sexta-feira, 16 de março de 2018

BREVES NOTAS SOBRE A PEÇA TEATRAL "ABRAZO", DO GRUPO CLOWNS DE SHAKESPEARE

Foto: Pablo Pinheiro 

A sensação que tenho, depois de ver as duas apresentações da peça teatral Abrazo, dirigida por Marco França, é de encantamento. Lirismo, irreverência, densidade temática e sutileza são os ingredientes por excelência do texto. Atrelado a isto, a peça conta com um elenco que se reveza ao dar vida, com maestria, a diversas personagens. É um espetáculo digno de nota e reverência!

Nos dias 13 e 14 de março de 2018, no Teatro SESC Patativa do Assaré, de Juazeiro do Norte, um trio do Grupo Clowns de Shakespeare, de Natal – RN, apresentou a segunda parte da trilogia latino-americana Abrazo. Camille Carvalho, Dudu Galvão e Paula Queiroz realizaram proezas cênicas dignas dos maiores elogios. A segurança no revezamento das personagens, o carisma, a preparação corporal, as expressões faciais e a entrega ao universo que tentam expressar com economia de palavras são aspectos que devem ser considerados. O trio consegue uma unidade na construção do ato cênico que salta aos olhos. Tudo é harmônico, bem articulado, construído com minúcias.

Diante disto, não poderia ser diferente: o espetáculo foi um sucesso! Nos dois dias em que foi apresentado, o teatro esteve lotado, o público (constituído de adultos e crianças) aplaudiu de pé com visível entusiasmo. Foi, de fato, uma experiência enriquecedora ter visto, através do SESC, esse Grupo privilegiar o Cariri com seu talento e beleza.

Além da direção e do elenco serem magistrais, devo ressaltar aspectos técnicos que ampliam o encanto do espetáculo: a trilha sonora, o figurino, a cenografia, a cenotecnia e as animações também merecem elogios. A peça conta, ainda, com acessibilidade para pessoas com deficiência visual, uma vez que apresenta audiodescrição. O roteiro e argumento dramatúrgicos são de César Ferrario e o roteiro de audiodescrição é de Karol Nascimento. A produção da peça, no Cariri, ficou por conta da atriz Rita Cidade – uma das mais completas artistas que conheço.

Quanto à história contada, Abrazo é resultado de larga pesquisa histórico-cultural sobre a América Latina e traz reflexões sobre: ditadura, morte, amor, liberdade, desencontro amoroso, dentre outros pontos. Temas densos, como a tortura impetrada pela ditadura, irrompem com sutileza, mas com o grau de profundidade que o tema exige.

Do ponto de vista enredístico, as personagens apresentadas estão inseridas em um espaço em que preponderam, já no início da história, inúmeras proibições. O título evoca uma destas proibições: as pessoas não podem se abraçar. O General – que em determinados momentos termina por demonstrar que vive de reprimir até suas próprias pulsões – parece querer boicotar, com a interdição do abraço, a demonstração de afetividade entre as pessoas. Ele só não conta com o fato de que as pessoas podem se reunir e, desse modo, se fortalecer contra o despotismo de líderes políticos desalmados. Em meio a essa realidade conflitante, surge o amor entre um Rapaz e uma Florista. Eles encontram um no outro ternura e afetividade, mas são impossibilitados de vivenciar tais experiências porque o amor que sentem está perpassado por coerções advindas do cenário político que representa ausência completa de liberdade. Sequer eles podem demonstrar afeto por meio do abraço, pois lhes foi tirado este direito. 

Algumas cenas são emblemáticas, do meu ponto de vista: 1) o General atravessa o palco em marcha puxando um exército de patinhos amarelos (qualquer semelhança com a realidade política brasileira não é mera coincidência!), 2) o General, temporariamente livre de suas autorrepressões, dança com uma rosa na boca e ensaia passos de balé clássico, 3) a Florista e o Rapaz despedem-se na estação sem que possam se abraçar, 4) o General tortura a Florista, 5) o Rapaz procura a Florista e a espera enquanto as estações do ano passam e, ao final, seu coração se parte e ele segue sozinho (um pássaro metaforiza o caminho de solidão que ele percorre) e 6) o Menino e a Vovó abraçam-se após ficarem livres do jugo ditatorial.

Dentre as cenas que menciono, permaneceu com maior ênfase em minha memória a cena em que a Florista contraria o General e, por isto, é presa e torturada. A tortura a que o General a submete é construída por meio da simbologia de uma rosa que ele fustiga e atira numa espécie de varal em que repousam outras rosas que, como fica sugerido, também são vítimas do mesmo tipo de violência.

Essa cena confirma o que já apontei: temas densos são trabalhados em Abrazo com muita sutileza. Isto não quer dizer que a tortura, a morte e a tirania são apresentadas de modo superficial – superficialidade é algo que não ocorre em nenhum momento na peça. Em decorrência do público a que se direciona, se mostrou necessário um tratamento não explícito desses aspectos configuradores de violência e, desse modo, a peça ganhou em originalidade: tudo passa por um crivo da metaforização e exige que a plateia esteja atenta aos seus aspectos polissêmicos.

Em suma, Abrazo, que foi inspirada na obra O livro dos abraços, de Eduardo Galeano, é pertinente porque, além de proporcionar entretenimento de qualidade, nos instiga à reflexão sobre luta em tempos sombrios. E, mais do que isto, proporciona a fruição porque, como arte no melhor sentido do termo, amplia-nos a sensibilidade e abre-nos os olhos para concepções mais críticas acerca da realidade. Abrazo é, portanto, uma peça indispensável para quem pensa o mundo e deseja liberdade. Que privilégio ter visto esse espetáculo! 

Émerson Cardoso

15/03/2018

Nenhum comentário:

Postar um comentário