quarta-feira, 13 de março de 2013

APÓLOGO - SERES INANIMADOS

Narrativa curta que apresenta seres inanimados (objetos, plantas...) como personagens centrais da narrativa. Em geral, busca ilustrar lições de sabedoria através da personificação desses seres. Segundo D'Onofrio¹ (2000, p.125), o apólogo é: "Historinha que se passa entre objetos inanimados, contendo uma moral implícita ou explícita". Quando se fala em apólogo, no Brasil, o texto que primeiro vem à tona é o "Um apólogo", de Machado de Assis. Lindo texto, mas que está mais que conhecido e reconhecido. Por isso decidi escrever o meu próprio apólogo. Aí está! Espero que leiam e gostem! 


¹ D'ONOFRIO, Salvatore. Teoria do texto 1: prolegômenos e teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 2000.




APÓLOGO DA MESA 
 (ÉMERSON CARDOSO)

Era um dia de festa. As pessoas corriam de um lado para o outro arrumando os últimos detalhes da grandiosa recepção. Em todos os cômodos da mansão havia móveis que, sob vigilância da anfitriã, eram limpos cuidadosamente. Cada móvel tinha sua importância. Todos foram polidos, enfeitados, mudados de lugar.
Mas houve um problema impossível de passar sem dar nas vistas. Enquanto todos os móveis riam no auge da felicidade pela nova roupagem que apresentavam, a mesa, mais reflexiva que o natural, no centro da sala, com olhares de estranhamento e aspecto descontente, permanecia intocada.
Todos os móveis receberam nova coloração, espargiam perfume, alguns receberam toalhas e enfeites novos. Apenas ela, a mesa, permanecia com seu aspecto de sempre: a mesma cor desbotada, desperfumada, sem conserto. O riso e a felicidade dos outros passaram, aos poucos, a incomodá-la. Desse modo, no auge da sensação de inferioridade, no auge da solidão, sentindo-se uma “qualquer”, começou a reclamar-se da vida triste e lamentável a que aqueles seres a submetiam. 
Quem aqueles móveis felizes pensavam que eram? E onde estava a dona da casa que não valorizava a sua presença inestimável? Como poderia ficar calada diante de situação tão adversa a seu ego? Ela tinha direito de reclamar... Ela há anos servia à família que ali residia... Era esse o pagamento recebido por tanto anos de benevolência? Imundos todos! Mereciam alimentar-se no chão como animais, e não em sua reconfortante planície. Queria que todos morressem, que um incêndio destruísse a felicidade daqueles móveis insensatos, que uma enchente destruísse os risos daqueles seres frívolos! O ódio invadiu-a e, se ela pudesse, faria de tudo para desfazer aquela alegria insuportável e sem graça.   
Foi neste instante que gritou contra todos os móveis, e seus enfeites, as mais absurdas injúrias. Expôs o defeitos, as fragilidades, os insucessos dos companheiros com a intenção de fazê-los se sentirem por baixo, assim como ela se sentia. “Se eu não mereço ser bem tratada, ninguém mais merece!”, pensou. Disse tudo o que pensava e, sem se importar com a tristeza que poderia causar aos seus, rebaixou-os com os piores xingamentos. 
Não se deu por vencida e passou a lamentar-se das vezes em que foi bondosa. Atirou sobre os que estavam ao seu derredor o quanto lhes tinham ajudado. Queria fazê-los perceber, com palavras contundentes, o quanto era vítima de injustiça naquele momento. Ódio! Raiva! Rancor! Quanto teria de esperar para morrer e não ver mais tanta maldade e ingratidão?
Depois que cansou de, desequilibrada, criticar a todos, atirando sua raiva contra os mais próximos, aconteceu algo que fez com que ela se calasse. De repente, com muita delicadeza, alguém a limpou, a lustrou e colocou sobre ela uma toalha de rendas. Prepararam-lhe o melhor enfeite. Fizeram dela o centro da festa e todos os convidados, ao longo da recepção, transformaram-na num ponto de referência atrativíssimo – afinal de contas sobre ela estavam as mais perfeitas guloseimas. A mesa, que antes falava com leviandade, ódio, amargor, que havia magoado todos os demais companheiros com seu azedume e despeito, agora estava calada, parecia constrangida pelo mal-estar que havia proporcionado. 
A festa, no entanto, havia acabado para os demais móveis e enfeites da casa. E ela finalmente se deu conta de que fora uma estúpida, invejosa, grosseira e, pedindo desculpas, baixou a vista. Era tarde. Nunca mais conseguiu reconstruir as amizades que, com palavras ferinas e desnecessárias, destruiu.
Um velho relógio, muito sóbrio, a olhou pacientemente e disse: “A paciência é uma grande virtude, porém é um dom tão raro! Estar com raiva é possível, mas ninguém tem o direito de atirar sobre os outros as suas próprias frustrações.”
                                                                                                                                                                                                   Texto escrito em: 06/01/10
PUBLICADO EM: 
CARDOSO, Cícero Émerson do Nascimento. Apólogo da mesa. Revista de Literatura e Artes Boca Escancarada, n. 5, p. 21 - 22, mai. / ago. de 2014. 



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