CONTO: CONCEITO INTRODUTÓRIO E EXEMPLO (A DISCIPLINA DO AMOR, DE LYGIA FAGUNDES TELLES

O conto é um gênero de estatuto problemático. Alguns teóricos, os mais tradicionais, discutem esse gênero contrapondo-o ao conceito atribuído ao romance. Nessa perspectiva, sobre as diferenças existentes entre a estrutura romanesca e o conto, D’Onofrio (2001, p. 121) afirma que: “O conto distingue-se do romance e da novela por ser uma narrativa curta e [...] possui todos os ingredientes do romance, mas em dose diminuta”.

Naveira (2004, p. 27), ao referir-se à estrutura do conto, afirma: “O conto é univalente: um só drama, um só conflito, uma só unidade dramática, uma só história, [...] uma única célula dramática. O espaço da ação é limitado”. E Moisés (2009), por sua vez, define o conto como algo que, dentro de uma noção de tempo pautada no senso comum, apresenta importância menor com a intenção de preocupar-se apenas com o “centro nevrálgico” do conflito. Desse ponto de vista, o conto tem estrutura reduzida, delimitação do tempo e do espaço, foco narrativo em geral único que se pauta ou no narrador onisciente, ou na personagem. Conta, desse modo, com um episódio específico, condensado, episódio vivido por poucas personagens que estão inseridas num ambiente delimitado e em tempo reduzido.

O problema surge quando, ao observarmos a estrutura de certos contos modernos e/ou contemporâneos, essas definições anteriormente apresentadas não são mais aplicáveis. Em geral, estudiosos da contística concebem a ação, o tempo e o espaço como elementos passíveis de medida. A leitura de muitos contos poderia ser desfacelada por essa visão, de certa forma, restritiva. Se considerados os contos em que a ação não se caracteriza no espaço externo da narrativa, mas na psique da personagem, a realidade da narrativa muda efetivamente e outras categorias, neste caso, devem ser observadas. 

Não se pode desconsiderar a aplicabilidade das definições apontadas por esses teóricos na análise de certos textos, mas aceitá-las como totalizantes não nos parece coerente. A própria ideia de que o conto se centra na restrição da unidade dramática, unidade condensada que deve ser mais condensada que a novela e o romance, pode ser imprópria para certos textos. Há contos em que a ação se pauta em minúcias, detalhes muitas vezes não possíveis à realidade prática da narrativa que seria centrada, exclusivamente, na ação; e como é conduzida pela consciência da personagem, o fluxo de consciência desta dá margem às divagações existenciais, conflitos interiores, “flashbacks” e investigações das reentrâncias da alma humana numa construção narrativa profundamente dissociada dos limites estipulados pelas definições mais tradicionalistas sobre o que é o conto.

Como não tenho a intenção de discorrer amplamente sobre esse assunto, e sim despertar curiosidade a seu respeito, convido-os a realizarem a leitura dos textos que cito abaixo. Nesses textos encontraremos abordagens tradicionais, ou mais recentes, sobre o conto; e elas nos darão um suporte para realizarmos discussões em sala de aula sobre esse gênero que, como eu disse anteriormente, ainda é de estatuto não definitivo. Eis algumas referências para quem se interessa pelo assunto:  

CORTÁZAR, Julio. Alguns aspectos do conto. In: Valise de Cronópio. Trad. de Davi Arrigucci Júnior. São Paulo: Perspectiva, 1974.

D’ONOFRIO, Salvatore. Teoria do texto: prolegômenos e teoria da narrativa. 2. ed. São Paulo: Ática, 2001. 

GOTLIB, Nádia Batella. Teoria do conto. 11. ed. São Paulo: Ática, 2006.

GOUVEIA, Arturo. A consagração da impertinência (Machado de Assis, Borges, Guimarães Rosa e a teoria do conto). In: Machado de Assis desce aos infernos. João Pessoa: Ideia, 2009.

MASSAUD, Moisés. O conto. In: A criação literária: prosa. 19. ed. São Paulo: Cultrix, 2009. 

PIGLIA, Ricardo. Novas teses sobre o conto. In: Formas Breves. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

NAVEIRA, Raquel. Tecelã de tramas: ensaios sobre transdisciplinaridade. Campo Grande: UCDB, 2004.

A DISCIPLINA DO AMOR

        Foi na França, durante a Segunda Grande guerra: um jovem tinha um cachorro que todos os dias, pontualmente, ia esperá-lo voltar do trabalho. Postava-se na esquina, um pouco antes das seis da tarde. Assim que via o dono, ia correndo ao seu encontro e na maior alegria acompanhava-o com seu passinho saltitante de volta à casa. A vila inteira já conhecia o cachorro e as pessoas que passavam faziam-lhe festinhas e ele correspondia, chegava até a correr todo animado atrás dos mais íntimos. Para logo voltar atento ao seu posto e ali ficar sentado até o momento em que seu dono apontava lá longe.

            Mas eu avisei que o tempo era de guerra, o jovem foi convocado. Pensa que o cachorro deixou de esperá-lo? Continuou a ir diariamente até a esquina, fixo o olhar naquele único ponto, a orelha em pé, atenta ao menor ruído que pudesse indicar a presença do dono bem-amado. Assim que anoitecia, ele voltava para casa e levava sua vida normal de cachorro, até chegar o dia seguinte. Então, disciplinadamente, como se tivesse um relógio preso à pata, voltava ao posto de espera. O jovem morreu num bombardeio mas no pequeno coração do cachorro não morreu a esperança. Quiseram prendê-lo, distraí-lo. Tudo em vão. Quando ia chegando aquela hora ele disparava para o compromisso assumido, todos os dias.

            Todos os dias, com o passar dos anos (a memória dos homens!) as pessoas foram se esquecendo do jovem soldado que não voltou. Casou-se a noiva com um  primo. os familiares voltaram-se para outros familiares. Os amigos para outros amigos. Só o cachorro já velhíssimo (era jovem quando o jovem partiu) continuou a esperá-lo na sua esquina.

            As pessoas estranhavam, mas quem esse cachorro está esperando?…Uma tarde (era inverno) ele lá ficou, o focinho voltado para aquela direção.

(Lygia Fagundes Telles)