terça-feira, 23 de julho de 2013

UM ENSAIO: "CHÃO DE GIZ", DE ZÉ RAMALHO


NA PRISÃO DO AMOR UM AMANTE CAI PELA TERCEIRA VEZ:  ANÁLISE DA MÚSICA CHÃO DE GIZ, DE ZÉ RAMALHO

Gravada originalmente em 1977, Chão de Giz é uma das músicas mais populares do paraibano Zé Ramalho e, além de uma melodia marcante, a letra apresenta ampla significação através de imagens melancólicas que margeiam o patético da desilusão amorosa. 
Constituída de três estrofes, essa canção inicia com a afirmação do eu lírico que diz: “Eu desço dessa solidão”. Essa afirmação nos remete a um conflito existencial que se mostra com intensa carga dramática. A solidão é vista, por muitos, como um estado deplorável ao ser humano que, em sua essência, estaria fadado ao convívio social. Quem, por algum motivo, se vê fora dessa possibilidade de comunicação tende a sentir-se vazio, incompleto e até, em alguns casos, marginalizado. Dizer que irá "descer" da solidão, além de ser uma expressão hiperbólica, é uma tentativa de mostrar a sensação de vazio existencial que o eu lírico vivencia. Ele, portanto, encontra-se num estado depressivo gritante, pintado com as cores dramáticas do que é irreversível.
Associamos as três estrofes dessa canção a uma metáfora que nos parece viável, se considerarmos o texto em seu todo. Cada estrofe representa uma queda, cada queda amplia, metaforicamente, a sensação de autodestruição do eu lírico que não consegue lidar com a possibilidade de viver sem estar ao lado do ser a quem devota seu amor.
 Nessa perspectiva, poderíamos dizer que a primeira queda acontece logo no verso inicial da primeira estrofe. Descer da solidão seria, nesse caso, uma das três quedas que o eu lírico vivenciará ao longo do texto. 
Quando o eu lírico espalha “coisas sobre um chão de giz”, a imagem se torna pouco nítida tendo em vista o termo “coisa” empregado, geralmente, para designar inúmeros tipos de objetos / seres não delimitados ou especificados. O chão de giz poderia sugerir a fugacidade dos acontecimentos – o giz é um objeto que, ao ser utilizado, desfaz-se deixando apenas seus resquícios. Essa imagem nos dimensiona a condição do eu lírico que parece estar, assim como o giz, fadado a fragmentar-se, desfigurar-se, perder-se.  
Em seguida, o eu lírico apresenta definitivamente o seu estado emocional: “Há meros devaneios tolos a me torturar”. Esse verso o desmascara: ante a necessidade que ele evidencia de não afirmar o seu estado mórbido de espírito, seu discurso o coloca numa excessiva exposição íntima, pois se o que sente são apenas “meros devaneios tolos”, por que ele se deixa torturar tanto por isso? Não são, como se pode supor, meros devaneios e sim um angustiante conflito de cunho amoroso que, inclusive, tritura seu íntimo e o torna desesperado a ponto de recortar “fotografias” repetidas vezes como se quisesse desfazer o sentimento resguardado em si. A cena reproduzida na fotografia, que anteriormente poderia representar a recordação de momentos felizes, agora está fragmentada, desfeita. Essa ação do eu lírico sugere-nos que ele tentava rasgar aquilo que era externo para desfazer, talvez, o que o triturava internamente: e seu gesto obviamente fracassou.  
O termo “amiúde” – que significa repetidas vezes – reforça a ideia de compulsão por libertar-se de algo que quanto mais é negado mais parece se firmar. As fotografias foram cortadas, destruídas. O objetivo não seria, portanto, destruir a si mesmo já que trazia dentro, e não fora de si, um amor não correspondido, conflitante e causador de sua angústia?  
A punição para o objeto amoroso ausente se dá através da seguinte ameaça proferida pelo eu lírico: o ser amado, representado pelas fotografias trituradas, será atirado num “pano de guardar confetes”. Cortadas as fotos, o destino delas – mais precisamente o destino do ser amado – será o de misturar-se aos confetes e nunca mais serem restituídas. Essa afirmação se repete de modo a enfatizar o rancor do eu lírico abandonado que, como consequência do preterimento, se apoia em chantagens emocionais.  
Na segunda estrofe, o eu lírico apresenta sua segunda queda. Ao dizer: “Espalho balas de canhão/ é inútil, pois existe um grão-vizir”, as balas de canhão remetem à ideia de guerra, conflito. Essa imagem sugere uma queda representada na imagem da bala de canhão atirada contra um adversário, e adversário que, nesse caso, é ele próprio. Mas ele afirma que é inútil atirar contra seu suposto adversário, pois existe o “grão-vizir” – ministro de guerra. Em si o conflito é tão intenso que ele cria duas imagens para si mesmo: ele é o grão-vizir e, ao mesmo tempo, é o adversário de guerra. Ele atira e sofre respectivamente o ataque. Irrompe, portanto, o intenso desequilíbrio emocional que o impele a uma luta interna que se manifesta entre: razão / emoção, real / irreal, sanidade / loucura.
No verso: “Há tantas violetas velhas sem um colibri”, encontramos, talvez, a imagem mais rica em poeticidade do texto. O eu lírico se imprime na imagem das violetas sem um colibri – sem o objeto do seu desejo –, e velhas – relegadas, nessa acepção, ao fim iminente –, com a intenção de hiperbolizar suas feridas existenciais: dentre as violetas sem colibri, ele é a mais deprimida. 
A associação do eu lírico com a flor sugere uma perda de identidade deste, tendo em vista que a imagem da flor é remetida, quase sempre, à figura feminina que, numa visão tradicionalista, está vinculada à condição passiva social e psicologicamente em detrimento do ativismo que o masculino representaria. Eis um eu lírico, na metáfora, submetido à condição frágil da flor, ou seja, é um sujeito passivo, permissivo, dependente que assume essa postura por estar numa condição passional irremediável.
Ao dizer que “Queria usar [...] uma camisa de forças” – recurso utilizado para imobilização de pessoas em crise em decorrência de problemas de saúde mental – mostra seu furor passional e mais uma chantagem emocional: se o ser amado não retribuir a devoção ele ficará louco.
Mas a conjunção “ou” dá outra alternativa:  poderia usar também uma camisa “de Vênus”. Desta feita: ou o amor é realizado, ou o eu lírico enlouquecerá. Loucura versus satisfação amorosa, e no auge desse conflito o indivíduo afirma que não aceitará satisfazer esse amor se não for de modo concreto – a camisa de Vênus é um dos termos utilizados para designar o preservativo masculino.
O eu lírico se refere, também, a ação de fumar. Fumar remete-nos à satisfação imediatista de um desejo, à tentativa de libertar-se de uma suposta angústia e à fugacidade do prazer experimentado em tragos que não reduzem a sensação de ansiedade. Como resultado do cigarro consumido – imagem que remete ao giz na primeira estrofe – restam apenas cinzas. E o eu lírico afirma que esse não é o seu desejo. Amenizar a ansiedade, com o gozo do cigarro, não suprirá seus anseios. Posteriormente, um verso sugere a perda de identidade do indivíduo: “Não vou lhe beijar gastando assim o meu batom”. Como o batom é um adereço arquetípico do sujeito feminino, o eu lírico parece perder as delimitações da sua condição masculina dando-se às práticas habituais do universo identitário supostamente feminino. Mas a alusão ao carnaval ameniza essa ideia, afinal: as delimitações comportamentais de cunho sexista deixam de ser consideradas em tempos de carnaval.
Na terceira estrofe percebemos a terceira queda: “Agora pego um caminhão/ na lona vou a nocaute outra vez”. A ideia de que pegou um caminhão traduz a necessidade de fuga empreendida por um ser em desespero. Ao fugir, surge a metáfora da lona em que foi nocauteado – nessa imagem encontramos a terceira queda.
A ideia de que o sentimento amoroso conduziu o indivíduo às últimas consequências do desespero se confirma nos versos: “Para sempre fui acorrentado no seu calcanhar”. A vassalagem amorosa presente nesse verso remete-nos à imagem presente nas Cantigas de Amor trovadorescas, em que o eu lírico se mostrava totalmente submisso ante sua amada senhora – esta que sempre o desprezava ou que sequer o conhecia. Nesse verso encontramos a confirmação da terceira queda já prenunciada nos primeiros versos dessa terceira estrofe.
Nos versos: “Meus vinte anos de boy/ That’s over baby/ Freud explica”, há fortes indícios de uma sensação de desespero caracterizada pela visão conformista assumida pelo eu lírico e, ao mesmo tempo, autodestrutiva. A juventude – ele se diz com vinte anos – não representa a possibilidade de início da vida, antes vem a terrível constatação de uma vida perdida definitivamente confirmada pela expressão estrangeira: “That’s over”, ou seja, “isto é o fim”, “eis o fim”. Depois ele afirma: “Freud explica”. Essa expressão lugar-comum utilizada pelo eu lírico – expressão reducionista que atribui a Freud a explicação para todas as problemáticas de caráter sexual do indivíduo – sugere uma tentativa deste de justificar a devoção ao seu objeto afetivo e a atração sexual que sente por sua amada.  
Logo após, são repetidos termos de estrofes anteriores e é utilizada uma expressão significativa para o contexto, nos versos: “Quanto ao pano dos confetes/ Já passou meu carnaval/ E isso explica porque o sexo é assunto popular”. Há uma revolta expressa nesses versos e indicam que o carnaval – imagem que nos remete à vivência de encontros afetivos casuais e a festividades – se foi e nada mais representa, além disso, o pano dos confetes já não tem mais utilidade. Nada mais parece adiantar para aquele que está decidido a fugir, por ter sido preterido, da sensação avassaladora causada por seu amor.  
Os últimos versos, seguidos de reticências, apresentam um último apelo, ou mesmo chantagem emocional: “No mais, estou indo embora/ No mais, estou indo embora/ No mais...”. E antes que o verso último seja pronunciado, o eu lírico, nas entrelinhas indicadas pelas reticências, parece deixar de vivenciar esse sentimento amoroso despedindo-se da vida, o que poderia remeter a várias possibilidades interpretativas mas que, após as pistas desvendadas, poderíamos dizer: por não suportar os conflitos causados por um amor sem consolidação o eu lírico despede-se da vida – comete suicídio? O sentimento depressivo conduz o indivíduo perdido de amor à fuga radical – a alma se liberta finalmente do amor corrosivo, na simbologia da morte.
Em suma, Chão de Giz é uma canção amarga, deprimente e, antes de tudo, romântica no sentido mais amplo do termo. Apresenta três estrofes e encerra com três versos sendo que o último está incompleto – e nessa incompletude do verso poderia estar a urgência de morrer do eu lírico. O último verso é concluído com reticências – que remetem à ideia de continuidade do discurso ou supressão de termos, além de trazer a simbologia do número três significativo para o texto se considerada a hipótese das três quedas representadas nas três estrofes.  
Enfim, o amor na música Chão de Giz conduz o amante às consequências mais drásticas da passionalidade amorosa: o autoaniquilamento, a autodestruição e a morte.

TEXTO DE: ÉMERSON CARDOSO

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