terça-feira, 3 de novembro de 2015

FICHAMENTO DE TRANSCRIÇÃO: "O QUE É LITERATURA?", DE TERRY EAGLETON


EAGLETON, Terry. O que é literatura?. Teoria da literatura: uma introdução. Tradução Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

1 – Muitas têm sido as tentativas de se definir literatura. É possível, por exemplo, defini-la como a escrita “imaginativa”, no sentido de ficção – escrita esta que não é literalmente verídica. Mas se refletirmos, ainda que brevemente, sobre aquilo que comumente se considera literatura, veremos que tal definição não procede. (p. 01)
2 – A distinção entre “fato” e “ficção”, portanto, não parece nos ser muito útil, e uma das razões para isto é a de que a própria distinção é muitas vezes questionável. (p. 01)
2.1 – O fato de a literatura ser a escrita “criativa” ou “imaginativa” implicaria serem a história, a filosofia e as ciências naturais não criativas e destituídas de imaginação? (p. 02)
3 – Talvez a literatura seja definível não pelo fato de ser ficcional ou “imaginativa”, mas porque emprega a linguagem de forma peculiar. (p. 02)
NOTA: Esta seria a ideia de Jakobson, para quem a literatura é a escrita que representa “a violência organizada contra a fala comum”. A literatura transforma e intensifica a linguagem comum, afastando-se sistematicamente da fala cotidiana. Trata-se de uma linguagem que chama atenção sobre si mesma e exibe sua existência material.
NOTA: Eagleton discorre sobre os formalistas russos, apresentando-os no contexto em que eles apareceram – década de 1920. Segundo os formalistas, à crítica caberia preocupar-se com a maneira pela qual os textos literários funcionavam na prática, pois a literatura deveria ser considerada como uma “organização particular da linguagem”. A literatura tinha suas leis específicas, suas estruturas e mecanismos, que deviam ser estudados em si, e não reduzidos a alguma outra coisa. A literatura, para eles, era um “fato material” e não um veículo de ideias e de reflexões sobre a realidade social.
4 – Em sua essência, o formalismo foi a aplicação da linguística ao estudo da literatura; e como a linguística em questão era do tipo formal, preocupada com as estruturas da linguagem e não com o que ela de fato poderia dizer, os formalistas passaram ao largo da análise do “conteúdo” literário (instância em que sempre existe a tendência de se recorrer à psicologia ou à sociologia) e dedicaram-se ao estudo da forma literária. (p. 04)
4.1 – Longe de considerarem a forma como a expressão do conteúdo, eles inverteram essa relação: o conteúdo era simplesmente a “motivação” da forma, uma ocasião ou pretexto para um tipo específico de exercício formal. (p. 04)
4.2 – E embora eles não negassem que a arte tivesse uma relação com a realidade social – de fato alguns deles estavam estreitamente associados aos Bolcheviques – os formalistas afirmavam, provocadoramente, que essa relação fugia ao âmbito do trabalho crítico. (p. 04)
5 – Os formalistas começaram por considerar a obra literária como uma reunião mais ou menos arbitrária de “artifícios”, e só mais tarde passaram a ver esses artifícios como elementos relacionados entre si: “funções” dentro de um sistema textual global.
5.1 – Os “artifícios” incluíam som, imagens, ritmo, sintaxe, métrica, rima, técnicas narrativas; [...] e o que todos esses elementos tinham em comum era o seu efeito de “estranhamento” ou de “desfamiliarização”. A especificidade da linguagem literária, aquilo que a distinguia de outras formas de discursos, era o fato de ela “deformar” a linguagem comum de várias maneiras. (p. 05)
5.2 – Na rotina da fala cotidiana, nossas percepções e reações à realidade se tornam embotadas, apagadas, ou como os formalistas diriam, “automatizadas”. A literatura, impondo-nos uma consciência dramática da linguagem, renova essas reações habituais, tornando os objetos mais “perceptíveis”. (p. 05)
6 – Os formalistas, portanto, consideravam a linguagem literária como um conjunto de desvios da norma, uma espécie de violência linguística: a literatura é uma forma “especial” de linguagem, em contraste com a linguagem “comum”, que usamos habitualmente. (p. 06)
6.1 – A ideia de que existe uma única linguagem “normal”, uma espécie de moeda corrente usada igualmente por todos os membros da sociedade, é uma ilusão. Qualquer linguagem em uso consiste de uma variedade muito complexa de discursos, diferenciados segundo a classe, região, gênero, situação, etc., os quais de forma alguma podem ser simplesmente unificados em uma única comunidade linguística homogênea. (p. 06)
7 – [...] os formalistas [...] reconheciam que as normas e os desvios se modificavam de um contexto social ou histórico para outro – que “poesia”, nesse sentido, depende de nossa localização num dado momento. (p. 07)
7.1 – [...] para os formalistas, o caráter “literário” advinha das relações diferenciais entre um tipo de discurso e outro, não sendo, portanto, uma característica perene. Eles não queriam definir a “literatura”, mas a “literaturidade” – os usos especiais da linguagem –, que não apenas podiam ser encontrados em textos “literários”, mas também em muitas outras circunstâncias exteriores a eles. (p. 07)
8 – [...] os formalistas achavam que a essência do literário era o “tornar estranho”. Eles apenas relativizavam esse uso da linguagem, vendo-o como uma questão de contraste entre um tipo de discurso e outro. (p. 08)
8.1 – Pensar na literatura como os formalistas o fazem é, na realidade, considerar toda a literatura como poesia. De fato, quando os formalistas trataram da prosa, simplesmente estenderam a ela as técnicas que haviam utilizado para a epopeia. (p. 08)
9 – Um outro problema concernente ao argumento da “estranheza” é o de que todos os tipos de escrita podem, e trabalhado com a devida engenhosidade, ser considerados “estranhos”. (p. 09)
10 – Poderíamos dizer, portanto, que a literatura é um discurso “não-pragmático”; ao contrário dos manuais de biologia e recados deixados para o leiteiro, ela não tem nenhuma finalidade prática imediata, referindo-se apenas a um estado geral de coisas.
10.1 – Esse enfoque na maneira de falar, e não na realidade daquilo de que se fala, é por vezes considerado como uma indicação do que entendemos por literatura: uma espécie de linguagem auto-referencial, uma linguagem que fala de si mesma.
11 – Mas também essa definição da literatura encerra problemas. [...] Em grande parte daquilo que é classificado como literatura, o valor verídico e a relevância prática do que é dito é considerado importante para o efeito geral. (p. 11)
11.1 – Contudo, mesmo em se considerando que o discurso “não-pragmático” é parte do que se entende por “literatura”, segue-se dessa “definição” o fato de a literatura não poder ser, de fato, definida objetivamente.
11.2 – A definição de literatura fica dependendo da maneira pela qual alguém resolver ler, e não da natureza daquilo que é lido. Há certos tipos de escritos – poemas, peças de teatro, romances – que, de forma claramente evidente, pretendem ser “não-pragmáticos” nesse sentido, mas isso não nos garante que serão realmente lidos dessa maneira. (p. 11)
11.3 – Alguns textos nascem literários, outros atingem a condição de literários, e a outros tal condição é imposta. Sob esse aspecto, a produção do texto é muito mais importante do que seu nascimento. O que importa pode não ser a origem do texto, mas o modo pelo qual as pessoas o consideram. Se elas decidirem que se trata de literatura, então, ao que parece, o texto será literatura, a despeito do que o seu autor tenha pensado. (p. 12)
12 – [...] podemos pensar na literatura menos como uma qualidade inerente, ou como um conjunto de qualidades evidenciadas por certos tipos de escritos que vão desde Beowulf até Virginia Woolf, do que como as várias maneiras pelas quais as pessoas se relacionam com a escrita.
12. 1 – Não existe uma “essência” da literatura. Qualquer fragmento de escrita pode ser lido “não-pragmaticamente”, se é isso o que significa ler um texto como literatura, assim como qualquer escrito pode ser lido “poeticamente”. (p. 12)
12.2 – “Literatura” talvez signifique exatamente o oposto: qualquer tipo de escrita que, por alguma razão, seja altamente valorizada. (p. 13)
12.3 – Em muitas sociedades, a literatura teve funções absolutamente práticas, como função religiosa; a nítida distinção entre “prático” e “não-prático” talvez só seja possível numa sociedade como a nossa, na qual a literatura deixou de ter grande função prática. Poderemos estar oferecendo como definição geral um sentido do “literário” que é, na verdade, historicamente específico. (p. 12)
13 – [...] a sugestão de que “literatura” é um tipo de escrita altamente valorizada é esclarecedora. Contudo, ela tem uma consequência bastante devastadora. Significa que podemos abandonar, de uma vez por todas, a ilusão de que a categoria “literatura” é “objetiva”, no sentido de ser eterna e imutável. Qualquer coisa pode ser literatura, e qualquer coisa que é considerada literatura, inalterável e inquestionavelmente [...] pode deixar de sê-lo. (p. 14)
14 – A literatura, no sentido de uma coleção de obras de valor real e inalterável, distinguida por certas propriedades comuns, não existe. Quando, deste ponto em diante, eu utilizar as palavras “literário” e “literatura” neste livro, eu o farei com a reserva de que tais expressões não são de fato as melhores; mas não dispomos de outras no momento. (p. 15)
14.1 – A dedução, feita a partir da definição de literatura como uma escrita altamente valorativa, de que ela não constitui uma entidade estável, resulta do fato de serem notoriamente variáveis os juízos de valor.
15 – A dedução, feita a partir da definição de literatura como uma escrita altamente valorativa, de que ela não constitui uma entidade estável, resulta do fato de serem notoriamente variáveis os juízos de valor.
15.1 – Assim como uma obra pode ser considerada como filosofia num século, e como literatura no século seguinte, ou vice-versa, também pode variar o conceito de público sobre o tipo de escrita considerado como digno de valor. Até as razões que determinam a formação do critério de valioso podem se modificar. (p. 15)
16 – Não existe uma obra ou uma tradição literária que seja valiosa em si, a despeito do que se tenha dito, ou se venha a dizer, sobre isso. (p. 17)
16.1 – “Valor” é um termo transitivo: significa tudo aquilo que é considerado como valioso por certas pessoas em situações específicas, de acordo com critérios específicos e à luz de determinados objetivos. (p. 17)
17 – O fato de sempre interpretarmos as obras literárias, até certo ponto, à luz de nossos próprios interesses – e o fato de, na verdade, sermos incapazes de, num certo sentido, interpretá-las de outra maneira – poderia ser uma das razões pelas quais certas obras literárias parecem conservar seu valor através dos séculos. (p. 17)
17.1 – Todas as obras literárias, em outras palavras, são “reescritas”, mesmo que inconscientemente, pelas sociedades que as leem; na verdade, não há releitura de uma obra que não seja também uma “reescritura”. (p. 17)
18 – [...] as afirmações sobre os fatos são afirmações que pressupõem alguns juízos questionáveis.
19 – Todas as nossas afirmações descritivas se fazem dentro de uma rede, frequentemente invisível, de categorias de valores; de fato, sem essas categorias nada teríamos a dizer uns aos outros.
20 – Podemos discordar disso ou daquilo, mas tal discordância só é possível porque partilhamos de certas maneiras “profundas” de ver e valorizar, que estão ligadas à nossa vida social, e que não poderiam ser modificadas sem transformarem essa vida. (p. 20)
21 – A estrutura de valores, em grande parte oculta, que informa e enfatiza nossas afirmações fatuais, é parte do que entendemos por “ideologia”. Por “ideologia” quero dizer, aproximadamente, a maneira pela qual aquilo que dizemos e no que acreditamos se relaciona com a estrutura do poder e com as relações de poder da sociedade em que vivemos. (p. 20)
22 – Se não é possível ver a literatura como uma categoria “objetiva”, descritiva, também não é possível dizer que a literatura é apenas aquilo que, caprichosamente, queremos chamar de literatura. Isso porque não há nada de caprichoso nesses tipos de juízos de valor: eles têm suas raízes em estruturas mais profundas de crenças. (p. 22)

22.1 – Portanto, o que descobrimos até agora não é apenas que a literatura não existe da mesma maneira que os insetos, e que os juízos de valor que a constituem são historicamente variáveis, mas que esses juízos têm, eles próprios, uma estreita relação com as ideologias sociais. Eles se referem, em última análise, não apenas ao gosto particular mas aos pressupostos pelos quais certos grupos sociais exercem e mantêm o poder sobre outros. (p. 22) 

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