quinta-feira, 7 de agosto de 2014

RESENHA CRÍTICA: "HOJE EU QUERO VOLTAR SOZINHO", DE DANIEL RIBEIRO


HOJE EU QUERO VOLTAR SOZINHO. Direção de Daniel Ribeiro. Produção Daniel Ribeiro e Diana Almeida. Elenco: Guilerme Lobo, Fábio Audi, Tess Amorim, Lúcia Romano, Eucir de Souza e Selma Egrei. Brasil: 2014. Filme (96 min). Drama. 

Eu havia assistido ao curta-metragem "Hoje eu não quero voltar sozinho" (2010), de Daniel Ribeiro, e ficado comovido com a história. Além de uma direção primorosa, a trilha sonora (destaque para a canção "Janta", interpretada por Marcelo Camelo e Mallu Magalhães, e "Beijo roubado em segredo", de Tatá Aeroplano e Juliano Polimeno) e o elenco eram excelentes. Soube, posteriormente, que o diretor pretendia transformar o curta em longa-metragem e aguardei, com certo receio, para ver o resultado. O filme foi apresentado aos expectadores brasileiros no primeiro semestre de 2014, com o título "Hoje eu quero voltar sozinho". 

Repetindo o sucesso do curta, que obteve mais de três milhões de visualizações no youtube, e inúmeros prêmios nacionais e internacionais, o longa conseguiu sucesso de bilheteria e também obteve inúmeros prêmios internacionais, além de ter agradado, seja num ou noutro aspecto, a crítica nacional e internacional. Destaque-se que Daniel Ribeiro, em todos os comentários da crítica especializada, foi considerado um diretor que promete grandes realizações pelo talento que demonstrou em seus filmes de estreia. Outros pontos apresentados como positivos no filme dizem respeito às atuações e ao modo como os temas são abordados na obra. 

Leonardo (Guilherme Lobo) é um adolescente cego que vive sob a proteção constante dos pais, e cuja vida restringe-se à relação que tem com sua melhor amiga Giovana (Tess Amorim), com quem estuda e com quem partilha uma profunda amizade, e seu núcleo familiar, os pais ou a avó materna, a quem visita nas quarta-feiras. Sentindo-se insatisfeito com as aparentes restrições de sua vida, e com os acirrados cuidados dos pais, Leonardo - Leo - decide informar-se sobre a possibilidade de realizar intercâmbio. Neste meio termo, surge um novo colega de sala com quem Leo e Giovana fazem amizade - ele se chama Gabriel (Fábio Audi). 

Ao longo do enredo, percebemos que Leo se sente limitado pelo fato de ser cego - o que o torna vítima de bullying -, e a este conflito da personagem assomam-se: a necessidade de sentir-se mais independente em relação aos pais, o desejo de fugir do espaço em que está inserido e tentar novos âmbitos e experiências, o conflito que surge com relação à sua melhor amiga que, quando surge o novo colega de sala, fica abalada e a descoberta da sexualidade - que passa a ser representativa em sua vida, porque ele se sente atraído fisicamente por seu novo amigo Gabriel e não sabe se é correspondido. 

A homossexualidade, tema que ainda causa polêmica em decorrência da visão restritiva de algumas pessoas, surge nessa obra sem, contudo, se encaminhar para uma tendência panfletária de alguns filmes que discorrem sobre essa temática - a relação que se constrói entre Leo e Gabriel é tratada de modo sutil, e não sem singeleza.     

Além disso, outro tema marcante é a representação da amizade: Giovana e Leo constroem um universo em que um complementa o outro de forma tão intensa que, ao chegar um novo integrante, a amizade tende a ser abalada. No entanto, na sequência do enredo, percebemos as personagens retomarem a amizade de um modo fascinante: do ciúme que faz Giovana afastar-se de Leo, ao orgulho que os impedem de rever as posturas "infantis" que um tem em relação ao outro, surgem os valores de fato da amizade: Giovana salva Leo na cena da festa em que ele seria desrespeitado pelos colegas de sala, perdoa seu suposto afastamento e o compreende com relação aos sentimentos que ele nutre por Gabriel - destaque-se que Giovana também se encontrava numa fase de evidentes mudanças em decorrência de sua idade, o que os aproximava quanto a certos conflitos. Ela, inclusive, demonstra em várias ocasiões que o ciúme que sente em relação a Leo não é somente motivado por amizade - ou, se o é, deveria ser proveniente das incertezas de sua mente adolescente em processo de amadurecimento.  

O fato de Leo ser cego - alguns preferem utilizar o termo deficiente visual, mas preferi utilizar o termo que aparece no filme sem, contudo, querer incorrer em interpretações errôneas que veem no uso deste termo qualquer teor de desrespeito - o torna aprisionado a uma rotina que o incomoda. Em vários momentos ele tenta libertar-se de seu cotidiano. Com a chegada de Gabriel, finalmente, ele passa a fazer coisas que seriam inviáveis até então: ir ao cinema, "ver" o eclipse e até andar de bicicleta. Desse modo, alterações consideráveis acontecem nessa personagem, e isso tem seu ponto máximo na mudança que ocorre em seu íntimo quando é descoberto o amor que ele sente pelo novo amigo. 

Eu, particularmente, nunca havia parado para pensar sobre como as pessoas cegas lidam consigo mesmas e com o mundo que as cercam em seus cotidianos - me fazer refletir por esta perspectiva foi uma das principais contribuições que esse filme me proporcionou. Foi interessante o modo como esse tema foi abordado - foi apresentado sem cair no melodrama, antes o apresentou com muita naturalidade. Talvez no momento em que Leo é quase vítima de uma visão restritiva do seu colega de sala, na festa, nós tenhamos presenciado o momento mais dramático do filme quanto a este assunto. A insensibilidade do colega mostra-nos que o bullying pode submeter sua vítima a situações inimagináveis de desrespeito. Portanto, não considerei esta cena uma falibilidade na obra, ao contrário: faz com que pensemos sobre até que ponto a crueldade pode ser viável em quem não tem respeito pelas limitações dos outros.

A trilha sonora, que do meu ponto de vista é tão encantadora quanto à do curta, traz algumas canções como: "Vaga-lumes cegos", de Cícero, a já citada "Beijo roubado em segredo" e "There's too much love", de Belle & Sebastian, dentre outras. 

Daniel Ribeiro é um cineasta brasileiro muito jovem. Além de "Hoje eu não quero voltar sozinho" e "Hoje eu quero voltar sozinho", ele dirigiu o também premiado curta-metragem "Café com leite" (2007). Resta-nos esperar, agora, que novos trabalhos ele nos apresentará, e torcer para que ele seja bem-sucedido em todos eles como foi com os seus filmes de estreia. 

Texto de: Émerson Cardoso

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