segunda-feira, 14 de março de 2016

"O QUINZE", DE RACHEL DE QUEIROZ - TRECHOS


Publicado em 1930, O Quinze tornou-se um dos livros mais populares de Rachel de Queiroz. Em meio ao drama da seca, o narrador dessa obra – narrador heterodiegético – insere suas personagens em dois planos: 1) por um lado, deparamo-nos com a personagem feminina Conceição, que se vê dividida entre a possibilidade de emancipação, proporcionada pelo universo do conhecimento, e o aprisionamento doméstico, representado pela efetivação do casamento; 2) e, por outro lado, deparamo-nos com a personagem Chico Bento que, com sua família, decide caminhar de Quixadá até Fortaleza para tentar fugir da seca, ocasião em que se defronta com necessidades limítrofes da sua dignidade humana. Diante disso, retomamos O Quinze, no ano em que a seca que serviu como contexto para sua enredística completa seu centenário, com o objetivo de realizar estudo crítico sobre sua estrutura, além de enfatizar o debate que vem à tona à medida que, cem anos após essa grande seca, ainda percebemos a existência de tal problema.  

Em seguida, apresentamos dois trechos dessa obra:

5

Agora, ao Chico Bento, como único recurso, só restava arribar.
Sem legume, sem serviço, sem meio de nenhuma espécie, não havia de ficar morrendo de fome, enquanto a seca durasse.
Depois, o mundo é grande e no Amazonas sempre há borracha...
Alta noite, na camarinha fechada que uma lamparina moribunda alumiava mal, combinou com a mulher o plano de partida.
Ela ouvia chorando, enxugando na varanda encarnada da rede, os olhos cegos de lágrimas.
Chico Bento, na confiança do seu sonho, procurou animá-la, contando-lhe os mil casos de retirantes enriquecidos no Norte.
[...]
Cordulina ouvia, e abria o coração àquela esperança; mas correndo os olhos pelas paredes de taipa, pelo canto onde na redinha remendada o filho pequenino dormia, novamente sentiu um aperto de saudade, e lastimou-se:
– Mas, Chico, eu tenho tanta pena da minha barraquinha! Onde é que a gente vai viver, por esse mundão de meu Deus?
A voz dolente do vaqueiro novamente se ergueu em consolações e promessas:
 – Em todo pé de pau há um galho mode a gente armar a tipoia... E com umas noites assim limpas até dá vontade de se dormir no tempo... Se chovesse, quer de noite, quer de dia, tinha carecido se ganhar o mundo atrás de um gancho?
Cordulina baixava a cabeça. Chico Bento continuou a falar.
(QUEIROZ, p. 26 – 27)

9

Chegou a desolação da primeira fome. Vinha seca e trágica, surgindo no fundo sujo dos sacos vazios, na descarnada nudez das latas raspadas.
– Mãezinha, cadê a janta?
– Cala a boca, menino! Já vem!
– Lá vem o quê?...
Angustiado, Chico Bento apalpava os bolsos... nem um triste vintém azinhavrado...
 (QUEIROZ, p. 46 – 47)

14

Deitada na cama, com a luz apagada, Conceição recordava Vicente e sua visita.
A verdade é que ela era sempre uma tola muito romântica para lhe emprestar essa auréola de herói de novela!
Metido com cabras... não se dava ao respeito... E ainda por cima, não se importava nem em negar...
Mãe Nácia, porque naturalmente, no tempo dela, aguentou muitas dessas, diz que não vale nada...
[...]
Foi então que se lembrou que, provavelmente, Vicente nunca lera o Machado... Nem nada do que ela lia.
Ele dizia sempre que, de livros, só o da nota do gado...
Num relevo mais forte, tão forte quanto nunca o sentira, foi-lhe aparecendo a diferença que havia entre ambos, de gosto, de tendências, de vida.
O seu pensamento, que até há pouco se dirigia ao primo como a um fim de natural e feliz, esbarrou nessa encruzilhada difícil e não soube ir adiante.
Ele lhe aparecia agora como um desses recantos da mata, próximo a um riacho, num sombrio misterioso e confortante. Passando num meio-dia quente, ao trote do cavalo, a gente para ali, olha a sombra e o verde como se fosse para um cantinho do céu...
Mas volvendo depois, numa manhã chuvosa, encontra-se o doce recanto enlameado, escavado de minhocas, os lindos troncos escorregadios e lodosos, os galhos de redor pingando tristemente.

  (QUEIROZ, 1993, p. 78 – 79)

QUEIROZ, Rachel de. O Quinze. 58. ed. São Paulo: Siciliano, 1993.

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