segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

CRÔNICA: O QUE É SER MAU-CARÁTER?


O que uma pessoa quer exprimir quando diz que alguém tem caráter? Creio que se remete à índole, à integridade moral, à retidão, à firmeza e à honradez com que a pessoa age diante das mais diversas situações cotidianas.

Neste sentido, o que seria uma pessoa sem caráter, ou melhor, mau-caráter? Fiz pesquisa e constatei que a lista de sinônimos é longa, exige síntese. O mau-caráter é, portanto, tratante, covarde, mentiroso, desleixado, troçador, infame, desonroso, trapaceador, vigarista, traiçoeiro, fraudulento, velhaco, desleal, falso, utilitarista, improbo, interesseiro, duvidoso, impudico, cínico, sem-vergonha, descarado, cafajeste, calhorda, biltre, mal-educado, desrespeitoso, rude, grosseiro, provocador, violento, estourado e, o que é pior, do meu ponto de vista, vulgar.

Eu não quero ser assim, Deus, não quero. Eu estou ciente de que o ser humano, falível que é, pode trazer em si alguns ou todos esses adjetivos. Mas eu não quero, não aceito, não posso fiar-me na ideia de que também poderia agir assim apenas porque, irremediavelmente, sou humano. Ademais, a história mostra que muitos humanos conseguiram ter caráter irreprochável. Ninguém é perfeito, é certo, por isto é possível que um dia ou outro o espírito desande e aja de acordo com alguma das condutas que, em seu conjunto, formam o mau-caratismo. A imaturidade pode nos levar a isto, mas a imaturidade precisa passar. A proposito, triste do ser humano que não sente a necessidade de mudar, de repensar a conduta, de vislumbrar possibilidades de crescimento.

Dentre os termos que enumerei acima, parece-me que o pior do mau-caráter é ser desleal e, neste caso, acrescento o fato de que todo desleal é ingrato. Ingratidão é um aspecto terrível na conduta de alguém, devo dizer. Além disso, deslealdade, que vem certamente da ingratidão, torna o indivíduo falso porque, para conseguir o que queria de alguém, o desleal deve ser perito em falsidade – e a isto se acresce novo aspecto: visão utilitária das coisas e pessoas. O indivíduo deseja alcançar algo, cria traiçoeiramente uma estratégia, utiliza a falsidade para engabelar o outro e age cínica e sorrateiramente destruindo, sem qualquer reflexão sobre respeito, a vida de alguém. Uma pessoa mau-caráter, ao que parece, é um Atlas – o mundo pesa-lhe nas costas porque ela precisa articular muitas ferramentas para conseguir o que quer.  

Eu não quero ser assim, meu Deus, não quero. E, pensando nisso, dentre os traços que comprometem minha índole, o que é triste demais, a covardia é o mais gritante. Tanto a dizer e realizar, mas o excesso de prudência – não seria melhor dizer medo? – me desencoraja. Tem a ver com a minha infância? Precisei silenciar demais, fugir do enfrentamento, aceitar calado a violência da vida. Eu tinha mãos erguidas pedindo auxílio, porém, como eu não gritava a plenos pulmões, por não saber gritar, ninguém via o vazio nelas renascido. Aprendi a escrever, no entanto, e isto foi um alívio.

Grande alívio este: quem escreve quer ser lido. Os clássicos não são lidos, que espaço terão os amadores? A insegurança também constituiria a índole mau-caráter? Tenho inseguranças demais, devo dizer. Tendência à mágoa também? E orgulho? E omitir, algumas vezes, coisas que desagradariam ao outro? Forçar indiferença pode ser mau-caratismo? E não querer ver para sempre-sem-fim a face de quem se mostrou mau-caráter? Raiva represada, raiva exibida, raiva em tom de voz, raiva no desprezo dispendido, raiva de moer com o olhar, raiva sem precedentes – isto também indica traços de alguém sem caráter?   

Quero tirar o mundo das costas, porque ter caráter pode conduzir o indivíduo à leveza – é a isto que devoto meu pensamento. Preciso de leveza e paz – que ambição hercúlea! Eu posso ter sido falho mil vezes, ou melhor, eu falho milhões de vezes, no entanto estou aqui confessando meus pecados mil vezes mil para, a partir disto, prosseguir e não tornar a pecar. Deus precisa estar comigo, porque, diante da vida e sua imprevisibilidade, a carne tende a ser fraca e, disto estou certo, a gente busca maturidade, caráter digno, gestos fraternos, mas as adversidades e a preservação da vida podem pesar na hora de darmos respostas ao mundo. Eu, assim como Sophie[1], também preciso fazer minhas escolhas – ah, e que eu encontre em mim a leveza que tanto busco.

Émerson Cardoso
10/02/18




[1] Sophie’s choice (1982) é um filme norte-americano de drama dirigido por Alan J. Pakula, que rendeu a Meryl Streep seu primeiro Óscar de Melhor Atriz em 1983. 

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