quarta-feira, 4 de outubro de 2017

RESENHA CRÍTICA: "DÉCIMAS A GALOPE", DE ARTURO GOUVEIA




GOUVEIA, Arturo. Décimas a galope. João Pessoa: Ideia, 2017.

Após apresentar ao público seu romance Canibalismo de Outono (2016), Arturo Gouveia percorre outros caminhos em sua produção artística. O autor apresenta-nos, agora, seu livro Décimas a galope (2017), publicado pela Editora Ideia, e mostra que sua maestria não se restringe apenas à produção de textos em prosa, pois sua poesia, entre lírica e irreverente, também comprova seu notável talento com as palavras.   
            Ao dizer que sua poesia é o ousado fruto de sua “infantilidade poética”, o que o leva a sentir-se “salvaguardado” dos críticos, Gouveia não tem dimensão, talvez, do quanto foi pertinente ter se metido na tradição dos poetas e cantadores que circula pelo Nordeste com seus folhetos de cordel e cancioneiros que muito resguardam do que há de mais valorativo em nossa cultura.
            Em Décimas a galope, o autor apresenta-nos nove poemas decassílabos a partir de motes entre cômicos e líricos. A preocupação formal quanto ao atendimento ao metro, à sonoridade e à rima é recorrente – isto resultou num trabalho de grande precisão técnica perceptível em todos os poemas.
            Passando para o conteúdo do livro, o primeiro poema é realizado a partir do mote: “NO SERTÃO O CREPUSCLO É TÃO BONITO, / QUE JESUS SE DEBRUÇA PARA OLHAR”. Como o poeta explica, este mote é de autoria não definida e apresenta algumas variações, de modo que ele o retomou criando, dessa forma, um dos mais comoventes poemas do livro. A primeira estrofe expõe o sertão com tons entre melancólicos e belos: se por um lado “o Sol se despede do sertão / E enlamaça de cores o horizonte”, com seus tons de melancolia, por outro lado, cria-se uma imagem de intensa beleza: “Entre a Terra e o Céu fica uma ponte / Que transita entre a luz e a escuridão”. Grilos com seus tilintares e crianças a brincar compõem o lírico cenário sertanejo – e o “Supremo se ergue no Infinito”.
            Em versos como: “Cusparadas de luzes verticais”, “Os morcegos decolam em transversais”, “Os miolos do Céu são dissipados”, “A cratera da noite engole o mundo”, “Vagalumes começam a parir”, localizamos imagens que se inserem na linha da produção artística do autor que, pelo que analisamos de suas obras anteriores, prima pela criação de imagens grotescas e violentas, mas não menos poéticas. Neste caso, ele capta a aspereza do sertão que remete à sobrevivência, por vezes, em meio à escassez e à austeridade da vida, apesar de permear seus versos com imagens que nos remetem à apreciação de cenários de beleza inconteste.
Do grotesco, do sombrio, do áspero saem lampejos de vida, de singeleza e, também, de esperança – por que não? A simbologia do crepúsculo, que poderia remeter ao fim do dia / fim da vida, é de tal modo detentor de beleza imagética que o próprio Criador se surpreende: “Mesmo Autor de incontáveis perfeições, / A tardinha a Jesus é u’a surpresa”. O Criador torna-se cúmplice do sertanejo na contemplação do cenário.
            O segundo poema se desenvolve a partir do mote: “SEM TALENTO NENHUM PARA IMPROVISO, PELO MENOS ESCREVO MEU MARTELO”. Em tom marcadamente metalinguístico, o poeta retoma os valores artísticos do repentista e do cantador e propõe um duelo, desta feita não por meio do improviso, tão ao gosto dos artistas populares, mas por meio da escrita. Com isto, ele cria versos como:

É na escrita que as rimas são complexas,
Proparó, oquici, faço o que quero,
Pode o mundo pensar que é lero-lero,
Porém mágicas letras vão anexas.
Seja aqui, em Dubai, Berlim, no Texas,
Linhas mestras se agrupam elo a elo,
Frase a frase o impáquito é tão belo,
Que abrange o perfeito e o impreciso
Sem talento nenhum para improviso,
Pelo menos escrevo meu martelo.

Palavras como “proparoxítona” (proparó / oquici) e “impacto” (impáquito) saem da usualidade e, criativamente, são reconfiguradas – saudosismo da herança dos modernistas da denominada fase heroica, ou deboche bem articulado que não hesita em fugir de preciosismos, e que, se obedece às nuanças formais do poema, burla as regras da linguagem?
As regras da linguagem são burladas também em expressões neologísticas como: “vamagora”, “pirrai” e “inda”. No mesmo poema em que tais palavras são concebidas, surge um verso, ao estilo Augusto dos Anjos, que apresenta um decassílabo formado apenas por duas palavras: “Imponderabilíssimos versículos”.
Em seguida, no terceiro poema, que poderia ser subintitulado como ‘catálogo do absurdo’, deparamo-nos com o sarcasmo já evidenciado no poema anterior, mas que neste vai às últimas consequências. A concepção de arte contemporânea e a noção de pós-modernidade são alvo do escarnecimento da voz lírica do poema. Uma espécie de jorro de palavras, que nos aproxima das propostas artísticas de algumas vanguardas europeias, como o dadaísmo (Marcel Duchamp é citado duas vezes) e o surrealismo, vem à tona.
O absurdo prepondera na imagética do poema, como podermos constatar em sua última estrofe, ocasião em que a voz lírica tece contundente crítica a certas concepções artísticas pouco comprometidas com a singularidade estética:

Para a arte atingir seu esplendor,
Deve ser tão banal quanto o insólito:
Uma foto de Hipólita e de Hipólito
E um casal de embuá fazendo amor.
Sutiãs de Nabucodonosor
Num pedófilo amando um general,
Mil goteiras de baba vaginal
Inundando de urânio Fukushima
- Instalei a mais célebre obra-prima
Que arrasou nos salões da Bienal.

No quarto poema, o autor retoma um dos mais extraordinários contos da literatura nacional: A hora e vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa. A saga de Nhô Augusto, homem austero que passa por uma mudança vertiginosa em sua vida após um episódio de quase morte, é retomada. Seja pela bem delineada reconstrução da enredística do conto, seja pela linguagem que retoma, em vários aspectos, o estilo do autor mineiro, este poema consegue nos aproximar do universo lírico de Guimarães Rosa, como no trecho em que é narrada a viagem de Augusto Matraga em busca das terras do Rala-coco:

Despediu-se do povo e foi sem rumo
Encontrar sua vez e sua hora,
Deparou com o solzão, lonjão, lá fora,
Vomitando relâmpagos sem prumo.
Sem bebida, pecado ou mesmo fumo,
Viajou no jumento com ardor.
Não sabia a distância por transpor,
Mas a fé feita em Deus nunca se indaga
- O maior dos Augustos, o Matraga,
Ascendeu de maldito a redentor.

No quinto poema, mesclam-se ficção e realidade. Nos primeiros versos, a voz lírica sugere que teve uma conversa com Riobaldo, ao mesmo tempo em que é retomada a figura de Zé Limeira que, supostamente, teria morado em um convento. Surge nele algumas figuras desde o Saci, do folclore brasileiro, a Policarpo Quaresma, de Lima Barreto. Além disso, há menção a pessoas reais do universo das artes – Pablo Picasso, Piet Mondrian, Salvador Dalí, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa, Edgar Allan Poe e Procópio e Bibi Ferreira, dentre outros. A intertextualidade é nítida em trechos como: “O abiççurdo, cubista ou expressionista, / Tá na fala tubi or no tubi. / Elsenor é o palácio de Geni...” Além da retomada das Vanguardas Europeias, no trecho há alusões a Hamlet, de Shakespeare, a Geni e o zepelim, de Chico Buarque, passando pelo Movimento Antropofágico, proposto por Oswald de Andrade. Percebemos isto, também, na menção a Augusto dos Anjos presente no verso: “Tem poeta que numa boca escarra, / Tem quem viva esperando o Jabuti...”  
No poema seguinte, Zé Limeira reaparece, desta feita a convite da voz lírica que afirma tê-lo convidado e ele ter trazido Moreira e Juliano. A formalidade da linguagem é alternada com a linguagem coloquial que se adéqua ao tom irreverente, absurdo e nonsense do poema. Assim como subintitulamos o terceiro poema como ‘catálogo do absurdo’, o sexto poema poderia ser subintitulado como o “catálogo da loucura”.
Os poemas posteriores, que são marcadamente humorísticos: o primeiro (PEGUE A LÍNGUA DA SUA SOGRA MORTA / E ELOGIE COM AMOR EM DOIS VELÓRIOS), que se remete à imagem popularmente considerada como detestável da sogra, a homenageia ao contrário, apresentando-a com tons caricaturais e jocosos; o segundo (QUANDO EU ERA PIRRAI VOVÓ DIZIA / QUE MEU ROSTO ERA A CARA DE UM PIPIU), galhofeiro e obsceno, apresenta os mesmos tons caricaturais do poema sobre a sogra.
Esses poemas são cômicos, apresentam inovações do ponto de vista da linguagem – como exemplo, consideremos os termos “pralutakismariu”, “Zé-Mezera” e “bimbim” – e são criativos ao extremo. Para ilustrar a criatividade com que a voz lírica manipula os componentes do humor que os tornam textos irreverentes e galhofeiros, além de marcadamente sarcásticos, leiamos a seguinte estrofe:

Conta todo carimbo de um calção,
Sabe todo defeito dos ingratos,
Delatou Jesus Cristo pra Pilatos,
Entregou Galileu à Inquisição.
Não tem Bíblia, Odisseia nem Corão
Nem cardápio de uns trinta refeitórios
Que concorram com tanto palavrórios
Que a garganta do Cão fabrica e exporta
- Pegue a língua da sua sogra morta
E elogie com amor em dois velórios.

        E, para concluir, o último poema pode ser considerado um dos mais extraordinários do livro (trata-se da décima O MAIS ALTO DEGRAU DA INTELIGÊNCIA / É SAIR PRA CAÇAR O POKEMÓN). Neste, um dos mais críticos, sarcásticos e cômicos, deparamo-nos com a difundida prática do mundo virtual: “caçar pokemón” que, na percepção sempre irônica da voz lírica, é considerada uma ação totalmente contrária ao desenvolvimento cognitivo do indivíduo. Nos versos seguintes, percebemos o teor sarcástico com que as palavras são dispostas:

A burrisse é negoçço de familha,
Não têm erros na língua poquemônica:
Tanto faiz candidato, bomba atônica,
Ou cartasis ou rúbrica ou barguilha.
Os 40 ladrões lá em Brazilha
Açaltaro Seu Jorje, urrei de Tlon.
Oge vô se cobrir com o edredón
Só se eu se abister da abstinênsia.
- O mas auto degrau da inteligência
É saí pra cassar o Pokemón.

         Pelas estrofes que apresentamos, podemos constatar que o novo livro de Arturo Gouveia é instigante, criativo e formalmente irretocável. Consegue ser denso no manuseio dos aspectos estruturais e inovador pela forma como a linguagem é apresentada. Por ser um artista consciente da profundidade que uma palavra pode alcançar quando bem arquitetada, ele consegue nos proporcionar uma leitura que nos amplia o olhar sobre cenários e temas diversos, e, além disso, nos propicia momentos de leveza e diversão, quando nos motiva a rir aturdidos pelos absurdos, pelas caricaturas e pelas irreverências que emergem de seus versos sempre rigorosamente construídos.
            O livro Décimas a galope é uma brincadeira séria que está longe de configurar-se como fruto de uma “infantilidade poética”, a não ser que compreendamos essa infantilidade como um gesto de desprendimento, ousadia, leveza e, de certo modo, desobediência e rebeldia, ingredientes muito válidos para quem pensa o fazer artístico como algo singular que, em suas especificidades, pode conduzir seu apreciador às mais benéficas sensações e a novas perspectivas de apreciação artística.  

Émerson Cardoso

04/10/2017

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