quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

"A TRISTE PARTIDA", DE PATATIVA DO ASSARÉ (MUSICADA COM ADAPTAÇÕES POR LUIZ GONZAGA)


Setembro passou
Outubro e Novembro
Já tamo em Dezembro
Meu Deus, que é de nós
Assim fala o pobre
Do seco Nordeste
Com medo da peste
Da fome feroz

A treze do mês
Ele fez experiença
Perdeu sua crença
Nas pedras de sal,
Mas noutra esperança
Com gosto se agarra
Pensando na barra
Do alegre Natal

Rompeu-se o Natal
Porém barra não veio
O sol bem vermeio
Nasceu muito além
Na copa da mata
Buzina a cigarra
Ninguém vê a barra
Pois barra não tem

Sem chuva na terra
Descamba Janeiro,
Depois fevereiro
E o mesmo verão
Entonce o nortista
Pensando consigo
Diz: "isso é castigo
não chove mais não"

Apela pra Março
Que é o mês preferido
Do santo querido
Sinhô São José
Mas nada de chuva
Tá tudo sem jeito
Lhe foge do peito
O resto da fé

Agora pensando
Ele segue outra tria
Chamando a famia
Começa a dizer
Eu vendo meu burro
Meu jegue e o cavalo
Nóis vamo a São Paulo
Viver ou morrer

Nóis vamo a São Paulo
Que a coisa tá feia
Por terras alheia
Nós vamos vagar
Se o nosso destino
Não for tão mesquinho
Ai pro mesmo cantinho
Nós torna a voltar

E vende seu burro
Jumento e o cavalo
Inté mesmo o galo
Venderam também
Pois logo aparece
Feliz fazendeiro
Por pouco dinheiro
Lhe compra o que tem

Em um caminhão
Ele joga a famia
Chegou o triste dia
Já vai viajar
A seca terrive
Que tudo devora
Ai, lhe bota pra fora
Da terra natal

O carro já corre
No topo da serra
Oiando pra terra
Seu berço, seu lar
Aquele nortista
Partido de pena
De longe acena
Adeus meu lugar

No dia seguinte
Já tudo enfadado
E o carro embalado
Veloz a correr
Tão triste, coitado
Falando saudoso
Com seu filho choroso
Iscrama a dizer

De pena e saudade
Papai sei que morro
Meu pobre cachorro
Quem dá de comer?
Já outro pergunta
Mãezinha, e meu gato?
Com fome, sem trato
Mimi vai morrer

E a linda pequena
Tremendo de medo
"Mamãe, meus brinquedo
Meu pé de fulô?"
Meu pé de roseira
Coitado, ele seca
E minha boneca
Também lá ficou

E assim vão deixando
Com choro e gemido
Do berço querido
Céu lindo e azul
O pai, pesaroso
Nos fio pensando
E o carro rodando
Na estrada do Sul

Chegaram em São Paulo
Sem cobre quebrado
E o pobre acanhado
Percura um patrão
Só vê cara estranha
De estranha gente
Tudo é diferente
Do caro torrão

Trabaia dois ano,
Três ano e mais ano
E sempre nos prano
De um dia vortar
Mas nunca ele pode
Só vive devendo
E assim vai sofrendo
É sofrer sem parar

Se arguma notíça
Das banda do norte
Tem ele por sorte
O gosto de ouvir
Lhe bate no peito
Saudade de móio
E as água nos óio
Começa a cair

Do mundo afastado
Ali vive preso
Sofrendo desprezo
Devendo ao patrão
O tempo rolando
Vai dia e vem dia
E aquela famia
Não vorta mais não

Distante da terra
Tão seca, mas boa
Exposto à garoa
A lama e o paul
Faz pena o nortista
Tão forte, tão bravo
Viver como escravo
No Norte e no Sul

Antonio Gonçalves da Silva (Patativa do Assaré) nasceu em 05 de março de 1909 e faleceu em 08 de julho de 2002. Suas poesias discorrem, algumas com humor, outras com intenso lirismo, sobre política, valores identitários do sertanejo, a condição social do nordestino, a religiosidade, as relações familiares e afetivas do matuto, dentre outras.



2 comentários:

  1. Eu quando ouvi essa música (poesia) chorei. Muito linda. Muito.

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    1. Concordo! Talvez seja uma das mais comoventes canções de todos os tempos! Luiz Gonzaga já disse em entrevista que era a música preferida do seu repertório.

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