domingo, 22 de junho de 2014

MODERNISMO EM PORTUGAL (PARTE III) - FLORBELA ESPANCA

FLORBELA ESPANCA

Florbela d'Alma da Conceição Espanca nasceu no dia 08 de dezembro de 1894 e morreu, aos 36 anos, no dia 08 de dezembro de 1930. Esta poetisa tem hoje seus versos admirados em todos os cantos do mundo, diferentemente do que aconteceu quando ainda viva, época em que foi praticamente ignorada pelos apreciadores da poesia e pelos críticos de então. Os dois livros que publicou, por sua conta, foram o “Livro de Mágoas” (1919) e “Livro de ‘Sóror Saudade’” (1923). Às vésperas da publicação de seu livro “Charneca em Flor”, em dezembro de 1930, Florbela pôs fim à sua vida. Tal ato de desespero fez com que o público se interessasse pelo livro e passasse a conhecer melhor a sua obra. Dizem os críticos que a polêmica e o encantamento de seus versos é devido à carga romântica e juvenil de seus poemas, que têm como interlocutor principal o universo masculino.

n  Difícil de classificar, a obra de Florbela Espanca é romântica à medida que se centra na expressão do Eu; é clássica pelo primor com que desenvolve o Soneto, embora se permita a certas liberdades formais; é simbolista pela realização de poemas em que se valoriza a sonoridade das palavras, a musicalidade.
n  A poesia de Florbela Espanca, mais expressiva no Soneto do que nas quadras, apresenta elementos fundamentais: a expressão da Dor em várias situações conduz ao confronto  do “Eu” com outros “Eus”. A Dor, para a poetisa, surge em suas mais diversas nuances:
n  Dor existencial que caracteriza o ser humano tornando-o distinto de outros animais;
n  Mágoa que está, de certo modo, ligada à sua sensação de que nascer foi uma dor inevitável;
n  Solidão surge, na obra da poetisa, com certa contradição: ela se isola por que sofre, ou sofre por estar isolada?
n  A natureza surge, em diversos textos, como elemento através do qual ela projeta seus estados de espírito;
n  Amargura se percebe como decorrência da dor e solidão que a afetam, tornando-a uma pessoa amarga e insatisfeita, angustiada;
n  A frustração acontece por não atingir seus objetivos e sentir a sua vida transformar-se em algo ilógico;
n  Há uma busca intensa, apesar das adversidades, de ver realizados os seus sonhos – prefere sofrer por amor e crescer com essa experiência do que não sofrer e não ter oportunidade de crescimento;
n  Há uma entrega irrestrita levada às últimas consequências;
n  Demonstra um medo ocasionado pelas diversas experiências de sofrimento vivenciadas ao longo de sua existência – e que está expresso ao longo de sua produção poética;
n  O Amor surge como um dos elementos mais fortes da sua lírica, e é apresentado como uma das causas da sua sensação de angústia e frustração existencial; há momentos, no entanto, em que o Amor surge como algo a ser exaltado, a ser buscado com ardor e como fonte inesgotável de bem-estar e realização pessoal;
n  Apesar da vida apresentar um lado bom e mau, e o Amor representar possível sofrimento, a poetisa convida à exaltação da vida através de três categorias: os boêmios, os vagabundos e os poetas – sobretudo os poetas, seres capacitados a enfrentar a vida livremente.

AMAR 

Eu quero amar, amar perdidamente! 
Amar só por amar: Aqui... Além... 
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente... 
Amar! Amar! E não amar ninguém! 

Recordar? Esquecer? Indiferente!... 
Prender ou desprender? É mal? É bem? 
Quem disser que se pode amar alguém 
Durante a vida inteira é porque mente! 

Há uma primavera em cada vida: 
É preciso cantá-la assim florida, 
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar! 

E se um dia hei de ser pó, cinza e nada 
Que seja a minha noite uma alvorada, 
Que me saiba perder... pra me encontrar...

                 (Charneca em flor)

SER POETA

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede do Infinito!
Por elmo, as manhãs de ouro e de cetim
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te assim perdidamente
E seres alma e sangue e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente.
                       (Charneca em flor)

IN MEMORIAM
                                  (Ao meu morto querido)

Na cidade de Assis, “Il Poverello”
Santo, três vezes santo, andou pregando
Que o sol, a terra, a flor, o rocio brando,
Da pobreza o tristíssimo flagelo,

Tudo quanto há de vil, quanto há de belo,
Tudo era nosso irmão! – E assim sonhando,
Pelas estradas da Umbria foi forjando
Da cadeia do amor o maior elo!

“Olha o nosso irmão Sol, nossa irmã Água...”
Ah, Poverello! Em mim, essa lição
Perdeu-se como vela em mar de mágoa

Batida por furiosos vendavais!
- Eu fui na vida irmã dum só Irmão
E já não sou irmã de ninguém mais!
          (Charneca em flor)

NEURASTENIA

Sinto hoje a alma cheia de tristeza!
Um sino dobra em mim, Ave Marias!
Lá fora,a chuva, brancas mãos esguias,
Faz na vidraça rendas de Veneza...

O vento desgrenhado, chora e reza
Por alma dos que estão nas agonias!
Flocos de neve, aves brancas, frias,
Batem asas pela natureza...

Chuva... tenho tristeza! Mas por quê?
Vento... tenho saudades! Mas de quê?
Ó neve, que destino triste o nosso!

Ó chuva! Ó vento! Ó neve! Que tortura!
Gritem ao mundo inteiro esta amargura,
Digam isto que sinto que eu não posso!!...
                (Livro de mágoas)

A MINHA DOR

 A minha Dor é um convento ideal
Cheio de claustros, sombras, arcarias,
Aonde a pedra em convulsões sombrias
Tem linhas dum requinte escultural.

Os sinos têm dobres d’agonias
Ao gemer, comovidos, o seu mal...
E todos têm sons de funeral.
Ao bater horas, no correr dos dias...

A minha Dor é um convento. Há lírios
Dum roxo macerado de martírios,
Tão belos como nunca os viu alguém!

Nesse triste convento aonde eu moro,
Noites e dias rezo e grito e choro,
E ninguém ouve... ninguém vê... Ninguém...
                       (Livro de mágoas)

FUMO

Longe de ti são ermos os caminhos,
Longe de ti não há luar nem rosas,
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem ninhos!


Meus olhos são dois velhos pobrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas...
Abertos, sonham mãos cariciosas,
Tuas mãos doces, plenas de carinhos!


Os dias são outonos: choram... choram...
Há crisântemos roxos que descoram...
Há murmúrios dolentes de segredos...


Invoco o nosso sonho! Estendo os braços!
E ele é, ó meu Amor, pelos espaços,
Fumo leve que foge entre os meus dedos!...

           (Livro de “Sóror Saudade”)

FRIEZA

Os teus olhos são frios como as espadas,
E claros como os trágicos punhais;
Têm brilhos cortantes de metais
E fulgores de lâminas geladas

Vejo neles imagens retratadas
De abandonos cruéis e desleais,
Fantásticos desejos irreais,
E todo o oiro e o sol das madrugadas!

Mas não te invejo, Amor, essa indiferença,
Que viver neste mundo sem amar
É pior que ser cego de nascença!

Tu invejas a dor que vive em mim!
E quanta vez dirás a soluçar:
“Ah! Quem me dera, Irmã, amar assim!...”
             (Livro de “Sóror Saudade”)
DEIXAI ENTRAR A MORTE

Deixai entrar a Morte, a Iluminada, 
A que vem para mim, pra me levar.
Abri todas as portas par em par 
Como asas a bater em revoada. 

Que sou eu neste mundo? A deserdada, 
A que prendeu nas mãos todo o luar, 
A vida inteira, o sonho, a terra, o mar, 
E que, ao abri-las, não encontrou nada! 

Ó Mãe! Ó minha Mãe, pra que nasceste? 
Entre agonias e em dores tamanhas 
Pra que foi, dize lá, que me trouxeste 

Dentro de ti?... Pra que eu tivesse sido 
Somente o fruto amargo das entranhas 
Dum lírio que em má hora foi nascido!...

                           (Reliquiae) 
 



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