terça-feira, 3 de novembro de 2015

FICHAMENTO DE TRANSCRIÇÃO: "MIMESIS: A REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE NA LITERATURA OCIDENTAL", DE ERICH AUERBACH


AUERBACH, Erich. A cicatriz de Ulisses e Epílogo. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.

EPÍLOGO

SOBRE A CATEGORIA ANALÍTICA

1 – O tema deste escrito, a interpretação da realidade através da representação literária ou “imitação”, ocupa-me há longo tempo. Parti originalmente da interrogação platônica no livro X da República, que coloca a Mimesis em terceiro lugar após a verdade, em relação com a pretensão de Dante de apresentar na Comédia a realidade verdadeira.
1.1 – Ao observar os vários modos de interpretação dos acontecimentos humanos nas literaturas europeias, meu interesse concentrou-se e precisou-se, desenvolvendo-se algumas ideias diretrizes que procurei perseguir. (p. 499)

QUE IDEIAS SÃO ESTAS?
  •       A primeira destas ideias refere-se à doutrina antiga, mais tarde retomada por toda corrente classicista acerca dos níveis da representação literária. (p. 499)
  •         [...] tanto durante a Idade Média toda como ainda no Renascimento, houve um realismo sério; tinha sido possível representar os acontecimentos mais corriqueiros da realidade num contexto histórico sério e significativo, tanto na poesia como nas artes plásticas; a doutrina dos níveis não tinha validez universal. (p. 500). [Auerbach denomina como figural a “visão da realidade da tardia Antiguidade e da Idade Média”].
  •       Tornou-se-me claro que o realismo moderno, da forma que se formou no começo do século XIX na França, realiza como fenômeno estético uma total solução daquela doutrina [antiga]; mais total e mais significativa para a formação posterior da visão literária da vida do que a mistura do sublime com o grotesco, proclamada pelos românticos contemporâneos. (p. 499) [...] o realismo moderno [...] se desenvolveu [...] em formas cada vez mais ricas, correspondendo à realidade em constante mutação e ampliação da nossa vida. (p. 500)

2 – A visão da realidade expressa a partir das obras cristãs da tardia Antiguidade e da Idade Média é totalmente diferente da do realismo moderno. (p. 500)

SOBRE A PESQUISA

3 – A pesquisa fundamenta-se nessas três ideias estreitamente ligadas entre si, que deram forma ao problema original, mas que também lhe impuseram, evidentemente, limites mais estreitos. Naturalmente ela envolve uma variedade de outros motivos e problemas inerentes à abundância dos fenômenos históricos a serem tratados; contudo, a maior parte deles está de alguma forma ligada àquelas ideias e, em todo caso, recorre-se constantemente a elas. (p. 501)

SOBRE O MÉTODO

4 – Uma história sistemática e completa do Realismo não somente teria sido impossível, como também não teria servido à intenção, pois, devido às ideias diretrizes, o tema ficou delimitado de uma forma muito determinada; já não se tratava mais do Realismo em geral, mas da medida e espécie da seriedade, da problematicidade e da tragicidade no tratamento de temas realistas de tal forma que as obras meramente cômicas e que pertencem, indubitavelmente, ao âmbito do estilo baixo ficaram excluídas; só entraram em consideração ocasionalmente, como exemplo contrário, e, como tais, podiam ser apresentadas, por vezes, obras totalmente irrealistas de estilo elevado.
4.1 – Evitei ressaltar teoricamente e descrever sistematicamente a categoria das “obras realistas de estilo e caráter sérios” que, como tais, nunca foram tratadas em si, nem sequer reconhecidas; isto teria resultado, logo de início, num definir trabalhoso e cansativo [...] (pois nem sequer a expressão “realista é unívoca”), e eu provavelmente não teria podido me arranjar com uma terminologia desusada e rebarbativa.
4.2 – O método que adotei, isto é, o de apresentar, para cada época, uma certa quantidade de textos, para com base nos mesmos pôr à prova os meus pensamentos, leva imediatamente para dentro do assunto, de tal forma que o leitor chega a sentir do que se trata, antes que lhe seja impingida uma teoria. (p. 501)

SOBRE OS TEXTOS INTERPRETADOS

5 – O método de interpretação de textos deixa à discrição do intérprete um certo campo de ação: pode escolher e dar ênfase como preferir. Contudo, aquilo que ele afirma deve ser encontrável no texto. (p. 501)
5.1 – As minhas interpretações são dirigidas, sem dúvidas, por uma intenção determinada; mas esta intenção só ganhou forma paulatinamente, sempre durante o jogo com o texto, e, durante longos trechos, deixei-me levar pelo texto.
5.2 – Os textos também são, em sua grande maioria, escolhidos ao acaso, muito mais graças ao encontro casual e à inclinação pessoal do que à intenção precisa.
6 – Cada capítulo trata de uma época; por vezes uma época relativamente curta, meio século, por vezes, também, uma época mais longa. (p. 502)

A CICATRIZ DE ULISSES

PARTE I

APRESENTAÇÃO DA CENA

1 – Os leitores da Odisseia lembrar-se-ão, sem dúvida, da bem preparada e emocionante cena do canto XIX, quando Ulisses regressa à casa e Euricleia, sua antiga ama, o reconhece por uma cicatriz na coxa. (p. 01)
2 – Tudo isto é relatado com exatidão e relatado com vagar. Num discurso direto, pormenorizado e fluente, ambas as mulheres dão a conhecer os seus sentimentos; não obstante tratar-se de sentimentos, um pouco mesclados a considerações muito gerais acerca do destino dos homens, a ligação sintática entre as partes é perfeitamente clara; nenhum contorno se confunde. (p. 02)
NOTA: No parágrafo seguinte, Auerbach discorre sobre a descrição da cena presente e da cena digressiva, que diz respeito à caça ao javali, ocasião em que Ulisses adquiriu sua cicatriz.
3 – O primeiro pensamento que acode ao leitor moderno, de que se pretende é aumentar a tensão, é, se não totalmente falso, pelos menos não decisivo para a explicação do processo homérico. Pois o elemento da tensão é muito débil nas poesias homéricas; elas não se destinam, em todo o seu estilo, a manter em suspenso o leitor ou ouvinte.
3.1 – O não preenchimento total do presente faz parte de uma interpolação que aumenta a tensão mediante o retardamento; é necessário que ela não aliene da consciência a crise por cuja solução se deve esperar com tensão, para não destruir a suspensão do estado de espírito; a crise e a tensão devem ser mantidas, permanecer conscientes, num segundo plano.
3.2 – Só que Homero [...] não conhece segundos planos. O que ele nos narra é sempre somente presente, e preenche completamente a cena e a consciência do leitor. É o que acontece na passagem citada. (p. 03)
4 – Goethe e Schiller [...] se correspondiam [...] sobre o “elemento retardador” na poesia homérica em geral, e opunham-no diretamente ao princípio da “tensão” [...].
4.1 – O elemento retardador, o “avançar e retroceder” mediante interpolações, também a mim parece estar, na poesia homérica, em contraposição ao tenso impulso para uma meta.
4.2 – De certo Schiller tem razão quando diz que Homero descreve “meramente a tranquila existência e ação das coisas segundo a sua natureza”; a sua finalidade estaria “presente em cada um dos pontos do seu movimento”. Só que tanto Schiller quanto Goethe, elevam o processo homérico à categoria de lei da poesia épica em geral, e as palavras de Schiller, acima citadas, devem vigorar para o poeta épico em geral, em contraste com o trágico.
4.3 – Contudo há, tanto nos tempos antigos como nos modernos, obras épicas significativas escritas sem qualquer “elemento retardador”, no sentido de Schiller, mas de maneira claramente carregada de tensão, obras que, sem dúvida, “roubam a nossa liberdade emocional”, o que Schiller quer conceder exclusivamente ao poeta trágico.
4.4 – Mas a verdadeira causa da impressão de retardamento parece-me residir em outra coisa; precisamente, na necessidade do estilo homérico de não deixar nada do que é mencionado na penumbra ou inacabado.
NOTA: A digressão é um traço comum em Homero, pois nada lhe foge à necessidade de descrever algo pormenorizadamente quanto à sua espécie e origem. Há nele, ainda, a necessidade de exteriorização dos fenômenos.
5 – Aqui, é a cicatriz que aparece no decorrer da ação; e não é possível para o sentimento homérico deixá-la emergir simplesmente da escuridão de um passado obscuro; ela deve sair claramente à luz, e com ela, um pouco da juventude do herói [...].
5.1 – [...] impulso fundamental do estilo homérico: representar os fenômenos acabadamente, palpáveis e visíveis em todas as partes, claramente definidos em suas relações espaciais e temporais. O mesmo ocorre com os processos psicológicos: também deles nada deve ficar oculto ou inexpressivo. Sem reservas, bem dispostos até nos momentos de paixão, as personagens de Homero dão a conhecer o seu interior no seu discurso; o que não dizem aos outros, falam para si, de modo a que o leitor o saiba. Acontecem muitas coisas na poesia de Homero, mas nunca tacitamente [...].
5.2 – Isto é válido, naturalmente, não só para os discursos, mas para toda a apresentação. Os diversos membros dos fenômenos são postos sempre em clara relação mútua; um número considerável de conjunções, advérbios, partículas e outros instrumentos sintáticos, todos claramente delimitados e sutilmente graduados na sua significação, deslindam as personagens, as coisas e as partes dos acontecimentos entre si, e os põem simultaneamente, em correlação mútua, ininterrupta e fluente; tal como os próprios fenômenos isolados, também as suas relações, os entrelaçamentos temporais, locais, causais, finais, convêm à luz perfeitamente acabados; de modo que há um desfile ininterrupto, ritmicamente movimentado, dos fenômenos, sem que se mostre, em parte alguma, uma forma fragmentária ou só parcialmente iluminada, uma lacuna, uma fenda, um vislumbre, de profundezas inexploradas. (p. 04)
6 – E este desfile dos fenômenos ocorre no primeiro plano, isto é, sempre em pleno presente espacial e temporal. Poder-se-ia acreditar que as muitas interpolações, o frequente avançar e retroceder, deveriam criar uma espécie de perspectiva temporal e espacial; mas o estilo homérico jamais dá esta impressão. (p. 05)
6.1 – A maneira pela qual é evitada esta impressão de perspectiva pode ser observada claramente no processo da introdução das interpolações, uma construção sintática que é familiar a todo leitor de Homero; utilizado em nosso trecho, é também encontrável em interpolações muito curtas. À palavra “cicatriz” segue-se imediatamente uma oração relativa (“que outrora um javali...”), a qual se expande num amplo parêntese sintático; neste introduz-se, inesperadamente, uma oração principal (“um deus deu-lhe...”), a qual vai se livrando silenciosamente da subordinação sintática, até que, com o verso 399, começa um novo presente [...].
6.2 – Mas um tal processo subjetivo-perspectivista, que cria um primeiro e um segundo planos, de modo que o presente se abra na direção das profundezas do passado, é totalmente estranho ao estilo homérico; ele só conhece o primeiro plano, só um presente uniformemente iluminado, uniformemente objetivo; e assim, a digressão começa só dois versos depois, quando Euricleia já descobriu a cicatriz – quando a possibilidade da ordenação em perspectiva não mais existe, e a estória da cicatriz torna-se um presente independente e pleno. (p. 05)

PARTE II

A ODISSEIA E O VELHO TESTAMENTO

1 – A singularidade do estilo homérico fica ainda mais nítida quando se lhe contrapõe um outro texto, igualmente antigo, igualmente épico, surgido de um outro mundo de formas. Tentarei a comparação com o relato do sacrifício de Isaac, narração inteiramente redigida pelo assim chamado Eloísta. (p. 05)
NOTA: Deus, que não explicita de onde fala, chama Abraão e ele responde: “Eis-me aqui!” Não se diz a posição dos interlocutores.
1.1  – De onde vem ele, de onde se dirige a Abraão? Nada disto é dito.
1.2 – A noção judaica de Deus não é somente causa, mas antes, sintoma do seu particular modo de ver e de representar. Isto fica ainda mais claro quando nos voltamos para o interior do outro interlocutor, Abraão. Onde ele está? Não o sabemos. Ele diz, contudo: “Eis-me aqui” – mas a palavra [...] não quer indicar o lugar real no qual Abraão se encontra, mas o seu lugar moral em relação a Deus que o chamara [...]. 
1.3 – Aqui, porém, Deus aparece carente de forma (e, contudo, “aparece”), de algum lugar, só ouvimos a sua voz, e esta não chama nada além do nome: sem adjetivo, sem atribuir à pessoa interpelada um epíteto, como seria o caso em qualquer apóstrofe homérica. E também de Abraão nada é tornado sensível, afora as palavras com que ele replica a Deus: Hinne-ni, “Eis-me aqui” [...]. (p. 06)
2 – Após esta introdução, Deus dá sua ordem, e tem início a narração propriamente dita. Todos a conhecem: sem interpolação alguma, em poucas orações principais, cuja ligação sintática é extremamente pobre, desenvolve-se a narração. Aqui seria impensável descrever um apetrecho que é utilizado, [...] são servos, burro, lenha e faca, e nada mais, sem epítetos; têm de cumprir a finalidade que Deus lhes indicara; o que mais eles são, foram ou serão permanece no escuro. Uma viagem é feita, pois Deus indicara o local onde se consumaria o sacrifício; mas nada é dito acerca dessa viagem, a não ser que durara três dias, e mesmo isso é expresso de forma enigmática [...]
2.1 – Desta forma, a viagem é como um silencioso andar através do indeterminado e do provisório, uma contenção do fôlego, um acontecimento que não tem presente e que está alojado entre o que passou e o que vai acontecer, como uma duração não preenchida, que é, todavia, medida: três dias! (p. 07)
3 – Na narração aparece uma terceira personagem importante, Isaac. [...] Ele pode ser belo ou feio, inteligente ou tolo, alto ou baixo, atraente ou repulsivo – nada disto é dito. Só aquilo que deve ser conhecido [...] para salientar quão terrível é a tentação de Abraão, e quão consciente é Deus desse fato.
3.1 – Observa-se com este exemplo antitético qual é a significação dos adjetivos descritivos e as digressões da poesia homérica; com a sua alusão à existência restante da personagem descrita, aquilo que não é totalmente apreendido pela situação, à sua existência, por assim dizer, absoluta, eles impedem, mesmo no mais espantoso dos acontecimentos, o surgimento de uma tensão opressiva. Mas no caso da oferenda de Abraão, a tensão opressiva existe. O que Schiller queria reservar para o poeta trágico – roubar nossa liberdade de ânimo, dirigir numa só direção e concentrar as nossas forças interiores (Schiller diz “a nossa atividade”) – é obtido neste relato bíblico que, certamente, deve ser considerado épico. (p. 08)
4 – Encontramos o mesmo contraste quando comparamos o emprego do discurso direto. No relato bíblico também se fala; mas o discurso não tem, como em Homero, a função de manifestar ou exteriorizar pensamentos. Antes pelo contrário: tem a intenção de aludir a algo implícito, que permanece inexpressão. Deus dá a sua ordem e discurso direto, mas cala seus motivos e intenções. (p. 08)
4.1 – A conversa entre Abraão e Isaac no caminho ao local do sacrifício não é senão uma interrupção do pesado silêncio, e serve apenas para torná-lo mais opressivo.
5 – Não é fácil, portanto, imaginar contrastes de estilo mais marcantes do que estes, que pertencem a textos igualmente antigos e épicos. De um lado, fenômenos acabados, uniformemente iluminados, definidos temporal e espacialmente, ligados entre si, sem interstícios, num primeiro plano; pensamentos e sentimentos expressos; acontecimentos que se desenvolvem com muito vagar e pouca tensão. Do outro lado, só é acabado formalmente aquilo que nas manifestações interessa à meta da ação; o restante fica na escuridão. Os pontos culminantes e decisivos para a ação são os únicos a serem salientados; o que há entre eles é inconsistente; tempo e espaço são indefinidos e precisam de interpretação; os pensamentos e os sentimentos permanecem inexpressos: só são sugeridos pelo silêncio e por discursos fragmentários. O todo, dirigido com máxima e ininterrupta tensão para um destino e, por isso mesmo, muito mais unitário, permanece enigmático e carregado de segundos planos. (p. 09)
5.1 – Falei [...] do estilo homérico como sendo de “primeiro plano”, porque, apesar dos muitos saltos para trás ou para diante, deixa agir o que é narrado, em cada instante, como presente único e puro, sem perspectiva. A observação do texto eloísta mostra-nos que a expressão pode ser empregada mais ampla e profundamente. Evidencia-se que até a personagem individual pode ser apresentada como carregada de segundos planos: Deus sempre o é na Bíblia, [...] só “algo” dele aparece em cada caso, ele sempre se estende para as profundidades.
5.2 – Mas os próprios seres humanos dos relatos bíblicos são mais ricos em segundos planos do que os homéricos; eles têm mais profundidade quanto ao tempo, ao destino e à consciência. [...] seus pensamentos e sentimentos têm mais camadas e são mais intrincados. O modo de agir de Abraão explica-se não só a partir daquilo que lhe acontece momentaneamente ou do seu caráter (como o de Aquiles por sua ousadia e orgulho, o de Ulisses por sua astúcia e prudente visão), mas a partir da sua história anterior. Ele se lembra, tem permanente consciência do que Deus lhe prometera e do que já cumprira [...] é impossível para as figuras homéricas, cujo destino está univocamente determinado, e que acordam todo dia como se fosse o primeiro, cair em situações internas tão problemáticas. As suas emoções são violentas, convenhamos, mas são também simples e irrompem de imediato. (p. 09)
6 – Os poemas homéricos, cuja cultura sensorial, linguística e, sobretudo, sintática, parece ser tanto mais elaborada, são, contudo, na sua imagem do homem, relativamente simples; e também o são, em geral, na sua relação com a realidade da vida que descrevem. A alegria pela existência sensível é tudo para eles, e a sua mais alta intenção é apresentar-nos alegria. (p. 10)
6.1 – Neste mundo “real”, existente por si mesmo, no qual somos introduzidos por encanto, não há tampouco outro conteúdo a não ser ele próprio; os poemas homéricos nada ocultam, neles não há nenhum ensinamento e nenhum segundo oculto. É possível analisar Homero, como o tentamos aqui, mas não é possível interpretá-lo. (p. 10)
7 – A história de Abraão e de Isaac não está melhor testificada do que a de Ulisses, Penélope e Euricleia; ambas são lendárias. Só que o narrador bíblico, o Eloísta, tinha de acreditar na verdade objetiva da história da oferenda de Abraão. [...] Tinha de acreditar nela apaixonadamente – ou então, deveria ser, como alguns exegetas iluministas admitiram ou, talvez, ainda admitem, um mentiroso consciente, não um mentiroso inofensivo como Homero, que mentia para agradar, mas um mentiroso político consciente das suas metas, que mentia no interesse de uma pretensão à autoridade absoluta.
7.1 – Esta visão iluminista parece-me psicologicamente absurda, mas mesmo se a levarmos em consideração, a relação entre narrador bíblico e a verdade do seu relato permanece muito mais apaixonada, muito mais univocamente definida, do que a de Homero. (p. 11)
7.2 – Tinha de escrever exatamente aquilo que lhe fosse exigido por sua fé na verdade da tradição, ou, do ponto de vista racionalista, por seu interesse na verossimilhança – seja como for, a sua fantasia inventiva ou descritiva estava estreitamente delimitada. Sua atividade devia limitar-se a redigir de maneira efetiva a tradição devota. [...] Ai de quem não acreditasse nela! (p. 11)
7.3 – A pretensão de verdade da Bíblia é não só muito mais urgente que a de Homero, mas chega a ser tirânica; exclui qualquer outra pretensão. O mundo dos relatos das Sagradas Escrituras não se contenta com a pretensão de ser uma realidade historicamente verdadeira – pretende ser o único mundo verdadeiro, destinado ao domínio exclusivo.
7.4 – Os relatos das Sagradas Escrituras não procuram o nosso favor, como os de Homero, não nos lisonjeiam para nos agradar e encantar – o que querem é nos dominar, e se nos negamos a isto, então somos rebeldes. (p. 12)
7.5 – Não se queira objetar que isto é ir demasiado longe, que não é o relato, mas a doutrina religiosa que apresenta estas pretensões, pois os relatos justamente não são, como os de Homero, mera “realidade” narrada. Neles encarnam-se doutrina e promessa indissoluvelmente fundidas; precisamente por isso têm um caráter recôndito e obscuro, contêm um segundo sentido, oculto. (p. 12)
8 – Os poemas homéricos fornecem um complexo de acontecimentos preciso, espacial e temporalmente delimitado; independente dele, concebem-se tranquila e facilmente outros complexos anteriores, simultâneos e posteriores. O Velho Testamento, porém, fornece história universal; começa com o princípio dos tempos, com a criação do mundo, e quer acabar com o fim dos tempos, com o cumprimento da promessa, com a qual o mundo deverá encontrar o seu fim. (p. 13)
9 – O Velho Testamento é incomparavelmente menos unitário na sua composição do que os poemas homéricos, é mais evidentemente feito de retalhos – mas cada um deles pertence a um contexto histórico-universal e interpretativo da história universal. (p. 13 – 14)
10 – Em cada uma das grandes figuras do Velho Testamento, desde Adão até os Profetas, encarna-se um momento da mencionada ligação vertical. Deus escolheu e moldou estas personagens para o fim da encarnação da sua essência e da sua vontade – mas a eleição e a modelagem não coincidem; esta última realiza-se paulatinamente, de maneira histórica, durante a vida terrena dos escolhidos.
10.1 – Na história do sacrifício de Abraão vimos como isto ocorre, que terríveis provas envolve uma tal modelagem. Daí decorre o fato de as grandes figuras do Velho Testamento serem mais plenas de desenvolvimento, mais carregadas da sua própria história vital e mais cunhadas na sua individualidade do que os heróis homéricos. (p. 14)
10.2 – Aquiles e Ulisses são descritos magnificamente, por meio de muitas e bem formadas palavras, carregam uma série de epítetos, suas emoções manifestam-se sem reservas nos seus discursos e gestos – mas eles não têm desenvolvimento algum e a história das suas vidas fica estabelecida univocamente. Os heróis homéricos estão tão pouco apresentados no seu desenvolvimento presente e passado que, na sua maioria, [...] aparecem com uma ideia pré-fixada.  (p. 14)
10.3 – [...] Penélope pouco mudou nesses vinte anos; no caso do próprio Ulisses, [...] Ulisses é, quando regressa, exatamente o mesmo que abandonara Ítaca duas décadas atrás. (p. 14)
10.4 – [Aos heróis homéricos...] As estes, o tempo só pode afetar exteriormente, e mesmo isto é evidenciado o menos possível; em contraste, as figuras do Velho Testamento estão constantemente sob a férula de Deus, que não só as criou e escolheu, mas continua a modelá-las, dobrá-las e amassá-las, extraindo delas, sem destruir a sua essência, formas que a sua juventude dificilmente deixava prever.
10.5 – Humilhação e exaltação são muito mais profundas ou elevadas do que em Homero, e, fundamentalmente, andam sempre juntas. O pobre mendigo Ulisses não é senão um disfarce, mas Adão é real e totalmente expulso, Jacó é realmente um fugitivo e José é realmente lançado num poço e, mais tarde, realmente vendido como escravo. Mas a sua grandeza, que se eleva da própria humilhação, é próxima do sobre-humano e é, também, um reflexo da grandeza divina. (p. 14)
11 – Homero permanece, com todo o seu assunto, no lendário, enquanto que o assunto do Velho Testamento, à medida que o relato avança, aproxima-se cada vez mais do histórico; na narração de Davi já predomina o relato histórico. Ali também há ainda muito de lendário, como, por exemplo, os relatos de Davi e Golias; só que muito, a bem dizer o essencial, consiste em coisas que os narradores conhecem por experiência própria ou através de testemunhos imediatos. (p. 15)
11.1 – [...] é fácil, em geral, separar a lenda da história. A sua estrutura é diferente. Mesmo quando a lenda não se denuncia imediatamente pela presença de elementos maravilhosos, pela repetição de motivos conhecidos, pelo desleixo na localização espacial e temporal, ou, por outras coisas semelhantes, pode ser reconhecida rapidamente, o mais das vezes, por sua estrutura. Desenvolve-se de maneira excessivamente linear.
11.2 – Tudo o que correr transversalmente, todo atrito, todo o restante, secundário, que se insinua nos acontecimentos e motivos principais, todo o indeciso, quebrado e vacilante, tudo o que confunde o claro curso da ação e a simples direção das personagens, tudo isso é apagado. A história que presenciamos, ou que conhecemos através de testemunhos de contemporâneos, transcorre de maneira muito menos uniforme, mais cheia de contradições e confusão; só quando, numa zona determinada, ela já produziu resultados, podemos com sua ajuda, ordená-los de algum modo; e quantas vezes a ordem que assim achamos ter obtido, torna-se novamente duvidosa, quantas vezes nos perguntamos se aqueles resultados não nos levaram a uma ordenação demasiado simplista do originalmente acontecido! (p. 16)
12 – A lenda ordena o assunto de modo unívoco e decidido, destaca-o da sua restante conexão com o mundo, de modo que este não pode intervir de maneira perturbadora; ela só conhece homens univocamente fixados, determinados por poucos e simples motivos cuja integridade de sentimentos e ações não pode ser prejudicada. (p. 16)
12.1 – Escrever história é tão difícil que a maioria dos historiadores vê-se obrigada a fazer concessões à técnica do lendário. (p. 17)
13 – [...] a passagem do lendário para o relato histórico [...] falta totalmente nas poesias homéricas. (p. 17)
13.1 – [...] não deixa de ser natural que, mesmo nas partes lendárias do Velho Testamento, seja frequente a aparição de estruturas históricas; naturalmente não no sentido de que a tradição seja examinada quanto à sua credibilidade de maneira científico-crítica; mas meramente de tal forma que não predomina no mundo lendário do Velho Testamento a tendência para a harmonização aplainante do acontecido, para a simplificação dos motivos e para fixação estática dos caracteres, evitando conflitos, vacilações e desenvolvimento, como é próprio da estrutura lendária.
13.2 – Abraão, Jacó ou Moisés, têm um efeito mais concreto próximo e histórico do que as figuras do mundo homérico, não por estarem melhor descritos plasticamente – pelo contrário – mas porque a variedade confusa, contraditória, rica em inibições dos acontecimentos internos e externos que a história autêntica mostra não está desbotada na sua representação, mas está ainda nitidamente conservada. (p. 17)
13.3 – Aqui interessa-nos sobretudo como se dá, nos relatos davídicos, a transição imperceptível só reconhecível pela crítica científica posterior, do lendário para o histórico; e, como, já no lendário, se apreende apaixonadamente o problema da ordem e da interpretação do acontecer humano, um problema que, mais tarde, explode os limites da Historiografia, sufocando-a por inteiro na profecia. Assim, o Velho Testamento, enquanto se ocupa do acontecer humano, domina todos os três âmbitos: lenda, relato histórico e teologia histórica exegética. (p. 18)
14 – Com isto [...] relaciona-se também o fato de o texto grego parecer também mais limitado e mais estático com referência ao círculo das personagens atuantes e da sua atividade política. (p. 18)
14.1 – Com isto chega-se à consciência de que a vida, nos poemas homéricos, só se desenvolve na classe senhorial – tudo o que porventura viva além dela só participa de modo serviçal. A classe senhorial é ainda patriarcal, tão familiarizada com as atividades quotidianas da vida econômica, que às vezes se chega a esquecer seu caráter de classe. [...] Como estrutura social, este mundo é totalmente imóvel; as lutas só ocorrem entre diferentes grupos das classes senhoriais; de baixo, nada surge.
14.2 – Nos relatos patrísticos do Velho Testamento predomina, também, a constituição patriarcal, mas como se trata de chefes de família isolados, nômades ou seminômades, o quadro social parece menos estável, não se sente a formação em classes. (p. 18)
15 – A historicidade e mobilidade social mais profundas dos textos do Velho Testamento relacionam-se, finalmente, com mais uma última diferença significativa: delas surge um conceito de estilo elevado e de sublimidade diferente do de Homero. Este certamente não receia inserir o quotidiano e realista no sublime e trágico; tal receio seria estranho a seu estilo e inconciliável com ele.
15.1 – Vê-se no nosso episódio da cicatriz, como a cena do lava-pés, pintada aprazivelmente, é entretecida na grande, significativa e sublime cena da volta ao lar.
15.2 – Isto está longe, ainda, daquela regra da separação dos estilos que mais tarde se imporia quase por completo, e que estabelecia que a descrição realista do quotidiano era inconciliável com o sublime, e só teria lugar no cômico ou, em todo caso, cuidadosamente estilizado, no idílico. E contudo, Homero está mais perto dela do que o Velho Testamento. (p. 19)
15.3 – [...] os grandes e sublimes acontecimentos ocorrem nos poemas homéricos muito mais exclusiva e inconfundivelmente entre os membros de uma classe senhorial; estes são muito mais intatos na sua heroica sublimidade do que as figuras do Velho Testamento, que podem cair muito mais profundamente na sua dignidade [...]; e, finalmente, o realismo caseiro, a representação da vida quotidiana, permanecem sempre, em Homero, no idílico-pacífico – enquanto que, já desde o princípio, nos relatos do Velho Testamento, o sublime, trágico e problemático se formam justamente no caseiro e quotidiano: acontecimentos como os que ocorre entre Caim e Abel [...] não são concebíveis no estilo homérico. (p. 19)
15.4 – Nos relatos do Velho Testamento [...] surgem complicações inconcebíveis para um herói homérico. Para estes, é necessário um motivo palpável, claramente exprimível, para que surjam conflito e inimizade, que resultam em luta aberta; enquanto que naqueles, o lento e constante fogo dos ciúmes e a ligação do doméstico com o espiritual [...] conduzem a uma impregnação da vida quotidiana com substância conflitiva e, frequentemente, ao seu envenenamento.
15.5 – A sublime intervenção divina de Deus age tão profundamente sobre o quotidiano que os dois campos do sublime e do quotidiano são não apenas efetivamente inseparados mas, fundamentalmente, inseparáveis. (p. 19)
16 – Comparamos os dois textos e, ao mesmo tempo, os dois estilos que encarnam, para obter um ponto de partida para os nossos ensaios sobre a representação literária da realidade na cultura europeia. Os dois estilos representam, na sua oposição, tipos básicos: por um lado, descrição modeladora, iluminação uniforme, ligação sem interstícios, locução livre, predominância do primeiro plano, univocidade, limitação quanto ao desenvolvimento histórico e quanto ao humanamente problemático; por outro lado, realce de certas partes e escurecimento de outras, falta de conexão, efeito sugestivo do tácito, multiplicidade de planos, multivocidade e necessidade de interpretação do devir histórico e aprofundamento do problemático. (p. 20)
17 – Uma vez que tomamos os dois estilos, o de Homero e o do Velho Testamento, como pontos de partida, admitimo-los como acabados, tal como se nos oferecem nos textos; [...] foi em seu pleno desenvolvimento alcançado em seus primórdios que esses estilos exerceram sua influência constitutiva sobre a representação europeia da realidade. (p. 20)


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