terça-feira, 15 de julho de 2014

LEITURA: SONETOS DE AUGUSTO DOS ANJOS



O MORCEGO 

Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

"Vou mandar levantar outra parede..."
- Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh'alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!



SOLITÁRIO

Como um fantasma que se refugia
Na solidão da natureza morta,
Por trás dos ermos túmulos, um dia, 
Eu fui refugiar-me à tua porta!

Fazia frio e o frio que fazia
Não era esse que a carne nos conforta...
Cortava assim como em carniçaria
O aço das facas incisivas corta!

Mas tu não vieste ver minha Desgraça!
E eu saí, como quem tudo repele,
- Velho caixão a carregar destroços - 

Levando apenas na tumbal carcaça
O pergaminho singular da pele
E o chocalho fatídico dos ossos!


VOZES DE UM TÚMULO

Morri! E a Terra - a mãe comum - o brilho
Destes meus olhos apagou!... Assim
Tântalo, aos reis convivas, num festim, 
Serviu as carnes do seu próprio filho!

Por que para este cemitério vim?!
Por quê?! Antes da vida augusto trilho
Palmilhasse, do que este que palmilho
E que me assombra, porque não tem fim!

No ardor do sonho que o fronema exalta
Construí de orgulho ênea pirâmide alta...
Hoje, porém, que se desmoronou

A pirâmide real do meu orgulho
Hoje que apenas sou matéria e entulho
Tenho consciência de que nada sou! 


TEXTOS RETIRADOS DO LIVRO:

ANJOS, Augusto dos. Eu. Organizado por Fabiano Calixto. São Paulo: Hedra, 2012. 

O Morcego (p. 71)
Solitário (p. 97)
Vozes de um túmulo (p. 132)

Nenhum comentário:

Postar um comentário