quinta-feira, 11 de agosto de 2016

BREVE COMENTÁRIO SOBRE "AUTO DA BARCA DO INFERNO", DE GIL VICENTE, E "O AUTO DA COMPADECIDA", DE ARIANO SUASSUNA


O Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, foi publicado em 1517 e tem como cenário fixo duas embarcações, numa espécie de porto imaginário para onde as almas vão após a morte. Uma barca é representada por um Anjo, que simboliza o paraíso, e a outra é representada pelo Diabo que, como se pode supor, simboliza o inferno. Os acontecimentos se dão a partir do momento que as almas chegam ao porto – estas passam a ser julgadas pelas ações que realizaram durante a vida – e deparam-se com os dois barcos e seus condutores.
Uma característica importante na obra é o fato de que o autor apresenta tipos sociais representativos da Nobreza, do Clero e do Povo. Várias antíteses são explanadas: Anjo/Diabo, Céu/Inferno, Bem/Mal, Vida/Morte, Pecado/Santidade, dentre outras. Com relação aos aspectos formais, e a utilização de montagens e cenários, o teatro de Gil Vicente é simples, não segue as três unidades do teatro clássico: ação, lugar e tempo.
            O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, foi publicado em 1957, e reúne características da literatura de caráter medieval associada à literatura de cordel, manifestação literária muito difundida no Nordeste brasileiro. Ela apresenta as ações do herói espertalhão João Grilo e de seu fiel escudeiro Chicó, numa cidade repleta de tipos representativos, assim como na obra de Gil Vicente, da Nobreza, do Clero e do Povo.
Após um ataque de cangaceiros à cidade de Taperoá, o Padre, o Bispo, o Padeiro e sua Esposa, o cangaceiro Severino e João Grilo são mortos e vão para o céu, ocasião em que deparam-se com Jesus Cristo – Manuel – e com o Diabo – o Encourado. As personagens, por terem realizado ações pecaminosas durante a vida, passam a ser julgadas, tendo como acusador o Encourado. No auge do desespero, e da possível punição pelos pecados que realizaram, elas contam com a esperteza de João Grilo, que pede a Manuel para ser defendido por Maria – a Compadecida –, ao que é atendido.
            Após esta síntese, percebemos o quanto as obras em pauta dialogam entre si por apresentarem, nos seus respectivos enredos, situações muito próximas. Como exemplo, temos o fato de que as personagens de ambas as obras se deparam, após a morte, com um julgamento em que, pelas ações realizadas em vida, podem ou não serem salvas tendo como punição os castigos do inferno por toda eternidade. Nos trechos seguintes, de modo sucinto, podemos perceber traços formais que apontam para um diálogo entre os autores – consideremos, neste caso, que Ariano Suassuna era admirador confesso da obra de Gil Vicente.
A linguagem utilizada por Gil Vicente na obra é rica em arcaísmos, e os diálogos foram produzidos com rimas e redondilhas maiores; Ariano Suassuna, por sua vez, reproduziu traços linguísticos típicos de certos locais do Nordeste, e teve preocupação em apresentar diálogos rápidos, concisos, fortemente marcados pelo humor e pela ironia que lhe são peculiares. Para exemplificar, leiamos os trechos das respectivas obras. O primeiro trecho é do Auto da Barca do Inferno (VICENTE apud TAKAZAKI, 2009, p. 33):

FIDALGO:

Ao inferno, todavia!
Inferno há i pêra mi?
Oh triste! Enquanto vivi
Não cuidei que o i havia:
Tive que era fantesia!
Folgava ser adorado,
Confiei em meu estado
E não vi que me perdia.

Venha essa prancha!
Veremos esta barca de tristura.

DIABO:

Embarque vossa doçura,
Que cá nos entenderemos...
Tomarês um par de remos
Veremos como remais [...]

            Neste trecho, o autor expõe a falta de fé de um fidalgo que, ao se deparar com a ideia da punição divina após a morte, repensa suas ações e lamenta a certeza de que não pode mais mudar os fatos. No trecho que apresenta a fala do Diabo, percebemos a ironia com que este fala, o tom inquisidor e cruel é forte, e o desespero do fidalgo é inegável mediante a acusação.
            A seguir, temos um trecho da obra Auto da Compadecida (SUASSUNA, 2005, p. 121):

SEVERINO

Ai meu Deus, vou pagar minhas mortes no inferno!

BISPO

Senhor demônio, tenha compaixão de um pobre bispo!

ENCOURADO

Ah, compaixão... Como pilhéria é boa! Vamos todos para dentro. Para dentro, já disse. Todos para o fogo eterno, pra padecer comigo. [...] Arrogância e falta de humildade no desempenho de suas funções: esse bispo, falando com um pequeno, tinha um orgulho só comparável à subserviência que usava para tratar com os grandes. Isto sem se falar no fato de que vivia com um santo homem, tratando-o com o maior desprezo.
                                                                                                                                                                                                 
Nestes trechos da obra de Suassuna, a linguagem apresenta traços modernistas na simplicidade dos termos empregados, além de diálogos rápidos, curtos, o que dá certo dinamismo ao texto.
No trecho de ambos os autores, temos a fala dos possíveis condenados ao inferno e o julgamento do Diabo. No primeiro, o Diabo é irônico, lida com crueldade diante do desespero do fidalgo; no segundo, o Diabo mantém a mesma característica de ironia, crueldade e assume o papel de acusador das faltas do indivíduo como se este fosse conhecedor contumaz das ações realizadas pelos homens que julga. Ambos se pautam na ideia de condenação pelo comportamento maledicente do homem, e ambos apresentam o aspecto religioso como pano de fundo da análise do comportamento do homem na sociedade em que este está inserido.
A hipocrisia social, o materialismo, o desprezo aos valores espirituais e a crueldade das relações humanas são temas comuns às obras em discussão, o que as torna, sem dúvidas, próximas apesar da distância temporal de séculos, e de certas diferenciações formais apresentadas.

REFERÊNCIAS

SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. 35. ed. Rio de Janeiro: Agir, 2005.


TAKAZAKI, Heloisa Harue. Língua Portuguesa: ensino médio – volume único. São Paulo: IBEP, 2004. (Coleção Vitória Régia). 


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