quinta-feira, 11 de agosto de 2016

RESENHA CRÍTICA: "MOTO-CONTÍNUO", DE TIAGO NASCIMENTO SILVA


Ao concluir a leitura do livro Moto-contínuo, do professor, músico, contista e poeta Tiago Nascimento Silva, veio-me a ideia de que eu poderia, a princípio, procurar uma palavra que o resumisse. E a palavra encontrada foi: desencanto. Desencanto, porém, não numa perspectiva pejorativa, mas no mais estético sentido do termo.  
Tiago Nascimento Silva atira sobre seus textos a necessidade, mais que pertinente neste século em que nos arrastamos pelos escombros da barbárie, de observar o mundo com vieses realistas. Já no primeiro poema, por exemplo, deparamo-nos com um eu lírico que vislumbra a realidade com olhares pesarosos e angustiados, como é o caso de Transbordamento: “Percebi que estava doente / meus dias ficando sem cor / só via flores morrendo / tudo era choro, era dor”. Isto, no entanto, não o impede de encontrar um lenitivo para alma, ou seja, a poesia, como possibilidade de expurgação de seus males interiores, é o seu subterfúgio: “Mas hoje minha vida está calma / consumi quem me consumia / o que faltava em minh’alma / era um pouco de poesia”.
Parece uma luz no fim do túnel o encontro do eu lírico com a poesia – esta figura como uma quase “entidade” que surge no irremediável do cotidiano e é capaz de sufragar o desânimo, a angústia e a dor que ele rumina.
O fazer poético, neste sentido, torna-se um meio catártico e, consequentemente, “salvacionista”. Não devemos, contudo, nos deixar enganar por esse tom “otimista” presente no primeiro texto. O que se segue, e isto podemos confirmar ao ler a maior parte dos poemas, é uma visão pessimista, desencantada e derrotista da existência.
Exemplificamos nossa assertiva com, pelo menos, três poemas: 1) A dança das engrenagens do universo, 2) Conferência internacional da decadência humana e 3) Catarse.
A dança das engrenagens do universo é um poema filosófico. Do ponto de vista formal, o uso de anáforas, a repetição de palavras do campo semântico da negação e períodos curtos remetem ao tom provocativo e autoafirmativo do eu lírico. Nele, percebemos o tom contraditório do discurso de um eu lírico que, por um lado, expressa revolta e afirma, inconformado, sua insatisfação ante o esvaziamento do ser e ante o nada, que pode camuflar-se em discursos construídos socialmente e tendem à imposição de “regras”, de “teorias” e até da “felicidade”. Ele não aceita tais imposições e brada: “Não me venham com regras, / Não me tragam teorias, / Não existe felicidade”.
Por outro lado, ao dizer, incisivamente, que tudo “se resume a nada”, e repetir que os dias, as noites e as vidas são “todas iguais”, e que “nada é o que existe”, percebemos mais uma nuance do eu lírico: o ser inconformado dá vazão ao ser estático, paralisado e incapaz de assimilar o mundo em que está inserido como passível de mudança a partir de suas próprias ações. Se nada mais “há”, qualquer esforço para alterar o rumo das coisas seria um esforço vão. Sua luta consiste, apenas, na tentativa de expurgação, de insatisfação e insolência. Tão hiperbólico quanto desiludido, o eu lírico está enredado na teia perigosa de um cotidiano percebido como algo inalterável. Ele está fechado em sua visão de que há uma verdade “paradoxal” e “inexorável”, assim qualquer esforço seria inútil – ele restringe-se a sentir o nada no que há de mais patético e irremediável. O eu lírico tenta justificar, neurótico, sua reação agressiva: “Não é mau humor, nem melancolia, / nem tristeza, nem pessimismo. / Não é nada”.
O título Conferência internacional da decadência humana nos remete, de certo modo, ao texto de Carlos Drummond de Andrade: Congresso internacional do medo. Em mais de um texto, ressaltemos, percebemos a influência de Drummond sobre a escrita de Tiago Nascimento Silva. No poema deste, o eu lírico apresenta, na primeira estrofe, quatro indagações. Dentre elas, merece destaque: “Quem fez dos meus olhos estes poços secos de paisagem estática?”
Em resposta, o eu lírico afirma algo que nos lembra do teor do poema Retrato, de Cecília Meireles: “Olho para os meus braços / vejo carne morta, pele engelhada, veias à mostra, / o padecimento de uma glória que não tive”. A sensação de deterioração do seu corpo reflete, inequivocamente, a sensação de sua alma, que é reforçada pela visão pessimista que, por não suportar o mundo, espaço em que “tudo é dor”, e em que o indivíduo está fadado, schopenhauerianamente, “a arrastar um corpo até a escuridão eterna”, e o impele à morte.
Assim, ele expõe: “Quero morrer. / Espero morrer. / Preciso morrer. / Sinto-me tão decrépito e inútil que nem morrer eu consigo”.  No desfecho, cujo efeito é muito bem delineado, mais uma vez percebemos a influência de Drummond, desta feita na linha do que ele apresenta no poema Cidadezinha qualquer. O eu lírico conclui: “Enquanto a foice não me decepa os dias, / sento-me a espreitar o céu, / introjeto o universo em meus olhos / e percebo o quanto a vide é besta.
Em Catarse, um dos poemas mais longos do livro, o eu lírico inicia seu discurso com a tese: “A vida foi feita pra ser sofrida”. A dor, para ele, surge personificada e, sádica, “procura um peito em que habitar”. Contra as amarras da dor, segundo o eu lírico: “Não há como fugir”. A dor, no entanto, após ser descrita como a mais atroz das figuras para a condição humana, paradoxalmente é vislumbrada como possibilidade de crescimento e “evolução” existencial – e por que não dizer espiritual!
Talvez isso nos remeta a uma visão masoquista expressa pelo eu lírico, que se compraz em sofrer porque disto resulta a capacidade de compreender “o que é a vida”. É certo dizer, neste caso, que a dor, antes personificada como algo terrífico a que fatalmente o ser estaria submetido, passa a ser pensada como um mal necessário, pois conduziria o indivíduo à consciência de si mesmo, do outro e do mundo.  
Doer torna, por este ângulo de visão, o indivíduo mais apto a evoluir, a tornar-se coerente em suas posturas, a sufragar suas culpas – numa perspectiva judaico-cristão bem possível à leitura desse poema. No mundo líquido, termo utilizado por Bauman, a dor é percebida como canal por meio do qual o indivíduo seria capaz de, pelo que apreendemos do eu lírico, perceber suas fragilidades e as dos outros. O eu lírico afirma, neste sentido: “Não há roupa bonita / aparelho eletrônico / posição social / conta bancária / carro”, pois “a vida não tem sentido”.
Como solução, para a dor cruel e fatal, embora benéfica para o ser, e para a falta de sentido da vida, o eu lírico aconselha: “Senta contigo mesmo / no silêncio sepulcral da noite / puxa pra dentro de si todo o ar que pode (enquanto pode) / [...] Não se desespera / não se desengana (apesar de a vida ser essa farsa circense)”. Ele completa, ainda, que “só a dor é positiva / na mesma inexorabilidade ora descrita, / pois é através dela, / e só dela, / que abandonamos a carcaça das preocupações individuais / e nos dilatamos na sobriedade líquida da alteridade”.
Além disso, precisamos mencionar poemas que causaram surpresa e despertaram a mais sincera simpatia: 1) O gume da faca (espécie de poema concreto que faz um trocadilho criativo com a palavra “obrigado”), 2) Poema dadaísta (que é o vazio, o oco, o nada ou, no dizer de Parmênides, o não-ser), 3) A chave da poesia (texto metalinguístico que discorre sobre a beleza do fazer poético, e que o defende contra visões pouco afeitas à sua grandeza), 4) O gari (poema contundente que mostra, em tom cinematográfico, o anonimato de um gari capaz de cantar, apesar do pouco reconhecimento de sua função e de seus males da alma), 5) Tristeza suturada na carne (uma confissão da tristeza que se apodera da alma sem que se possa dela fugir, pois ela seria fruto de uma condição fatalista impossível de ser alterada), 6) Cântico da última esperança (o eu lírico afirma arrastar-se pela vida em busca de sentido e sente a esperança ir-se, para sempre, embora) e 7) O ciclo fechado dos dias (poema concreto realizado em formato esférico que sugere o ad infinitum da existência humana envolta no cotidiano e seus tédios inevitáveis).
Podemos dizer, para nos situarmos quanto à produção do autor, que Moto-contínuo é seu segundo livro[1], de modo que ele ainda está em busca de seu estilo e de seu leitmotiv. O que observamos, porém, é que os poemas estão repletos de vozes líricas perdidas em atmosfera de irrealização, sofrimento e desilusão – e isto os enriquece consideravelmente. A maior parte deles traz temas instigantes, alguns são bem delineados e dispõem de uma linguagem prosaica adequada à ideia de Mário de Andrade, que via na criação literária moderna a reivindicação pelo “direito à pesquisa estética”.
É certo que, em busca de consolidar seu estilo, um poeta tende a experimentar formas diversas de expressão e, desse modo, ainda hesita entre um ou outro modo de expressar-se demonstrando, aqui e ali, alguns excessos, inadequações linguísticas e descuido quanto ao conteúdo e à forma. Com Tiago Nascimento Silva não é diferente, no entanto sejamos coerentes e façamos justiça: pouco falta para que sua produção poética alcance o espaço da segurança, da originalidade temática e da expressividade linguística.
Com relação a isto, por exemplo, vejamos o soneto Luta vã. Neste caso, seria mais pertinente que ele tivesse produzido um soneto sem preocupações com a métrica, um soneto de versos livres, sem apuro ou rigor formal. Ele tentou, no entanto, produzir um poema com os ditames do gênero e terminou não conseguindo um bom resultado, tendo em vista o problema com as rimas – que parecem forçadas –, com a métrica – ora contamos 10 sílabas poéticas, ora contamos 11 e 12 – e com uma inadequação na palavra “guerrear” – provavelmente problema de digitalização. O tema, porém, está bem concatenado com os demais textos do livro, também algumas imagens são criativas, mas o texto em si não está bem acabado.
Para além desses pontos, há em seu livro crítica social, perspectivas políticas, percepções filosóficas, um bom trabalho com a linguagem, títulos altamente criativos, imagens e desfechos bem delineados. Em nenhum momento os poemas de Tiago Nascimento Silva são vulgares, obscuros, frágeis em suas temáticas e em seus aspectos formais. Assim como os contos que ele produziu em seu Teoria do sofrimento, metafísica da dor ou filosofia de um triste, publicado em 2014, seus poemas são contundentes, angustiantes e densos – o que os tornam dignos de leitura e análise e admiração –, ao mesmo tempo em que são reflexivos, provocativos e realistas. O mundo, para as vozes líricas de Tiago Nascimento Silva, aparentemente está vazio, sem norte, sem possibilidades de melhores dias, mas, no fundo de tudo, há, sim, um resquício de esperança – e esta contradição é o que de melhor localizamos em Moto-contínuo.
Se alguém perguntar a Tiago Nascimento Silva o que ele faz da vida, ele pode responder, como o faz o eu lírico do poema Sobre conversas e voos: “Poesia”. E, com isto, ele falará a mais pura verdade!

SILVA, Tiago Nascimento. Moto-contínuo: a mecânica do desespero. Pará de Minas, MG: VirtualBooks, 2016.

Cícero Émerson do Nascimento Cardoso
20/09/2016




[1] Em 2015, com o também poeta Jonas Jandson, Tiago Nascimento Silva publicou o livro Quarenta e dois

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