moveu lentamente a cabeça. O chapéu teve um meneio de barco. Dificílima, minha filha. Tomou fôlego e prosseguiu em voz baixa, eu não podia mesmo imaginar o quanto se preocupara comigo, pensou até em falar com minha mãe, será que eu não tinha sérios problemas em casa?
Sem esperar pela resposta, acrescentou rapidamente que o mais estranho em tudo isso é que eu passava de repente da maior apatia para a agressão, chegava a ficar violenta quando apanhada em flagrante.
Fiquei muda. Seus olhos que tinham aquele fulgor do aço me pareciam agora os olhos de um cego.
— Flagrante? Flagrante do quê, Dona Elzira?
— Da mentira, filha — sussurrou e aceitou a fatia de bolo que o garçom deixou no seu prato. Com a ponta do garfo ficou divagando pensativa pela fatia que não provou. — Você mentia demais, filha. Mentia até sem motivo, o que era mais grave. E se crescer assim? eu me perguntava e sofria com isso, tinha receio de algum desvio do seu caráter no futuro.
Sei como as crianças gostam de inventar, fantasiar mas no seu caso havia alguma coisa mais que me preocupava... — Fez uma pausa. E baixou até o prato o olhar sem esperança.
— Sabe o que eu queria? Queria apenas que você fosse sincera, simples, queria tanto que fosse verdadeira.
— Prova! — ordenou Natividade deixando em minha mão um pãozinho de queijo. Apontou excitadamente para os músicos. — Está ouvindo? A “Valsa dos Patinadores” que encomendou.
Agradeci muito, devolvi disfarçadamente o pãozinho à cesta e voltei-me depressa para Dona Elzira, o encontro estava chegando ao fim e eu não podia perder tempo, ela estava se distanciando, me escapava. Mas que me devolvesse antes essa imagem que guardara de mim mesma e que eu desconhecia. Ou não?
— Mas Dona Elzira, ninguém é assim nítido, a senhora sabe. Eu era meio tonta e tão medrosa, como eu tinha medo!
— Tonta, não, filha, você não era tonta. Medrosa, sim, eu via o seu medo e era por causa desse medo que dissimulava.E eu querendo tanto que fosse corajosa, que parasse de fingir antes que fosse adulta, todo fingimento é infame.
Alguém deixou no seu prato um doce com cobertura de chocolate e que ela espetava com a ponta do garfo, abrindo furos pelos quais um creme licoroso começou a escorrer. Limpou com o guardanapo os cantos limpos da boca.
— Mas por que ficar lembrando essas coisas? Você cresceu tão bem, filha. Meu avô historiador costumava dizer que o que passou já virou história, não há mais nada a fazer, nada. É virar a página. Hoje você é uma pianista importante...
— Professora de piano.
Ela quis dizer qualquer coisa. Sorriu. Pedi licença para fumar.
— Claro, filha, fume o quanto quiser, nesta altura pode haver alguma fumaça que me prejudique?
Voltou-se para Natividade que lhe mostrava o retratinho da neta. Esvaziei o meu copo de uísque. E de novo a tosse antiga ameaçando explodir. Fiz um esforço e apertei-lhe delicadamente o braço.
— Um momento, Dona Elzira, é que ainda não terminei, queria apenas lembrar uma coisa, a senhora me rejeitou demais, lembra? Cheguei a pensar em perseguição, o que eu mais queria no mundo era fazer parte daquelas festinhas na escola, eu não sabia fazer contas, não sabia desenhar mas sabia tão bem todas aquelas poesias das Páginas Floridas, decorei tudo, quis tanto subir ao menos uma vez naquele palco! A senhora que me conhecia tão bem sabia dessa minha vontade de vestir aquelas fantasias de papel crepom, o que custava? Por que me recusou isso?
— Mas você gaguejava demais, filha. E não se dava conta da gagueira, insistia. Eu queria apenas protegê-la de alguma caçoada, de algum vexame, você sabe como as crianças podem ser cruéis.
— Minha neta, não é linda? — perguntou Natividade e me deixou na mão o retratinho.
— Linda.
E não via o retrato, via a mim mesma dissimulada e astuta, infernizando a vida da professora de trança. Então eu gaguejava tanto assim? Invertiam-se os papéis, o executado virava o executor — era isso? Dobrei o cheque dentro do guardanapo e fiz um sinal para Natividade, a minha parte. Despedi-me, tinha um compromisso. Dona Elzira voltou-se e me encarou com uma expressão que não consegui decifrar, o que quis me dizer? Quando tentei beijá-la, esbarrei na vasta aba do chapéu. Beijei-lhe a mão e saí apressadamente. Parei atrás da mesma coluna e fiquei olhando como fiz ao chegar. Tirei da bolsa os óculos de varar distâncias, precisava pegá-la desprevenida. Mas ela baixou a cabeça e só ficou visível o chapéu com as papoulas. 


 TELLES, Lygia Fagundes. Papoulas em feltro negro. In: A Noite Escura e Mais Eu. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.


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