segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

MEU "APÓLOGO DA MESA"


Era um dia de festa. As pessoas corriam de um lado para o outro arrumando os últimos detalhes da grandiosa recepção. Em todos os cômodos da mansão havia móveis que, sob vigilância da anfitriã, eram limpos cuidadosamente. Todos foram polidos, enfeitados, mudados de lugar.
Houve, porém, um problema impossível de passar sem dar nas vistas. Enquanto todos os móveis riam no auge da felicidade pela nova roupagem que apresentavam, a mesa, mais reflexiva que o natural, no centro da sala, com olhares de estranhamento e aspecto descontente, permanecia intocada.
Todos os móveis receberam nova coloração, espargiam perfume, alguns receberam toalhas e enfeites novos. Apenas ela, a mesa, permanecia com seu aspecto de sempre: a mesma cor desbotada, desperfumada, sem conserto. O riso e a felicidade dos outros passaram, aos poucos, a incomodá-la. Desse modo, no auge da sensação de inferioridade, no auge da solidão, sentindo-se uma “qualquer”, começou a reclamar-se da vida triste e lamentável a que aqueles seres a submetiam. 
Quem aqueles móveis felizes pensavam que eram? E onde estava a dona da casa que não valorizava a sua presença inestimável? Como poderia ficar calada diante de situação tão adversa a seu ego? Ela tinha direito de reclamar... Ela há anos servia à família que ali residia. Era esse o pagamento recebido por tantos anos de benevolência e solicitude? Imundos todos! Mereciam alimentar-se no chão como animais, e não em sua reconfortante planície. Queria que todos morressem, que um incêndio destruísse a felicidade daqueles móveis exibidos, que uma enchente destruísse os risos daqueles seres frívolos. O ódio invadiu-a e, se ela pudesse, faria de tudo para desfazer aquela alegria insuportável e sem graça. 
Foi neste instante que gritou contra todos os móveis, e seus enfeites, as mais absurdas injúrias. Expôs o defeitos, as fragilidades, os insucessos dos companheiros com a intenção de fazê-los se sentirem por baixo, assim como ela se sentia. “Se eu não mereço ser bem tratada, ninguém mais merece!”, pensou. Disse tudo o que pensava e, sem se importar com a tristeza que poderia causar aos seus, rebaixou-os com os piores xingamentos. 
Não se deu por vencida e passou a lamentar-se das vezes em que foi bondosa. Atirou sobre os que estavam ao seu redor o quanto lhes havia ajudado. Queria fazê-los perceber, com palavras contundentes, o quanto era vítima de injustiça naquele momento. Ódio! Raiva! Rancor! Quanto teria de esperar para morrer e não ver mais tanta maldade e ingratidão?
Depois que cansou de, desequilibrada, criticar a todos, atirando sua raiva contra os mais próximos, aconteceu algo que fez com que ela se calasse. De repente, com muita delicadeza, alguém a limpou, a lustrou e colocou sobre ela uma toalha de rendas. Prepararam-lhe o melhor enfeite. Fizeram dela o centro da festa e todos os convidados, ao longo da recepção, transformaram-na num ponto de referência atrativíssimo – afinal de contas sobre ela estavam as mais perfeitas guloseimas. A mesa, que antes falava com leviandade, ódio, amargor, que havia magoado todos os demais companheiros com seu azedume e despeito, agora estava calada, parecia constrangida pelo mal-estar que havia proporcionado. 
A festa, no entanto, havia acabado para os demais móveis e enfeites da casa. E ela finalmente se deu conta de que fora uma estúpida, invejosa, grosseira e, pedindo desculpas, baixou a vista. Era tarde. Nunca mais conseguiu reconstruir as amizades que, com palavras ferinas e desnecessárias, destruiu.
Um velho relógio, muito sábio, a olhou condescendentemente e disse: “A paciência é uma grande virtude, porém é um dom tão raro! Estar com raiva é possível, mas ninguém tem o direito de atirar contra os outros as suas próprias frustrações”.

REFERÊNCIAS:

CARDOSO, Cícero Émerson do Nascimento. Apólogo da mesa. In: Revista de Literatura e Artes Boca Escancarada, n. 5, p. 21 – 22, mai. / ago. de 2014.

Nenhum comentário:

Postar um comentário